17 junho 2010

VOU-TE CONTAR: 2. O aniversário da Migaça

“Em que dia morreu o pai?” 
“Nove de Novembro!”, apercebi um toque de escândalo no tom, na velocidade do arremesso com que a minha irmã mais velha respondeu do outro lado do fio.
Nunca fui bom a reter datas de aniversário, quero dizer, para além daquelas que estão automaticamente entranhadas como as do nascimento dos meus pais, irmãos, alguns entes queridos ou ex-queridos... Sei lá bem em que dias fazem anos os meus tios, cunhados, primos, sobrinhos ou quem veio depois disso. Agora, com as agendas electrónicas e os avisos pré-configurados gerados por telemóvel e computador tornou-se mais fácil evitar certos esquecimentos, antes disso quem me valia era a memória das mulheres, que são, de longe, mais aptas que os homens neste e noutro género de detalhes que fazem o mundo rodar harmonioso no seu eixo.

“Não te esqueças que hoje o Docas faz seis anos”, relembra-me em sms a minha irmã mais nova, mãe do aniversariante, “diz-lhe qualquer coisa...” 
Ou se me surgiu uma lembrança duvidosa e telefono a perguntar: 
“Não está a fazer anos a Migaça...? Não é já para a semana, a 14?” 
“Não! É 14, mas só no mês que vem, estás a confundir Junho com Julho! É exactamente entre a Titona – que faz a 10 – e o primo Raul que, se fosse vivo, fazia a 18...” 
E eu pasmado com aquela capacidade, talvez ainda mais com as mnemónicas complexas que revelam quando explicam o modo como são capazes de reter e encontrar na memória tudo aquilo: 
“É fácil: O primo Raul nasceu no mesmo mês em que me casei – só que eu casei a 3. Assim só tens de somar 15, que é o dia em que faz anos a tia Lelé, só que em Agosto...” 
De modo que a Clarinha, minha irmã mais velha e um autêntico elefante, válido até à quarta geração de parentesco e vizinhança, no assinalar de efemérides, ficou naturalmente chocada com a minha ignorância quanto ao dia da morte do nosso próprio pai. 
Posto isto, achei melhor não esfrangalhar totalmente a credibilidade junto dela e telefonei à Susana, minha irmã mais nova, a precisar um outro pormenor: 
“Vai fazer dois anos que o pai morreu, não é...?” 
No Algarve apenas desde a véspera, sentada na borda da piscina a vigiar o Docas que se transformava progressivamente numa beterraba após tantas horas a mergulhar-sair-cá-para-fora-e-tornar-a-mergulhar, ela ficou atarantada com tal categoria de pergunta a meio de Agosto: 
“Agora até me puseste parva... Deixa ver: A mãe morreu a 3 de Março de 1999 e o pai no dia 9 de Novembro..., eu achava que de 2007... Sim, há mais de um ano já foi, já houve uma missa de aniversário, estiveste lá! 
Ainda a conseguia ouvir, no meio do vozear e do chapinhar, chamar o Zé Maria, o filho do meio, para ir confirmar junto do marido, o meu cunhado Gil – de quem nunca recordo o dia, ou sequer o mês, de aniversário – o ano da morte do sogro, meu pai. 
Do lado de cá do fio, melhor seria dizer da rede, senti a consciência a caminho do excesso de peso. Desconhecia o dia da morte do meu próprio pai, não tinha a certeza quanto ao ano em que isso tinha acontecido e, ainda mais inconfessável, não voltara a pôr os pés no cemitério desde o dia do funeral. É que nem sequer nos dias tradicionalmente votados a isso, seja de um modo personalizado, como o dia do seu aniversário natalício ou o dia da sua morte ou, até, em feição mais institucionalizada como no dia de Todos os Santos. 
Mas este pormenor espacial sempre era mais fácil deixar no vago.... 

© Poalha de Tipuana. Fotografia de Pedro Serrano, Lisboa, Junho 2009.

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