17 junho 2021

OUVISTE ONTEM O 'EM ÓRBITA'?


 

1. Os dias da rádio

Uma tarde do começo de Junho de 1967 tomei dois eléctricos consecutivos para percorrer o caminho que separava o andar na Avenida da Boavista, onde morava, da casa dos meus avós maternos no Amial, quase um outro extremo da cidade do Porto. Mais sorte no trajecto teriam os meus dois primos, que moravam a uma distância que se deixava percorrer a pé.

A finalidade, o que interessava, era podermos estar, pelas sete da tarde, na vizinhança do rádio de casa dos nossos avós, pois esse aparelho, ao contrário dos de nossas casas, era dotado da vantagem dupla de ser Hi-Fi (alta fidelidade estéreo) e ter Frequência Modulada, à época conhecida por FM ou UKW.

O programa que queríamos (que tínhamos de) ouvir sintonizava-se no Radio Clube Português, só passava na tal frequência modulada - e não nas vulgares ondulações da Onda Média -, dava pelo nome de Em Órbita e ia para o ar entre as 19:00 e as 20:00, horário complicado que nos obrigou, para além das autorizações da deslocação, a um acerto suplementar entre os nossos pais e a nossa avó para que pudéssemos ficar a jantar em casa dela. É que eu ainda não fizera os catorze anos, o meu primo mais velho andava pelos onze e o mais novo acumulava somente uns vergonhosos dez. 

Para além de primos direitos e companheiros íntimos, partilhávamos os três uma intensa e desordenada paixão por música e eu soubera no liceu que, nesse fim de tarde, o Em Órbita iria divulgar, na íntegra (como era costume do programa) e pela primeira vez no país, o novo álbum dos Beatles, uma obra que dava pelo estranho nome de Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, posto à venda a nível mundial no dia 1 de Junho, mas que, a 12 de Maio, fora já para o ar em antestreia na Radio London, uma rádio-pirata inglesa. Havia no mundo quem já o tivesse ouvido, portanto, e as reacções, os comentários, os ecos, não podiam ser mais intoxicados! Era impossível deixar escapar aquilo e no liceu não se falava de outra coisa, pelo menos no círculo dos que não falavam de outras coisas. Em tudo isso matutava eu no eléctrico, distraído do que me rodeava, e tentando antever o que poderia resultar de um título que misturava patentes militares e corações solitários. Dizia-se que o disco, que demorara mais de seis meses a gravar, tinha uma capa fantástica; que continha as letras das canções; que não havia intervalo entre as músicas e estas passavam de umas para as outras sem pausa, estando todas ligadas como se fosse uma história única! Era ultra, era inconcebível!

A marca do rádio dos nossos avós era Graetz e, na verdade, o aparelho era muito mais do que simplesmente um rádio, pois tinha também um gira-discos incorporado e, na parte inferior do móvel, portinholas abriam para prateleiras embutidas onde se podi
am guardar discos, fossem eles os pequenos singles e EP (extended-play, com quatro músicas) ou os grandes LP. Estava tudo pensado e os lacados daquela peça de mobiliário animada concorriam com o verniz negro e os candelabros dourados do piano vertical, que também pontificava na sala de estar. Embora houvesse sofás e poltronas na divisão e um espesso tapete onde nos poderíamos sentar com macio proveito, preferimos dispor-nos, sentados em leque e de pernas cruzadas à índia, sobre os tacos primorosamente encerados do soalho: seria o modo de ficarmos mais próximos dos altifalantes, camuflados sob o tecido cru da fachada do móvel, por onde se iria verter o milagre sonoro. Davam as dezanove e por toda a hora seguinte nenhum de nós trocou uma só palavra. 

Ao jantar, a nossa avó, o nosso tio que morava lá também, interessaram-se pelo que tínhamos querido ouvir com tanto fervor, se fora bom, etc., etc., mas como se podia pedir a alguém para comentar uma experiência do domínio da comunhão mística logo após ela ter acontecido?! Depois de um sequíssimo "sim", um esquálido "foi bom", mantivemo-nos os três em silêncio, desertos de regressar a casa e rebobinar mentalmente, no silêncio dos nossos quartos, o milagre, preparando-nos já para os momentos que, no dia seguinte, ao entrarmos o portão do liceu, se seguiriam à pergunta:

"Ouviste ontem o Em Órbita?" 

