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15 junho 2025

O PATO QUEBRADO

 

pessoas que exprimem uma vocação estampada na cara e veterinário teria sido o destino natural da Carlota se os ventos da vida não a tivessem soprado noutra direcção. A Carlota trabalha aqui em minha casa, três manhãs por semana, deve a temporada ir para os seus trinta e tal anos, e, como se fossem gente articulada, fala com os animais que por aqui têm vivido, sejam gatos ou a tartaruga grega, que há tantos anos como ela, se arrasta sem pressas pelo quintal. E o mais interessante nisto tudo é que os animais lhe reagem com idêntico entusiasmo e o Megabyte (a tal tartaruga helénica) vem alegremente ter com ela à porta da cozinha, quando ela desata a falar com ele pela manhãzinha... Foi para mim uma grande surpresa, reconhecer que uma tartaruga pode ser um bicho expansivo!

Em casa, a Carlota convive com — para além do marido e filho, com gatos e cães, coelhos, galinhas e patos, que conhece e nomeia um por um e a quem presta cuidados de toda a natureza, desde os afectivos aos culinários, não esquecendo os de saúde (é ela, por exemplo, que vacina os animais).
Pois uma outra semana, ligou-me uma tarde, muito preocupada com um patinho (teria pouco mais de um mês de idade) a quem um acidente estúpido quebrara uma pata! E ela já sabia o que aconteceria, se ele fosse abandonado para ali assim, à sua sorte, estropiado: deixaria de se mover, de comer e acabaria por morrer, o mesmo que acontece a um cavalo que fracturou uma pata e que tem de se abater. Desesperada, e como sou médico de formação, queria saber o que achava eu de aplicar, como remédio, uma tala à pata partida.
"Ele tem algum pedaço do osso de fora, alguma ferida aberta?", quis saber, pois se fosse esse o caso não iria resultar um tratamento tão básico como uma simples imobilização da fractura.
Não tinha, estava tudo intacto — apenas não se conseguia pôr de pé e quando o tentava a pata falhava-lhe e ele caía.
Sendo assim, e dando por boa a ideia dela de usar um pedacito de cana como tala, sugeri que, fendida a cana em duas metades simétricas, se forrasse a parte côncava da cana com algodão em rama, para que a dureza da madeira não magoasse a perna fragilizada.
"E como acha você que a aplique? De cada lado da perna, ou à frente e atrás?"
"Para que lado é que ele camba quando tenta andar?"
"Para o lado..."
"Então aplique metade da cana de cada um dos lados na zona partida e depois ate tudo com uma gaze, mas não aperte demasiado pois a perna pode vir a inchar com a inflamação."
E assim foi, e ao passar de uma semana, telefonei a saber como iam as coisas com o patito.
"Está ali com o irmão", disse, "parece melhor: levanta-se para comer e come com bastante apetite."
Uma outra semana decorrida (tínhamos combinado que conservaria a tala durante duas a três semanas) voltei a contactar para saber novas.
"Está muito melhor, quase fino, cresceu imenso! Dantes levantava-se só para comer e deitava-se logo, mas agora já anda por aí com os outros..."
"Você é capaz de arranjar umas cascas de ovos, de galinha ou seja do que for?"
Ela percebeu logo onde eu queria chegar: depois de esmigalhadas, as cascas, que têm muito cálcio, acrescentadas à ração do pato, ajudariam no processo de cicatrização do osso.
"Você conhece a Anabela, que mora aí na Praia, perto da escola onde andou o Zé? (o Zé é o meu filho). Ela uma vez pediu-me para lhe guardar ovos caseiros, para depois moer tudo no moinho com mais não sei o quê e tomar uns goles todas as manhãs. Diz que é muito bom para a saúde dos ossos e não sei mais o quê."
Não fazia ideia de quem seria essa Anabela, mas achei a ideia perigosa, pois os ovos caseiros têm a casca pejada de salmonelas, uma bactéria abundante no intestino de galinha e patos.
"Ela diz que os lava e esfrega muito bem antes..."
Retorqui que o procedimento adiantava de pouco, dado que sendo a casca dos ovos porosa, com a lavagem a bicharada mergulha alegremente para o interior do ovo.
E, para voltar ao que interessava, ajustámos que mantivesse a tala por mais uma semana na perna do palmípede. Depois disso poderia regressar-se a uma saudável normalidade e mesmo que o animal viesse a ficar com a marcha um pouco cambada e chocalhante, isso não se iria notar assim tanto, dado ser esse o modo natural com que um pato caminha pelo mundo. 

Fotografia de Carlota Rodrigues, junho 2025.