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Libinha, sentada no braço do sofá. |
Às
sextas e sábados há baile e, não se passando nada mais animado na terra, toda a
gente cai lá, incluindo os médicos de serviço. Não é necessário sequer avisar
no hospital para onde vamos, as irmãs sabem-no de antemão e o Viegas – se
estiver de apoio à urgência e impedido de ir – sabe-o igualmente. No dia
seguinte perguntar-nos-á como correu e não deixará de mencionar um qualquer
detalhe relacionado com a nossa presença no baile para mostrar que está ao
corrente de quanto se passou.
Às
sextas, o baile é no Clube e ao Sábado na sede da Filarmónica Recreio dos
Artistas onde, se a noite estiver boa, será no pátio, ao ar livre. Em ambos os
casos, a banda que abrilhanta a dança é a mesma e conta com o Gasparinho da
farmácia no trompete, um tipo tisnado e barbudo, que trabalha na oficina de
automóveis, faz de cantor principal e toma conta do saxofone, e, para grata e
grande revelação, a Dona Nizalda Barcelos ao teclado da organeta eléctrica! Suponho
que a dimensão desta surpresa vem das coordenadas em que a minha mente a
balizara: D. Nizalda pertence a uma das famílias mais aristocráticas da
Graciosa, é extremosa mãe de filhas casadoiras e, mesmo no espectro musical, é
quem dedilha o órgão e dirige o coro na Igreja Matriz de Santa Cruz. E se pode
não receber às terças nos exactos moldes da Condessa de Gouvarinho, a porta da
sua moradia de tectos em masseira e paredes apaineladas está generosamente
aberta a uma certa categoria de visitantes.
O
Rui e eu fomos merecedores dessa distinção e atravessámos o umbral pela mão da
Libinha, filha da D. Irene, para um serão que, rapidamente e com naturalidade,
se transformou numa rotina: alinhar no prato os talheres do queijo da Ilha com
compota e, na companhia animada da Libinha, descer a rua quase até ao Rossio – perto
de onde moram os Barcelos – bater a uma porta que prontamente se abre e deixar
correr um pedaço da noite encaixados num sofá a ver o Dancing Days, que passa aqui de modo diferido, uma dezena de
episódios atrasado em relação ao seriado emitido no Continente. Esse retardamento
na emissão fica a dever-se à censura interna que o actual patrão dos Açores – o
chefe do governo regional, Mota Amaral – estende sobre o seu arquipélago,
mantendo-o adormecido e ao largo da agitação perniciosa do mundo, como fez o
velho Salazar com tanto proveito ao longo de confortáveis décadas. Vamos
tomando contacto com essa rede vigilante em cada dia, e ganhando consciência de
que é premeditada nos apartes abafados do Oriolando, sombriamente camuflado
numa oposição temerosa como se ainda estivéssemos nos dias da ditadura. Os
telejornais nunca são os de Lisboa e as notícias são filtradas conforme as
conveniências regionais e os bons costumes. Quanto ao Dancing Days, a perigosa telenovela brasileira, suponho só ser
tolerada pelo poder local graças à pressão gerada pelo seu imenso sucesso no
Continente, sucesso com tal repercussão pública que o nome de uma das
personagens – Vera Lúcia – se tornará popular ao ponto de influenciar os nomes
escolhidos para baptizar as novas recém-nascidas. Mas os olhos da censura são
cinzentos e observam o mundo de uma seteira: a novela expõe a desagregação
familiar, há uma mãe solteira a quem nenhum castigo esmaga e as actrizes
atravessam os 173 episódios da saga muito decotadas para os padrões de clausura
do Dr. Amaral. Deste modo, há cenas que desaparecem e se isso interfere com um
cristalino entendimento do enredo tanto pior para quem se prende com detalhes.
Mal queremos acreditar, julgávamos que cinco anos depois da revolução, de os
cinemas democratizarem os tiques amanteigados do Brando no Último Tango em Paris, os excessos escatológicos da Grande Farra ou a rouquidão da Linda
Lovelace em Garganta Funda, julgávamos
que o país era já arejado e uno; mas não: ainda restam torrões enquistados pela
teimosia e alheamento próprios do cacique, o que explica que alguma desta gente
se refira aos restantes conterrâneos como ‘os cubanos’, aqueles que, na sua
visão, estariam a dar cabo do país, enquanto alguns outros perseguem a pureza
original da FNAT[1] e do
Deus de Ourique. Para nós é desconfortável viver isso, potencia a sensação de
isolamento que estar rodeado de mar induz; é como estar expatriado.