2. Em Órbita 

Ao longo da sua existência de quase quatro décadas (1965/2001), o programa teve quatro indicativos musicais diferentes, mas, nesse dia de 1967, o silêncio que antecipava o arranque sonoro da emissão fora fendido pelas guitarras e a harmónica de Revenge, um instrumental do grupo inglês The Kinks e o primeiro indicativo do programa. Depois surgiu uma voz algo solene, encorpada e neutra no modo como articulava as frases, que, sem gastar demasiadas palavras anunciou o que se iria ouvir nessa emissão e citou o patrocinador do programa, nesses tempos a Sado Mar, uma empresa transitária e marítima de Setúbal. 

E era tudo: o locutor era único e anónimo, não se nos dirigia por "estimados ouvintes" e não havia anúncios entre músicas ou vozes a sobrepor-se antes de estas terminadas. Aliás, a maior parte das vezes não havia nada entre as músicas, apenas o silêncio das espiras, pois o Em Órbita apostava na passagem de discos inteiros de música anglo-saxónica! Um só LP poderia preencher um único programa e quem tivesse em casa um gravador de fita, seria um homem feliz! Claro que eu e os meus primos (ainda) não tínhamos uma coisa dessas, pois se eramos até obrigados a percorrer quilómetros para ouvir uma simples frequência modulada! Mas, nesses dias primevos, aspirávamos a tão pouco que até uma simples conversa de liceu era suficiente para preencher com a imaginação um programa que nos escapara por falta de requisitos sonoros. 

Assim foi durante cinco anos e muita da aprendizagem musical de gente como eu se fez por ali, escutando solitariamente aquele programa. Muito do que ouvi, do muito e brilhante que então se fazia na música popular (rock e folk) ouvi-o ali pela primeira vez e isso teve algo de um primeiro amor. Os ingleses Moody Blues, Procol Harum, Jethro Tull, Beatles, Led Zeppelin e Pink Floyd; o escocês Donovan; o recém-chegado Elton John (no seu magnífico primeiro álbum de 1970); os irlandeses Fairpot Convention (que antes disso se chamavam Fotheringay); os americanos Simon & Garfunkel, Peter, Paul & Mary; os Beach Boys, os The Doors; Bob Dylan (que tinha direito a uma rubrica especial); Crosby, Stills, Nash; Blood, Sweat and Tears; Chicago Transit Authority (logo abreviados para Chicago), os Jefferson Airplane e os Seatrain; os canadianos Leonard Cohen, Joni Mitchell e Neil Young. 

Para além da preferência pela música composta e interpretada pelos seus autores às canções soltas, o Em Órbita não passava música de outras nacionalidades que não fossem as que se exprimiam em inglês. Não havia espaço para vedetas radiofónicas, para o nacional-cançonetismo ou para as xaropadas latinas ou francesas dos top da paróquia: era um programa elitista e não usava paninhos quentes nem se desculpava; era assim e quem não gostasse que ouvisse outra coisa, pois não faltavam programas nas emissoras nacionais. 

Todos os anos, pelo final do ano, era nomeado um melhor álbum do ano e recordo que, em 1970, essa escolha recaiu sobre Bridge Over Troubled Water, de Simon & Garfunkel, que saboreei isolado num quarto de um hotel em Viseu, pois já tinha conseguido o meu próprio rádio com FM, um tijolo que me acompanhava para todo o lado. Em total concentração, ouvi desfilar perante os meus ouvido incrédulos joia atrás de joia, como era possível tanta inspiração seguida!? Para além da maravilhosa canção que dava título ao disco, havia ainda 'The Boxer', 'The Only Living Boy in New York', 'So Long, Frank Lloyd Wright', 'Song For the Asking', 'Cecilia', 'Keep the Costumer Satisfied'... Não havia cliente mais satisfeito, mais confortado do que eu no final, ao bater a porta do quarto para ir, então, juntar-me aos meus pais na sala-de-jantar do hotel Grão-Vasco. Mas, se distinguia os melhores com sobriedade, o Em Órbita tinha também uma rubrica para chicotear o que considerava o pior do ano e 'Strangers in the Night', de Frank Sinatra, recebeu a nódoa mal foi editado, assim como o foi, sem contemplações e para grande choque meu, 'The Ballad of John and Yoko', dos próprios Beatles!

