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A Lição de Anatomia, Rembrandt, 1632. |
A
autópsia correu bem, graças a Deus que na morte violenta a causa se revela na
generalidade bastante evidente, mesmo antes que se descomponha o defunto.
O
cadáver esperava-nos, pontual, no acanhado anexo por trás do hospital que fazia
de morgue. Pontual, também, foi o Sr. Medina que já lá se encontrava com uma
expressão de formalidade contrita semelhante àquela com que nos fora aguardar
ao helicóptero. Como ele próprio explicou, é grande a dificuldade do Ministério
da Justiça em recrutar magistrados que venham viver, ou até cumprir uma missão
de dois ou três anos, à Graciosa. É isso que explica não existir na ilha nem
juiz nem delegado do Ministério Público. Mas o Sr. Medina tem fé e rumores de
que, talvez em breve, seja colocado alguém na ilha e que as carências mais
gritantes sejam supridas; que os processos deixem de se continuar a acumular na
sua mesa... Enquanto aguarda, fechado no seu mistério de confidencialidade, Sr.
Medina vai desempenhando todos os papéis que a função exige: a de chefe da
secretaria, a de quase autoridade judicial; a de escrivão; a de zelador das
moradias geminadas que aguardam os magistrados, estando destinada uma ao Juiz e outra ao Dr. Delegado
do Ministério Público.
Vamos
concordando e olhando o morto, enquanto o vemos retirar, com método, os ferros
de autópsia, propriedade do Tribunal, de uma maleta que trouxe com ele e onde
está igualmente acondicionado o papel pautado e timbrado onde irá registar o
que nos “aprouver ir ditando durante a necropsia”.
No
longínquo começo da manhã uma Citroen Dyane transportara-nos, mais às nossas
malas, desde o heliporto improvisado até ao local onde iremos morar durante um
ano. A casa dos médicos fica por cima da única farmácia da ilha e é suficiente
desviarmo-nos por vinte centímetros na porta de entrada para nos encontrarmos
no meio de estantes de vidro e caixas de medicamentos, frascos de xarope,
embalagens de supositórios e ampolas bebíveis. Ao atravessarmos o umbral há
quem tenha vindo espreitar à porta da farmácia: doentes pasmados, de receita em
punho, e um tipo de bata branca que nos sorri com embevecida cumplicidade.
Pousámos as malas e damos uma volta de reconhecimento pela casa, embora haja
pouco a ver: dois quartos de estuque enxovalhado, uma sala acanhada com um sofá
arrombado e uma janela dando para o largo fronteiro à farmácia e donde se
avista um lago em forma de rim, bordejado por uma cáfila de uma espécie de
grandes pinheiros de ramos horizontais e com algo de artificial, pois parecem
ter sido espetados ao tronco à martelada. São araucárias, como nos irá informar
o Sr. Medina um dia destes, num futuro que ainda não bateu à porta. Para já
faltava-nos ainda ver a pequena cozinha, com ar de ter sido pouco usada.
Escancarámos os armários para encontrar, na face interior da porta de fórmica
de um deles, uma inscrição de boas-vindas sarrabiscada a marcador preto: “BEM
VINDOS À ILHA DA LOUCURA”. O recado deve ter sido deixado, para nos
desmoralizar, pelos três gajos com que nos cruzámos à porta do helicóptero ou
será que eles, à sua própria chegada, um ano antes, já encontraram aquilo
desabafado pelos colegas que os
antecederam?
Estávamos,
cada um no quarto que escolhemos sem entusiasmo, a atirar alguns dos pertences
para dentro das cómodas quando ouvimos a porta ranger ao fundo das escadas e
uma voz gritar para cima. Espreitei: um tipo arruivado, de bata branca e muito
curta que lhe conferia aspecto de bibe, galgava as escadas com desembaraço,
como se estivesse habituado a fazê-lo; ia-se apresentando:
“Gaspar,
auxiliar de farmácia. Tudo quanto precisem... Já assim era com o Dr. Francisco
e o Dr. Alberto...”
E o
Gasparinho, como logo informou preferir ser tratado, demorou-se por ali e na
sua fala um pouco pevidosa foi-nos pondo a par de que se tinha dado lindamente
com os médicos anteriores; que tocava trompete no conjunto da terra, e que na
sexta-feira – como em todas as sextas e sábados – haveria baile na
colectividade; e que já ouvira zunzuns de que tínhamos uma autópsia às duas da
tarde... Depois, como se fosse o proprietário, lamentou a nossa casa e ela não
ser tão boa como quanto mereceria a dignidade dos clínicos da ilha, mas que
estava a ser ajustada entre a Secretaria Regional dos Assuntos Socais e o
Tribunal a cedência de uma das casas dos magistrados, pois estavam vazias há
anos e tinham outra decência que não aquela estreiteza do andar por cima da
farmácia. O Sr. Medina não nos teria já falado nisto?
Não,
o Sr. Medina – após ter solicitado a nossa licença – despira o casaco e usara
as costas da cadeira como cabide. Retirava agora uma resma de papel de uma
maleta e, depois de o alisar batendo com ele no tampo da escrivaninha que havia
na morgue, informou-nos que irá registando o quanto lhe formos ditando durante
a necropsia.
Olhei
o Rui e, sem pestanejar sequer, trocámos entendimento. Ambos tínhamos já
compreendido que a encenação era veste importante no destino a que acabáramos
de chegar, mas ele foi mais rápido do que eu: estendendo-me o bisturi e
assumindo o tom de um Groucho Marx, em diálogo com o Harpo, comunicou, muito
profissional:
“Queira
proceder, colega...”
“Cabrão”,
mal tive tempo de pensar, enquanto revia mentalmente o pouco que retinha das
aulas práticas de Medicina Legal. Para efeitos de autópsia, um ser humano
cortava-se como um pacote e, no fim, costurava-se como um saco. Abria-se como
um vulgar caixote de cartão, cujas badanas da tampa tivessem sido justapostas com fita-gomada: metia-se o
bisturi por baixo do osso do queixo e ia-se por ali abaixo até bater com a
navalha no osso púbico, onde se dava o golpe por terminado. A variação
consistia em que, ao contrário do caixote em que o percurso da navalha era
rectilíneo, no caso dos seres humanos fazia-se o contorno do umbigo com o
bisturi, tal qual o condutor que respeita ajuizadamente a circularidade a uma
rotunda.
Sentado
à sua secretária, fitando-nos de sob os sobrolhos fixos da massa negra dos
óculos, o senhor Medina vigiava-nos atentamente os movimentos em torno da mesa
de autópsia, e esperava, de esferográfica em riste, o nosso recitativo. “No
que se refere ao hábito externo, trata-se de indivíduo do sexo masculino, de
raça caucasiana e aparentando uma idade de aproximadamente...”, continuei por
ali fora, dirigindo-me ao Rui cerimoniosamente e como se, todos os quatro,
estivéssemos contidos na moldura de um óleo do Rembrandt.