Mas
em casa dos Barcelos nada disso se faz sentir, eles tentam viver a sua vida e é
tudo: a Dona Nizalda recebe-nos com um sorriso acolhedor e o Sr. Francisco (ou
deveria chamar-lhe D. Francisco?) pergunta se “vai um calicezinho”. O
calicezinho é eufemismo para um copázio de whisky das Lajes, puro, um produto
referido na ilha com os cuidados do material contrabandeado. Não que seja
proibido ou ilegítimo, mas é transaccionado fora do circuito comercial, livre
de impostos e a um preço estonteantemente barato e, para além do mais, alguém
tem de ir lá (à base americana na Terceira) e arranjá-lo nas devidas
quantidades; encafuá-lo nos helicópteros da Força Aérea portuguesa sem que
tilinte em demasia. Todos na ilha falam do assunto numa socapa de iniciados,
com a epiderme arrepiada pelo clandestino.
“Vai
um calicezito, doutores?...” pergunta D. Francisco como se de senha se tratasse
e vendo em nós um sólido pretexto – clínico e de hospitalidade – para que possa
beber mais um copo a coberto da censura doméstica.
Após
o cálice, o Sr. Barcelos tenta reter-nos um pouco junto dele, tem uma
biblioteca cujas estantes albergam as séries completas dos livros Vampiro e da Colecção Argonauta e não lhe escapou o brilho nos meus olhos quando
lhe pus a vista em cima, o desabafo de que a minha arca e, com ela, os meus
livros ainda não tinha chegado. E na vila que não há uma biblioteca ou uma
livraria, o máximo que encontráramos fôra dois ou três livros do Jack London à
venda numa papelaria quase drogaria, entre lápis Viarco e alguidares de
plástico.
“Dr.
pode levar daqui o que quiser, quando quiser; tenho todo o gosto...” oferece o
Sr. Barcelos já aquecido ao sol da sua generosidade, praia sobre a qual a D.
Nizalda acaba, porém, de lançar a sombra ao recordar-lhe que são horas da
telenovela, que as pequenas já esperam na saleta e que nós, os médicos da
terra, esperamos também e que, certamente, somente estamos ali a reter-nos por
cortesia.
Entre
os bibelots da saleta há um televisor sobre uma mesinha e, defronte, um sofá
onde nos vamos acumulando; para quem já não cabe ficam os braços como assento,
arrasta-se uma cadeira se preciso for. Como espectadores estamos nós; as
pequenas – que inclui as filhas dos Barcelos; a Libinha e uma ou outra amiga que poderá já lá estar ou ter
chegado entretanto. Nem a D. Nizalda nem o Sr. Barcelos assistem, suponho que
as razões se repartem entre o não se interessarem, o consideraram aquele tipo
de entusiasmo um nada inconveniente para a sua idade, ou o quererem deixar a
juventude à vontade. É claro que nós os dois, repimpadamente sentados no
coração do sofá, no seio daquela gruta de intimidade criada pelas portadas
cerradas e por luzes enfraquecidas, fazemos render o que já sabemos sobre o que
irá acontecer no ecrã e elas ainda não, o que provoca um suspense nas raparigas
que pode, no seu paroxismo, atrever-se até a uma palmada leve num dos nossos
braços ou a uma interjeição de desabafo sobre a nossa desapiedada crueldade.
Mas o máximo a que nos permitimos, em termos de esclarecimento, é um “vocês já
vão ver”, um enunciar de charada em linguagem críptica que enfurece as damas. Compete-nos
também insinuar algumas observações educadamente brejeiras perante certas
cenas, o que provoca risinhos, uma resposta sibilina a condizer da Libinha –
que é a mais velha e a de resposta mais pronta – e o olhar oblíquo, de quem se
inicia por desfiladeiros submarinos, das mais novas. Para elas, aqueles serões
em Santa Cruz são uma coisa totalmente nova e um aroma de êxtase habita as
respirações suspiradas que emitem de cada vez que António Fagundes – na pele de
Cacá, o galã distante – surge no ecrã. Tomando partido, discutimos preferências
femininas com as nossas vizinhas de sofá, as quais, em disfarçada desvalorização
da beleza adolescente de Vera Lúcia (encarnada pela actriz Lídia Brondi),
preferem destacar os superiores atributos de personalidade ou presença de
outras actrizes.
E
eis que agora, uma sexta à noite, tropeço na D. Nizalda, sentada ao órgão no
Clube, destilando o acompanhamento das canções ao ritmo das quais os presentes
dançam, e lá estão os médicos de serviço, e as filhas dela, e lá está a Libinha
e lá está até, a um canto, o Sr. Oriolando – filho da D. Irene e irmão da
Libinha – que nunca dança mas se fica a olhar, copo na mão, deixando tombar
sobre tudo e sobre todos uma mirada de tímido sarcástico, como se olhasse um
circo ao qual não pode escapar, prisioneiro na sua própria ilha.
O
Clube tem duas salas e na primeira, ao cimo das escadas, fica o bar, um simples
balcão de madeira enxameado de gente a pedir cervejas e outras bebidas, pois
comida é coisa que não servem, talvez umas pevides. É nesta sala que se
acumulam, em pé, visto não haver mesas ou cadeiras, os homens, a quem só é
permitido passar à segunda sala quando uma nova música começa; até lá terão de
se manter, ordeiros e compactos como sardinha em lata, a supor o que se passa
além da linha invisível do vão em arco que separa as duas salas. Do outro lado
do arco aguardam as senhoras, isto é, os seres dançáveis mais todos os paus de
cabeleira que sobram à dicotomia: mães, avós, tias, vizinhas; todas as mulheres
da vila parecem estar ali, sentadas em bancos corridos ao longo de todas as
paredes – excepção feita àquela onde pontifica o conjunto musical –,
esquadrinhando com pupilas inexpressivas todos os centímetros quadrados do
soalho de tábuas à sua frente. Se pretender dar um pé de dança, só resta ao
pobre candidato o tentar colocar-se, o mais próximo que conseguir esfuracar, do
vão entre as salas, acotovelando os que estão de um lado e do outro do seu
corpo espremido, e tentar aguentar-se nessa tensão elástica até que soe o
primeiro acorde de piano, de guitarra ou do órgão. Então, e só então, lhe é
permitido lançar-se em frente numa disparada e correr para a menina da sua eleição,
a qual, se estiver para aí virada ou ainda descomprometida, lhe dirigirá um
levíssimo aceno de aceitação após ter lançado uma mirada às acompanhantes.
Nestas
circunstâncias, como sacudirmos sapatos apertados, é um tremendo alívio dançar
com a Libinha depois da tensão que foi andar às voltas com uma moça que fomos
buscar ao banco, iludidos pelos acordes em tom menor que anunciam uma música
lenta. Para começar, a rapariga não fala e responde por monossílabos ao que perguntamos,
o que faz com que seja impossível concentrarmo-nos numa relação de tipo
interpessoal e nos sobre todo o tempo do mundo para apreciar a paliçada de
olhares que nos verrumam desde as paredes em volta. Todos os presentes sabem
que somos os novos médicos, só isso já seria prazer suficiente para as
desocupadas, mas, para além do mais, acontece que estamos a tentar apertar a
filha de X, a sobrinha de Y, a irmã de Z, o que só acrescenta novos temperos ao
interesse da vigilante ou da tricotadeira de intrigas. Mais tarde, aprenderei a
desenvolver técnicas especiais de fuga e ocultação, uma das quais consiste em
fazer rolar o par pela sala até longe do local onde a fui convidar à dança e a
coberto do coro grego que a acompanha, mas mesmo essa manha pode não ser
verdadeiramente eficaz: no lambril mais distante, do outro lado da sala, estará
sempre alguém que trocará informações, sem levar nada por isso, com o inimigo.
Que alívio, então, que a música tenha terminado e que seja obrigado pela
convenção a regressar à andro-metade do Clube, onde tentarei alcançar o bar e
obter uma cerveja que irei beber, pelo gargalo, pois não nos dão copo, junto do
Rui ou cá fora, ao fundo das escadas onde o ar está carregado de humidade mas
respirável.
Retomada
a coragem, voltarei a subir, pois a noite é uma criança e antes estar ali do
que em casa à espera que me chamem ao Hospital. Desta vez, se dançar, irei buscar
a Libinha, pois a D. Irene nunca aparece no Clube e o Oriolando, para além de
não ter vocação para chaperon, não
aguenta um baile até ao fim, a um momento olhamos para o canto onde cismava e já
desapareceu na noite. E, depois, a Libinha já é grande, mais coisa menos coisa
deve orçar a nossa idade, talvez mais;
viveu os anos do liceu em Angra do Heroísmo, é divertida e emancipada q.b.
Enquanto rodamos pela sala vai-me explicando quem é quem, incluindo, como um
bónus, a descrição da complexa relação entre as donzelas disponíveis e a
respectiva teia familiar, os tabus que é interdito pensar em transpor.
“Mas
isso já não se usa, Libinha...”, digo, incrédulo.
“Meu
caro” – ela dirige-se-nos com frequência usando esse vocativo, amistoso e
irónico – “aqui é assim: vai ter de
se habituar.”
“Pfffff”,
sopro como uma válvula de panela de pressão, provocando um breve turbilhonamento
na franja do seu cabelo curto.
(1).FNAT – Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho,
que viria, após o 25 de Abril de 1974, a ser substituída pelo INATEL.
© Foto de cima: data, local e fotógrado desconhecidos.