Em 1968, como um prenúncio da linha de evolução posterior do programa, o indicativo do programa mudou-se, sob influência de Kubrick e do filme 2001, Odisseia no Espaço, para a impressionante abertura do poema sinfónico Also Sprach Zarathustra, de Richard Strauss.

Em 31 de Maio de 1971 o Em Órbita acabou e isso foi um grande desgosto, quase ao nível da mágoa que, um ano antes, constituíra o fim dos Beatles. Todos nos perguntávamos o porquê, só muito depois saberia o que seria lógico supor: a música popular anglo-saxónica, como a conhecíamos, atingira o seu estado moribundo, talvez Woodstock tivesse sido o primeiro sinal... Os anos 70, apesar dos casos de génio isolados (como Frank Zappa, Paul Simon, Lou Reed, Van Morrison; os novos Queen ou os Dire Straits), não conseguiram manter o antigo fulgor. Quem concebera e fundara o Em Órbita sentiu isso antes de todos nós...

3. Nova pele para uma velha cerimónia

Mas em Janeiro de 1974 o programa regressou e voltou de tal maneira transformado que, quando o ouvi pela primeira vez na sua nova pele, nem queria acreditar que fosse o mesmo! Mas era: lá estava o locutor anónimo, sintético e de voz neutra; o patrocinador único (desta vez a Atlantis, uma marca de objectos de cristal da Vista Alegre) de quem a produção do vidro era descrita de forma quase científica. Só que o novo Em Órbita era agora um programa de "música erudita", isto é: durante duas horas não passavam senão música clássica! E não era sequer uma qualquer música clássica: a escolha ia, sobretudo, para a música barroca do século XVIII e outra ainda antes dessa, renascentista e, até, medieval. E novos nomes se juntaram à minha aprendizagem, ao destilar do meu gosto musical, que, agora com 20 anos de idade, era capaz de acomodar outros horizontes. Compositores como Bach, Haendel, Vivaldi, Buxetheude, Pachebel, Rameu, Couperin e, do lado dos intérpretes (sempre que possível em instrumentos da época) Ton Koopman, Nikolaus Harnoncourt, Karl Richter, Jordi Savall e outros nomes que jamais ouvira ser pronunciados! 

Rapidamente me viciei no novo formato e, antes da hora do jantar, adorava escapar-me com o meu tijolo para o quarto de banho, encher a banheira de água tépida, enfiar-me nela com a cabeça apoiada na almofada da esponja, e ficar ali a disfrutar a magnífica acústica dos azulejos e da música barroca.

4. Alicerces e agradecimentos

Só muito mais tarde, já grande - quando o querermos entender o que nos sucedeu nos arrasta em busca de detalhes sobre a história das coisas -, alcancei o que fôra o Em Órbita e os obreiros por trás de tudo aquilo, pois, nesses dias da adolescência, aceitava o todo como se me chegasse directo do Olimpo e sem necessidade de explicação: acontecia, não havia melhor, e pronto.

A vontade de conhecer quem estava por trás daquilo, quem eram os locutores, era um desejo, frequente e antigo, dos ouvintes, pelos vistos, mas a tudo isso o Em Órbita respondia com "um programa feito por nós, dito por mim", sem revelar quem era o "nós" ou o "mim". Este variou ao longo dos anos, mas, na minha opinião, a voz que melhor encarnou o programa foi a de Cândido Mota, uma cara que descobri só muito anos depois e que em nada correspondia às minhas expectativas de ouvinte! Era um tipo com uma cara normal!  

