O
jantar foi chucrute ou, descodificando, salsicha fresca estufada com couve
branca, receita de confecção rápida e apta a satisfazer a fome fácil dos
convivas que enxameavam em torno da mesa, procurando atestar o prato antes de
se dispersarem pela grande sala, prato nos joelhos, por cadeiras e pontas de
sofá.
Para
além da Nita e da dona da casa, pessoa muito amistosa e parecendo feliz por nos
ter ali, havia também uma velha senhora de cabelo branco e pose reservada que
não participava na refeição, como se já tivesse comido ou esperasse para o
fazer quando a chusma desaparecesse, e um rapaz alto, sério e com um traçado de
testa e queixo que lembrava o Marlon Brando, mas que, apesar disso, partilhava
linhas de parecença com a irmã. Pela conversa e pelas observações polidas
da Raquel e Gabi, fui concluindo que o
tal António era o dono da casa e se encontrava, de momento, na Suíça, onde ia
amiúde por razões de trabalho. Mas o assunto logo se desviou para como tinham,
no Porto, ficado os pais das irmãs Pais (Raquel e Cristina) e a Tita, mãe da
Gabriela. Entretanto, alheio àqueles jogos florais, eu fôra espreitar a longa
varanda de tijoleira que se estendia ao longo da fachada traseira da casa e
para onde abriam as janelas de sacada das salas de jantar e de estar,
unificando também exteriormente aquele espaço comum. Estava uma noite morna, o
Gonçalo fumava um cigarro debruçado na balaustrada que deitava sobre o quintal
e, sentado numa cadeira de plástico, o Heitor comia as suas couves com
ruminante aplicação. Voltei para dentro pela porta de sacada que dava
directamente para a metade que funcionava como sala de estar e sentei-me ali,
num sofá, a folhear uma Casa & Decoração
pousada sobre uma pequena arca de madeira que servia como mesa de apoio.
Devíamos começar a pensar em nos pôr a andar, afligia-me, olhando o relógio e constatando
que já eram oito e meia; de outro modo íamos arranjar uns lugares de merda. Bem
que podia ter ficado a comer na vila, na tasquinha da estação... Por um ruído,
a atenção desviou-se da revista: uma porta abrira-se à direita e entrou na sala
uma rapariga que olhou em volta, desconfiada, como se ver aquele maralhal não
fosse o que mais lhe apetecesse. As suas linhas de feição permitiam perceber
que era aparentada com os outros dois filhos da casa, embora fosse menos
tisnada do que a Nita, os olhos fossem mais claros e os cabelos castanhos se
ondulassem discretamente para dentro na base do pescoço e se empertigassem em
onda sobre uma metade da testa.
“João,
anda jantar, filha. Tens aí pratos no rechaud...”
Ela
rosnou qualquer coisa e, à medida que ia saudando de beijinho, foi-nos sendo
apresentada por palavras maternas, que a iam louvavelmente desculpando pelo
atraso, mas estava a estagiar no IPO como parte do seu curso de enfermagem. A
visada ia-se servindo, calada, sem dar, sequer, troco aos incentivos carinhosos
da avó, que vigiava a quantidade de comida que ela pusera no prato e só agora
parecia aliviada do receio de que toda aquela matilha esgotasse as couves antes
da neta chegar!
A
mãe ia pondo a recém-chegada a par das mais recentes novidades, pois, ao fim de
uma breve hora, encontrara já teias de parentesco ou proximidade na maior parte
de nós, inclusive a feliz descoberta de ter sido companheira de carteira da
minha tia Teresa no Colégio Luso-Francês, no Porto.
Sentando-se
ao lado da avó, a aparecida nada reagiu às felizes coincidências, mantendo a
expressão fechada e parecendo entre o preocupada e o ansioso por se pôr a
andar, em flagrante contraste com a hospitalidade explícita e sorridente do
resto da família. Confesso que, ao fundo, sentado no meu sofá, achei graça
àquela antipatia pouco convincente, à falta de à vontade que quase a tornava
uma estranha na própria casa, e, à saída, despedi-me dela com especial
sublinhado, calculando que isso a irritaria e que não iria ter a
responsabilidade de a voltar a ver tão cedo.

Regressámos
ao Porto, acabrunhados na viagem por aquele silêncio que sempre sobrenada a
espuma dos dias cheios, e na semana seguinte perguntei, distante quanto soube,
à Cristina Pais se, por um acaso, não teria, que me pudesse dar, a morada
daquela senhora encantadora que nos recebera em Cascais. Ela demorou um
pouquinho, tinha ido procurar, à gaveta da mesinha do telefone, o livro de
endereços da mãe.
“Tens
aí onde se escreva? Aponta: rua Cesário Verde, 117...”
E
para Cascais enderecei um agradecimento que invocava Pessoa – discípulo
confesso de Cesário Verde – e o modo gentil e generoso como a dona da casa
abrira a porta a totais desconhecidos.
Nem
um mês passara sobre o agradecimento e eis-me, de novo, a pedir ajuda à mais
velha das irmãs Pais.
“Cristina,
por acaso não tens aí o telefone da João no Porto? Queria telefonar-lhe, a
convidá-la para jantar um dia destes...”
Ela
tinha e deu-mo, simpática mas relutante nas bordas. Anos volvidos, soube que,
no mesmo dia, telefonara à visada a dar conta do que fizera e avisando-a para
ter cuidado, pois que eu não era assim tão recomendável ou flor que se
cheirasse. Pobre e bem intencionada Cristina, que ficou com esse embaraço
atravessado, sobretudo quando dali resultou, em pouco mais de um ano, um
casamento. Se nos conhecesse bem a ambos, melhor do que nós nos conhecíamos a
nós próprios – ou se já tivesse a experiência de filhos adolescentes – teria
sabido que é justamente isso – contrariar o contacto – o que não deve ser feito
quando se quer evitar que dois jovens seres se aproximem.
A
João e uma amiga chamada Rita – uma loura de voz rouca que desencadeou estragos
na turba masculina que eu frequentava na época – visitavam a cidade por umas
curtas duas semanas, para um estágio geminado no IPO do Porto. Estavam
luxuosamente acampadas num apartamento que o padrasto da João possuía na Foz,
outrora alugado, mas, nesses dias do final de 1978, desocupado e onde os
aquecedores a óleo, há tanto tempo por usar, libertavam para o ar um atraente perfume
a pó evaporado. Fiz o tal telefonema e, para desespero da minha mãe que nunca
sabia por onde eu podia andar ou se viria dormir a casa, mudei-me praticamente
para a Foz.

© Fotografia ao lado: pedro serrano, Cascais, Rua Cesário Verde 117, Dezembro 2012.
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