Não
deixa de ser apropriado que, no mar, a velocidade, isto é: o cumprir da
distância, se meça, não em quilómetros, mas sim em nós, uma escala de medida que não se percorre com a linearidade do
quilómetro e terá de ser deslindada com a perseverança de quem, após os
desfazer, recompõe um novelo apanhado por um gato. Estamos aqui a uns meros 45 km da Terceira, 49 de S.
Jorge e 69 do Faial e do Pico. De carro, isto far-se-ia numa meia-hora, uma hora,
vá lá; hora e meia se as estradas tivessem curvas. Por vezes consegue-se ver S. Jorge em dias claros, lá longe, um cisco
acharutado ao rés do mar. Parece que há gente especialmente dotada que avista,
de quando em vez, o Pico e, dizem que, em certa curva da estrada do Faial, se
pode lobrigar o contorno da costa sul da Graciosa. Pessoalmente, nunca vi nada
de nada a não ser o mar e esse pode ser branco, azul ou verde, tudo depende do
céu e do vento.
Esta
situação de só se ver mar, de se ouvir o mar em todo o lado, de a ilha ser
plana como um prato e o horizonte se aguar constantemente, mexe connosco e é
substancialmente agravada pela consciência de não podermos sair daqui quando
nos apetece. Lá, na longínqua pátria, estivesse onde estivesse, por inóspito
que fosse o lugarejo, enfiava-me num carro, num comboio ou numa camionete e ia
onde se me desse ir, e a diferença que isso faz! Aqui, estamos todos presos,
coarctados, pousados nesta lágrima de
pedra no meio do mar, às voltas como formigas numa côdea semissubmersa. Porto
de mar não há e os barcos passam ao largo, são
traiçoeiros os baixios da ilha. Quanto ao helicóptero – Pumas da força
aérea – está vedado ao público em geral, para o usar naturalmente é necessário
estar a morrer e que o médico de serviço o ateste à Autoridade Marítima, que
gere a lista de putativos passageiros com mão de ferro e que, graças a este
poder, alcandorou ao trono um dos tipos mais irascíveis e poderosos da terra. O
delegado marítimo, um simples cabo ou sargento em qualquer outro lugar, tem
aqui o poder da escolha e da retaliação e pode riscar um vulgar mortal da lista
de passageiros para a próxima libelinha. O helicóptero vem habitualmente uma
vez por semana, às terças de manhã, isto partindo do princípio que o tempo está
de feição, pois pode acontecer que não lhe seja autorizado sequer levantar da
base de Angra, ou enfrentar condições de vento e névoa que não lhe permitem
pousar na Graciosa; chegaremos, no pino do inverno, a estar três semanas sem
comunicações com o exterior, sem correio, sem substituição das garrafas de
oxigénio da urgência. Quando pode voar e pousar, o Puma traz bens essenciais
(correio, medicamentos) e algumas pessoas: dignitários, funcionários; doentes
que regressam de internamentos e exames complementares de diagnóstico que foram
fazer a Angra, a S. Miguel ou mesmo a Lisboa. Ao fazer-se de novo ao caminho,
pouco mais de dez minutos após ter chegado, leva consigo uma dezena de eleitos
que, estando de boa saúde, olham com regozijo os infelizes que pasmam ou acenam
na periferia do campo de futebol enquanto eles se afastam no etéreo.
“Prá
semana há mais”, rosna o delegado marítimo de forma a apaziguar quem não foi e
a anunciar que, para a próxima tudo passará, igualmente, por ele e pela sua
vontade.
Como
médicos da ilha apercebemo-nos bem da teia de favores e das maroscas da
autoridade marítima, pois temos o poder de desencadear, em situação de emergência
médica, uma evacuação, que é como se
chama a uma vinda excepcional, não-programada, do helicóptero. Quando isto
acontece e o delegado marítimo vem a tomar conhecimento, sente-se como o corno
do provérbio, mas, entretanto já nós acertámos com o hospital da Terceira e a
Força Aérea a recepção e o transporte do caso urgente e a Sua Autoridade nada
mais resta do que remexer à pressa na papelada e reordenar os jeitinhos
alinhavados, pois mesmo em circunstância urgentes o helicóptero tem espaço para
mais alguém além do doente e do seu angustiado familiar.
