09 março 2013

LEMBRO-ME BEM DO SEU OLHAR


Eu roçava os vinte anos e, embora tímido como um gamo, era um tanto arrojado nos procedimentos.
Trémulo de admiração, descobrira Fernando Pessoa por esses dias, gostava especialmente de um poema, atribuído a Álvaro de Campos, que se iniciava com um:
Lembro-me bem do seu olhar.

Ele atravessa ainda a minha alma.

Como um risco de fogo na noite.

e casava bem com a minha sensibilidade de então. Andava com ele em permanência na cabeça.
Nessa tarde, como em muitas outras tardes, estava sentado à mesa de tampo de mármore de um café, uma sebenta da faculdade aberta sob os olhos, aguardando a minha atenção ao conteúdo. Mas, sentada na mesa em frente, estava, lendo também, uma maravilhosa personagem, e de cada vez que mexia as mãos para virar uma página – do que só poderia ser poesia – ou acomodar uma madeixa de cabelo, a minha percepção ganhava asas. Era ela bela e delicada como uma figurinha de marfim e os gestos daquelas mãos, esguias, brancas, clamavam por uma sonata, um soneto, uma miniatura a óleo… Mas não me ajeitando com pinceis, nem tendo por ali a porra de um piano, comigo só restavam as ideias e as palavras por dizer (como diria o próprio Pessoa). Então levantou-se, desapareceu, etérea, para os lados do quarto de banho das senhoras…
À época ela passeava-se pelos corredores inacessíveis dos vinte e cinco anos, ou por aí, e eu, como disse, roçava os vinte – não me atreveria nunca a enfrentar esses degraus de incerteza! Então sarrabisquei – em letra quase de imprensa para ter a certeza de ser bem entendido – uma frase inspirada que, célere como um cupido, lhe deixei sobre o livro abandonado na mesa. Dizia:
Ao vê-la, ao observar as suas mãos, assalta-me uma emoção que alguns poderiam, grosseiramente, apelidar de estética…
E voltei ao lugar, olhando em volta a controlar possíveis atenções de outros clientes daquele escaninho do café. Uns minutos mais tarde ela reapareceu, reparou em si própria no espelho que forrava a parede por cima da mesa, sentou-se. Depois apercebeu o papelito encrespado, alisou-o, leu-o, a surpresa e um leve rubor tomaram-lhe conta da face. Quando levantou a cabeça para olhar em volta, identificar o criminoso, já eu, desinteressante e anónimo, estava abismado nas páginas áridas da minha sebenta.
© Fotografia de Pedro Serrano, Braga, 2010.

2 comentários:

  1. Não sei se lhe chamaria tímido, ou simplesmente sonso!

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  2. @ Anónimo: Call me any name you like I will never deny it (Bob Dylan, "Farewell Angelina")

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