10 janeiro 2018

JOANINHA AVOA AVOA

Sabendo o que a casa gasta, é de temer o pior perante os pré-anúncios da não continuação de Joana Marques Vidal como Procuradora-Geral da República (PGR). Sublinhe-se que, segundo a Constituição e um acordo, em vigor, de incidência parlamentar firmado pelo PS e pelo PSD, nada impede que um primeiro mandato do PGR (de 6 anos) seja renovado.  Mas será que Joaninha, como era conhecida na escola primária, tem replicado no exercício do cargo a triste figura e o modelo de inacção que caracterizaram os seus antecessores – Souto Moura (2000-2006) e Pinto Monteiro (2006-2012)?
Não, precisamente, a actual PGR quebrou o arremedo de justiça que evitava incomodar os poderosos, ausência de incómodo que podia ser garantida pela conta bancária ou pelo estatuto político: Sócrates (operação Marquês), Salgado (caso BES), Miguel Macedo (vistos Gold), Tancos; e, os últimos podem ser os primeiros, operação Fizz, nome de código para o processo que envolve o ex-vice-presidente angolano Manuel Vicente.
Tudo isto que se citou tem a marca de Joana Marques Vidal, reconheça-se que foi preciso coragem e quando começou a acontecer nem queríamos acreditar no que os nossos olhos viam. Pois aí tem ela a paga pela mão dos seus ‘patrões’ actuais: rua, que se faz tarde! É que ficando na função – argumentam eles anemicamente – pode começar a afrouxar, a amolecer, com o intuito de se poder perpetuar no cargo e agradar aos que a podem reconduzir... Mas não tem sido precisamente o contrário?!
Pois, a gente sabe o que a casa gasta e, desse ponto de vista, é legítimo perguntar aos nossos botões, velcros ou fechos-éclair: quem se preparam eles para querer eleger? Alguém m﷽﷽﷽﷽﷽﷽﷽﷽treparam estes tipos para querer eleger?, algude vista, go e agradar aos que a podem reconduzir. sem a um certo nauntomais palatável, sem dúvida, talvez mais permeável; que diabo, a Justiça deve ser cega mas nem tanto... Ou será que, olhado de uma outra latitude, talvez se pudesse amaciar África com um sinal de fumo desta natureza, anestesiar a violenta reacção do actual presidente angolano contra a alegada interferência portuguesa? Ou talvez tudo junto, ou ainda faltem peças.
Enquanto aguardo que o tempo revele um pouco mais do mistério, dou por mim a trautear uma velha lengalenga: Joaninha avoa avoa/ Que o teu pai foi a Lisboa/ Com um saco de dinheiro/ P'ra pagar ao sapateiro
 

06 janeiro 2018

JÁ DEVIAS ESTAR NA CAMA

Subíamos a Shahid Bagat Singh Road, tínhamos acabado de jantar e que bem jantáramos. