Vinha
sozinho do Açucareiro quando me apercebi daquilo, ali mesmo, à frente dos meus
olhos. Um polícia percorria uns metros de passeio, não longe da entrada do
recinto do hospital, parava, voltava para trás, refazia o mesmo trajecto, todo
o percurso envolvido numa roupagem de intensa agitação. Abrandei o passo para
observar melhor. Eu conhecia aquele tipo, aliás quem não conhecia toda a gente
em Santa Cruz da Graciosa ao fim de seis meses? Aquele, especificamente, era um
continental como eu e estava na ilha numa daquelas situações, sempre mal
caracterizadas, de missão por bronca armada noutro local qualquer, isto é:
penava ali por castigo. Havia muito disso por todos os Açores e, para calhar a
Graciosa a alguém, o delito ou a escorregadela deviam ser especialmente gravosos
aos olhos da etiqueta e dos regulamentos da Função Pública.
Mas
aquele gajo, naquele momento, estava num estado de agitação mais do que
evidente, perdera o rumo, o fio à meada, e caminhava, para a frente e para
trás, sem fito como uma mosca volteando entre duas vidraças. E estava armado:
cassetete à cinta e pistolão no coldre.
Alinhei
o meu trajecto pelo seu rumo e, quando nos cruzámos, parei e cumprimentei
afavelmente, interessei-me por saber se estava tudo bem, pois achava-lhe –
disse – uma certa preocupação na expressão. Ele estava morto por transfundir o
nervosismo que o tomava, admitiu logo que se achava alterado, que “não se
sentia bem nele”.
“Ah”,
comentei com naturalidade, “isso pode ser tensão alta... Há quanto tempo é que
o Sr. Guarda não mede a tensão?”
Ele
não a media há muito, como é óbvio; um homem a rondar os quarenta anos não se
preocupa com essas coisas, a não ser que seja hipocondríaco e esses são, na
generalidade, uns meros seres com a ansiedade à flor da pele. Este tipo
parecia-me para além disso em termos de rotulagem psíquica.
“Então venha aí comigo... Vamos ver como ela
está e, se estiver muito alta, damos-lhe uma ajuda para a baixar; é perigoso
para si, para o seu o coração, andar com ela muito acima do que deve ser.”
Ele
deixou-se levar pelo braço como um menino pequeno; mas, como um menino pequeno,
eu pressentia, que, a qualquer momento, podia desistir da iniciativa e
desaparecer rua fora, outra vez, armado e à deriva pela vila. E o olhar dele,
que evitava cuidadosamente encarar de frente para não lhe estimular a sensação
de acossamento, não enganava: desvairado, de pupilas dilatadas, do tipo de quem
está em pânico perante a totalidade da existência. Sentado em frente a ele,
dentro do gabinete, enquanto lhe colocava a braçadeira no antebraço suado,
observava de perto o couro grosso do coldre, os sulcos estriados da coronha da
pistola. Do cassetete já ele se desfizera, espontaneamente, pois interferia com
a posição de sentado. Sentia-me tentado a propor que desapertasse e tirasse o
cinturão – “o Sr. Guarda não se quer pôr mais à vontade?” – mas acabei por
achar melhor não o fazer, o homem podia desconfiar do meu receio em querer
despojar um polícia dos seus ossos do ofício.
A
tensão arterial estava normal da Silva, apenas a máxima nos 135, como seria de
esperar num corpo tão agitado, mas, enquanto lhe tomava o pulso pegajoso, à
procura do ritmo da pulsação, eu ia antecipadamente torcendo o nariz e afirmando
que a tensão estava uma desgraça, que não admirava que não se sentisse bem,
pois uma tensão descontrolada é uma coisa que pode subir à cabeça...
Neste
encadeamento chamei pela irmã Noémia e, em voz claramente entendível, pedi-lhe
para preparar um endovenoso, pois “aqui o Sr. Guarda está com uma tensão
muitíssimo alta”. Ela limitou-se a acenar, como se eu lhe estivesse a pedir a
receita mais natural e apropriada do mundo: tratar uma tensão alta com um
poderoso medicamento para dormir e por uma via de administração de efeito
imediato. E assim se fez e o nosso amigo sofredor adormeceu mesmo antes de a
seringa – a freira injectava a droga muito lentamente na veia, como eu pedira –
estar vazia. Em seguida, desafivelei o cinturão, fechei-o com a pistola num
cacifo e fiz transportar o homem para o internamento. Enquanto a irmã Noémia
lhe canalizava uma veia, telefonei para a Terceira, procurei pelo colega psiquiatra
que me dera tão bons palpites sobre boleias em barcos e pedi conselho.
Aconselhou que começasse, de imediato, tratamento sistémico, de maneira a
acalmar o doente rapidamente e enquanto este se encontrasse num estado de
relativo torpor. Depois que o enviasse para Angra, onde o estabilizariam de um modo
mais permanente. Concordava comigo em que o doente não devia voltar já ao
serviço ou a poder usar armas.
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João e o famoso espremedor de citrinos. |
A
meio da tarde regressei a casa, estafado. O polícia ainda dormia o sono dos
justos e na sua veia pingava um soro refrescante e terapêutico. E pensar que há
pouco mais de duas semanas andava eu por Sintra! Como o regresso e o voltar à
rotina da Graciosa tinham já consumido as reservas de encanto que trouxera
comigo! Em Angra, no dia em que cheguei de Lisboa, o dentista arrancara-me o
dente e dera dois pontos largos de aproximação na gengiva que se debruçava
sobre o buraco negro, uma sutura de pontas generosas de molde a que pudesse
tratar de os tirar eu mesmo, ao espelho, quando a cicatriz estivesse bem
fechada – de outro modo teria de voltar a Angra e lá recomeçaria a saga de só
ter transporte uma semana depois. Estive tentado, confesso... Apanharia de novo
um avião nas Lajes e depois um táxi para Cascais ou para Sintra, directo para a
Quinta dos Lobos, agora já sabia onde
queria ficar, pediria pelo mesmo quarto com estantes onde o sol e a música de
fundo dos pássaros entrava pela janela aberta e me ia lamber à cama, na qual,
sem força para me levantar, jazia, abençoado, encharcado de luz,
momentaneamente esquecido de onde viera e onde teria de regressar, ausente da
ideia de comunicar à família que veraneava em terras continentais, e onde o meu
interesse mais intenso, logo que a vontade me regressasse ao corpo lasso, seria
o de me enrolar num toalhão e descer à cozinha dormente, a procurar um Compal
de laranja no frigorífico, ouvir o clic da lingueta e despejar nas goelas o
recheio da pequena lata. Era feito com laranjas amargas, não era um sumo
completamente natural, mas era bem conseguido. Inspirado nele, comprara na vila
um espremedor de citrinos, de plástico vermelho, anunciei à João que seria a
primeira compra para uma futura casa. Ela olhara-me, desconfiada e apreensiva.
Tinha planos para o futuro, talvez sair do país e ir trabalhar na Califórnia e
agora aparecia-lhe um quase desconhecido, ele próprio oscilante nas intenções,
ora próximo ora distante, a falar de lares e espremedores. Futura casa, futura,
sem saber quando nem onde; por ora nem força me assistia para me arrancar ao
colchão. Lá fora, a tarde caía, o quarto ensombrecia devagar, teríamos de nos
levantar para descer e ir comer à vila, espreitar restaurantes e fugir quando
de dentro mostrassem interesse por nós; antes ir procurar outro, até que a
ameaça de ser tarde e não haver onde comer nos decidisse.
Durante
os últimos dias, aflito pelo eminente regresso ao exílio como um habitante de
bidonville, comprei cassetes da Amália Rodrigues, do Marceneiro, dum disco novo
do Carlos do Carmo chamado Dez Fados
Vividos. Fado! Onde eu chegara! Estava um autêntico emigra, emigrado num
rochedo do meu próprio país, e a ideia de ter de voltar era como quem me
arrancava um dente.
© Fotografia do meio tirada por pedro serrano, Quinta dos Lobos, Sintra, Junho 1979.
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