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À direita do renque de senhoras, D. Irene espreita entre dois ombros. |
Saída
a cerca do hospital e virando à esquerda, anda-se um minuto e está-se lá. Se o
quisesse, a D. Irene poderia vir à porta de casa gritar “o almoço está pronto”
que a gente ouvia-a das consultas. Eu, pelo menos, ouviria, o meu gabinete tem
janela para a rua; o do Rui, alinhado ao meu do outro lado do corredor, dá para
a parte de trás do hospital.
Irene
Correia da Silva, viúva, é quem, por acordo, renovável, com a comissão administrativa
do hospital e na ausência de restaurantes e cantinas na ilha, cozinha para os
médicos que, desde 1976, vem do lado de lá do mar fazer comissão. É uma senhora
de baixa estatura, como a casa térrea onde habita e, quando batemos à porta,
vem abrir encaixada nas suas chinela de flanela e mira-nos, algo ansiosa, de
trás dos óculos sem aros. Na casa mora também uma filha, a Libinha, e o filho,
o senhor Oriolando, que é solicitador e trabalha no registo civil; mas comemos
sempre sós na pequena sala de jantar – penso que desencontram as horas das
refeições para nos deixar em sossego ou, porventura, para que fiquem eles em paz.
A D. Irene é uma santa senhora mas uma péssima cozinheira, talvez seja isso que
explica o ar ansioso com que nos franqueia a porta e ainda o facto de não
comermos todos juntos, pois evita assim o hipotético julgamento ao vivo dos
seus hóspedes sobre a qualidade da comida que serve. Mas estes novos hóspedes
são descarados e, chegados há pouco mais de um mês, já exprimem desagrado pela constância
do menu e pela, alegada, fraca qualidade da confecção. Ingratos, os estupores
não sabem cozinhar e, lá na terra deles, estavam habituados a comer melhor...
Em
casa da D. Irene a ementa é perenemente a mesma: filetes de peixe frito ou, em
alternância, fatias de vitela estufada, afogadas num molho tipo Knorr e, como
acompanhamento universal, arroz branco. Como prelúdio, mas só o engolimos ao
jantar, há sempre o mesmíssimo caldo, passado, de cenoura e abóbora e, como
sobremesa, queijo da ilha c/ compota, uma pasta de um alaranjado ainda mais
vulcânico do que a cor da sopa. O melhor é a sobremesa, apesar de ser sempre a
mesma; o pior é o arroz que, nos dias que correm, cumpriria como cimento para
enrolar sushi: pegajoso, na clássica categoria ‘unidos venceremos’, pior ao
jantar, pois, como sobra sistematicamente, a D. Irene aquece-o usando uma
metodologia culinária que desconhecia: põe água a ferver num tacho e mergulha no
cachão da ebulição, dentro de um coador de alumínio, o arroz anteriormente cozido.
Já nos queixámos, quer do método de confecção quer do aquecimento; o Rui até já
lhe demonstrou a excessiva coalescência dos grãos, catapultando até ao tecto da
sala uma garfada. Revelou-se inútil: a senhora ficou ali especada, a olhar com
desânimo os grumos colados no estuque, resvés ao lustre, mas foi tudo. Em
desespero, num dos telefonemas que a minha mãe faz para aqui a saber de mim,
pedi-lhe que me explicasse como se faz arroz e, como a minha preguiça para o ir
registando fosse grande, ela ofereceu-se para me escrever sobre o assunto. E
assim fez: uma carta, chegada umas duas semanas depois no correio trazido pelo
helicóptero, continha uma descrição pormenorizada e literária de como fazer
arroz, e em que a tonalidade que a cebola deveria atingir no estrugido era
comparada à tez trigueira de algumas das heroínas do Jorge Amado – é o que dá
ter uma mãe poetisa.
Apressei-me
a transmitir à D. Irene os passos da receita – o tom de caramelo da cebola refogada, a quantidade de água e a sua
relação com a quantidade da gramínea – mas não adiantou; o arroz continuou a
chegar-nos à mesa na intragabilidade do costume e o tecto da sala foi ganhando
novas minúsculas estalactites.
“Mas
não há, ao menos, outro peixe na ilha?”, perguntava eu, enjoado dos filetes de
abrótea. “Não se pesca mais nada, com tanto mar aqui à volta?”
A D.
Irene, parada à ombreira da porta, abanava os caracolinhos da cabeça numa
negativa desconsolada; afirmava que havia pouco quem pescasse e que os
pescadores não consideravam os outros peixes que, às vezes, vinham dar à rede
ou ao anzol como sendo peixe “discreto”, devolvendo-os ao mar. Barrando a minha
fatia de queijo curado com a compota, fiquei a compreender que, por ali, “discreto”
queria dizer “apropriado”.
“Temos
mesmo que passar nós a cozinhar”, dizia ao Rui em desespero, “não aguento isto
durante um ano!”
Ele
encolhia os ombros e, na sua nova encarnação de delegado de saúde, subdelegava
em mim a iniciativa de mudar o panorama. Fui tentar, usando a carta da minha
mãe e um pacote de arroz, mas a chávena de produto que ela recomendava
pareceu-me exígua para duas pessoas e acrescentei mais duas. A água evaporou-se
num ápice e ficámos, pelas bordas, com um tacho de uma pasta encruada que,
embora não tão engrumada nem tão anémica como a da D. Irene, era igualmente
intragável.
“Foda-se”,
desabafou o Rui à segunda garfada, “esta merda não se consegue comer!”
Cabisbaixo, deitei as culpas ao fogão e garanti que tudo iria sair melhor quando nos mudássemos para a casa nova.
Cabisbaixo, deitei as culpas ao fogão e garanti que tudo iria sair melhor quando nos mudássemos para a casa nova.
Fotografias (de cima para baixo): 1. Santa Cruz da Graciosa, fotógrafo desconhecido; 2. Pedro Serrano, Siena (Itália), 2016.
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