25 dezembro 2015

O FIEL AMIGO

Depois que deixei a casa dos dos meus pais para morar longe, costumava receber, por Dezembro, um telefonema do meu pai a informar:
“Passou aqui o teu amigo Fernando a deixar uma encomenda para ti.”
Quando chegava ao Porto, lá estava, na cave, equilibrado a um canto da despensa, um grande embrulho, atado por corda e com formato de espantalho, e um jerrycan, de cinco ou dez litros, onde, através da opacidade do plástico, se conseguia adivinhar um líquido grosso, lento ao movimento, esverdeado.
Era a lembrança de Natal do Fernando, consistia num bacalhau (inteiro e teso no seu leito de sal como uma ministra das finanças) e num garrafão de azeite. Tudo quanto era preciso para assegurar uma boa consoada para além das intenções. As batatas, as couves, eu que as arranjasse que um amigo não pode fazer tudo!
Sempre um pouco surpreso – quem mais fazia uma coisa daquelas numa época daquelas? – telefonava a agradecer o presente, a dizer “Fernando, és maluco, para que estiveste...”. E, do lado de lá do fio, ele quase se desculpava, embaraçado pela generosidade que eu punha a nu naquele momento.
O meu pai morreu, a casa foi fechada e por mais uns pares de anos era uma das minhas irmãs que, já pesava Dezembro, telefonava a comunicar “passou aqui aquele teu amigo, a deixar uma encomenda. Onde queres que a ponha? O embrulho cheira um bocado…”
“Eu sei, é bacalhau...”, respondia, pois ele telefonara-me previamente, a saber onde havia de entregar o presente nesse ano. “Arruma aí onde puderes, que eu passo a buscar mal possa...”
Este ano, não recebi o usual telefonema a desejar bom Natal do Fernando. Apesar do grande esforço, das campanhas a oferecer telemóveis desbloqueados e pacotes de chamadas grátis, as companhias telefónicas ainda não conseguiram que os cemitérios aderissem ao seu esforço para por todos os portugueses em contacto na quadra natalícia. Fiquei às escuras, e não me restou alternativa à de pegar no telefone e ligar a saber como ia tudo lá por cima, junto da família que ele deixou em Setembro, quando decidiu mudar-se para paragens onde o bacalhau é sempre espiritual.
© Fotografia de Pedro Serrano, Aveiro, Novembro 2015.


03 dezembro 2015

NOI

Noi é supervisora nos restaurantes do hotel, o que não a resguarda de a encontrarmos transportando pesadas bandejas de comida e bebida para a  piscina. Há sempre quem prefira fazer as refeições por ali, há até aqueles que ordenam as bebidas de dentro de água para que as suas férias correspondam ao sonho que viram na TV, para que possam tirar uma fotografia que, mais tarde, desencadeie nos amigos um revirar de olhos e um suspirado “deve ser paradisíaco!” ao ver o copo da piña colada pousada no rebordo da piscina.
Noi - o nome significa pequeno em tailandês, é de uma pequena cidade a escassos quilómetros da fronteira com o Laos e veio para o sul atrás de um emprego; deixou toda a família no norte, apenas trouxe com ela a pequena Pitchie que, agora com três anos, era na altura ainda um bebé de mama. Mais tarde, Pitchie ficou com a avó materna e Noi regressou sozinha ao resort onde ainda trabalha, mas todos se deram mal com a distância e as saudades e agora a avó de Pitchie reside também em Samui, toma conta da neta enquanto a mãe trabalha.
Noi trabalha no hotel nove horas por dia, às vezes dez horas por dia. Quando comentamos que é muito (o salário por aqui ronda os 190 euros mensais), ela não concorda, diz até que quando faz o regime de 10 horas diárias tem direito ao fim de semana de folga. Noi está explicitamente muito contente com o trabalho que conseguiu arranjar e manter, e fala dos patrões com respeito e reconhecimento: quando estão de serviço os empregados comem no hotel e têm acesso até quatro refeições por dia, pequeno-almoço, almoço, jantar e “como se diz quando se come tarde, à noite?”
Para além da ceia – Noi refere a distinção seguinte quase em voz sussurrada – pode gozar 6 dias de férias por ano. Noi, uma rapariga grácil, inteligente e atenta ao mundo à sua volta, tem consciência de que é uma privilegiada, que teve sorte na vida:
“Na Índia e na China não é nada disto; até aqui, na Tailândia, isto não acontece em todo o lado. Há quem trabalhe doze horas e não tenha direito a refeições, a folgas ou a férias.”

A satisfação rasga-lhe os olhos e os lábios quando, como uma abelha mestra, ciranda incansavelmente entre mesas ou recebe as pessoas à entrada da Sala Thai, o requintado restaurante tailandês do hotel onde a reencontramos todas as noites, juntando as mãos e elevando-as num gesto de prece, uma saudação que, por estas bandas, significa “curvo-me perante ti”. 
Sairá daqui às dez ou onze da noite e, ao chegar a casa, encontrará a pequena Pitchie já a dormir. Tem sorte, pois a menina honra o nome que lhe deram, o qual, na língua tai, é equivalente a “plácida”. Pitchie é alcunha, uma corruptela inglesa de “Peaceful”. É que, bem veem, Noi tem de falar e pensar em inglês a maior parte do seu dia.
© Fotografias de Pedro Serrano, Koh Samui (Tailândia), Dezembro 2015.