Soube também que, e como seria de esperar, que nos anos pré Abril de 1974, o programa mantinha, de quando em vez, questões com a omnipresente e omnipotente censura e 'Masters of War', de Bob Dylan (1963) seria interdita, bem como algumas outras canções de Joan Baez e Peter, Paul & Mary, todas as que contivessem letras que se pudessem aproximar da dita "crítica social". Igualmente proibida foi 'Atlantis', de Donovan Phillip Leitch (1969), por conter a palavra "democracia", assim como foi barrada a ida para o ar de 'The Unknown Soldier', dos Doors (1968), por ser uma coisa pacifista que condenava a guerra, precisamente quando nós tínhamos uma a decorrer a bom ritmo em África.

Jorge Gil, 2003.

Finalmente, e já sem a face do espanto que me tomaria se o tivesse sabido nos anos 60 ou 70, tomei conhecimento de que os fundadores, os ideólogos do programa, eram apenas estudantes universitários de vinte e poucos anos e que o pai da ideia (Jorge Gil) era um estudante de arquitectura que gostava de pintar nas horas vagas. Quanto aos discos que passavam, no Portugal modorrento e fechado dos anos 60 e inícios de 70, lá estava o irmão (José Gil) que estudava na Suíça e os mandava; um conhecido (Mário Martins) que fazia a escolha de discos a editar na Valentim de Carvalho; o tipo que trabalhava na TAP e os trazia de Londres e dos Estados Unidos... O costume nesses dias onde tudo nos chegava de fora e embrulhado numa certa clandestinidade, mesmo que se tratasse apenas de música.  

 

Fundadores: Jorge Gil, Pedro Albergaria, João Manuel Alexandre. Outros colaboradores: José Luís Magalhães Pereira (autor de algumas rubricas inseridas no programa), Diogo Saraiva e Souza, Manuel Violante.

 

Locutores (por ordem cronológica): Pedro Castelo; Cândido Mota; José Nuno Martins (1969, tendo passado nesse Verão os recém-saídos álbuns Songs From a Room, de Leonard Cohen, e Abbey Road, dos Beatles); Júlio Isidro; Jaime Fernandes; Fernando Quinas; João David Nunes (este na fase clássica do programa).

 

Indicativos: Fase pop/rock/folk: 1. Revenge, The Kinks, composição de Larry Page e Ray Davies, instrumental do álbum The Kinks, editado em 1964 [no ar de 1965 até 1968]; 2. Also Sprach Zarathustra, do poema sinfónico de Richard Strauss, composto em 1896 e baseado em Friedrich Nietzsche [no ar a partir de 1968]. Fase clássica: 3. The Fairy Queen, de Henri Purcell, 1635, uma adaptação operática da peça Sonho de Uma Noite de Verão, de William Shakespeare [no ar a partir de 1974]; 4. Deutsche Messe, D. 872 (mit  Gebet des Herrn), de Franz Schubert, composta em 1827. 

 

Emissoras e horário: Inicialmente das 19:00/20:00 no Rádio Clube Português, depois entre as 19:00 e as 21:00 horas (eliminando inclusive o noticiário das 20:00). Em 1979 mudou-se para a Radio Comercial, não sem em anos anteriores (1971) ter feito contactos para eventual programa na Emissora Nacional, que rejeitou o programa. 

Desde 3 de Abril de 1998 até que terminou, em 2001, o Em Órbita mudou-se para a Antena2, onde ia para o ar semanalmente, às sextas-feiras, entre as 23:00 e a 01:00. Na Antena 2, comemorou os 35 anos de edição, no dia 1 de Abril de 2000, com a primeira audição em Portugal da Paixão Segundo S. Mateus, de João Sebastião Bach, na reconstrução da obra feita por Ton Koopman. 


Indicativos do programa (videos/audio):


1. Revenge (The Kinks)


2. Also Sprach Zarathustra (Richard Strauss)




3. The Fairy Queen (Henri Purcell)


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4. Deutsche Mess (Franz Schubert)





Nota: O título do ponto 2 é uma piscadela de olho a New Skin for the Old Ceremony, álbum de Leonard Cohen de 1974.

2 comentários:

  1. Talvez o melhor programa radiofónico de sempre, que ouvíamos religiosamente, e que contribuiu para a nossa formação musical.

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