Resta
à ilha que fica, como prémio de consolação, excitar-se como um voyeur a espreitar
a chegada do pássaro sagrado. Toda a actividade de Santa Cruz estremece e se
extingue nessa hora. Geralmente sente-se a aproximação do helicóptero, o
barulho do motor e do rotor das pás ouvem-se uns minutos antes e então, uns a
pé e outros de carro, tudo se apressa em êxodo para o campo de futebol: eis o
Araújo que sai apressado dos Correios, atravessa a rua e salta para o assento
traseiro da nossa Dyane fumegante, enquanto os doentes que aguardavam vez pela
consulta vêm à porta do hospital assistir eles próprios à visão diferida do
acontecimento que se aproxima, chegando alguns a correr mesmo rua fora em
direcção ao heliporto, pois se nós lá estamos eles poderão também gozar a cena
sem o risco de perder a consulta.
“Então,
Sr. Araújo”, temos ainda tempo de perguntar ao nosso viajante, “mais uma viagem
a buscar o correio?”
“Sim,
sim”, responde, acrescentando misterioso: “E pode ser que chegue também algum
no estado líquido... Eu logo telefono, se tiver notícias.”
Quando
chegámos à orla do relvado já lá está o Gasparinho da Farmácia, de bata branca
ao vento e o Sr. Medina, assertoado na sua gabardina de abas estralejantes, prestes
a receber em mãos a correspondência oficial; e, pronto a avançar, de cabeça
baixa, a proteger-se da guilhotina circular das hélices, o Sr. Francisco
Barcelos, que nos confessou enjoar com as curvas do helicóptero e a quem
prescrevemos Dramanine para o efeito, despede-se, nervoso, da esposa e das
filhas, pois embora o negócio que o leva a Angra apenas lhe vá gastar um dia,
só regressará a casa daqui a uma semana, no próximo voo do Puma.
Observamos
quem chega, e se desce alguém de novo, ainda nunca visto nas ruas da ilha ou no
Açucareiro e o Oriolando acena-nos do lado de lá do campo, encostado à trave de
uma baliza. Desta vez, que a gente conheça, regressou o Pombo da consulta a que
o mandámos ao SLAT de Angra. O Pombo é o veterinário da ilha e está tuberculoso,
tem uma caverna no pulmão direito que ombreia com a das Furnas. Não se trata ou
trata-se de forma irregular, fuma como um cão, bebe de mais, e tivemos de o
enviar, quase à força, a uma consulta para avaliar a sua situação e tentar
perceber o risco de contágio que envolve. O Rui, que é o delegado de saúde,
ameaçou que o afastaria compulsivamente do trabalho e que o proibíamos de
aparecer em nossa casa se nada fizesse. O gajo tem trinta e muito pouco anos e
é bom homem, apenas um tresloucado incapaz de gerir a sua vida e o seu mal.
Veio aqui parar, do continente, sem ter consciência para onde vinha e, embora
já cá esteja há mais de um ano, acho que ainda não se apercebeu do que lhe
provoca tanta instabilidade, e reage numa girândola de direcções e confusões
enquanto queima cigarros e engole copinhos de whisky, brandy e Angelica, um
vinho licoroso de produção local com 17 graus de potência. Não sabemos a origem
da tuberculose dele, se das vacas com quem lida no emprego ou se de outro
mugidor de duas patas, pois a tuberculose abunda por aqui: o que temos a
certeza é que, após muitas fungadelas e umas tossidelas arrancadas às costelas,
o ter cuspido um escarro demonstrativo, estriado de sangue, para a floreira ao
lado da nossa porta não é bom sinal, nem para ele nem para a saúde das nossas
ervas daninhas!
“Venho
carregado de frascos e de drogas”, diz-nos numa voz roufenha, sentado no banco
de trás da Dyane, “vou ter de engolir um cocktail delas durante oito meses, no
mínimo! Depois, tenho de voltar lá...”
“Estás
fodido, Pombo”, dizemos-lhes para o animar.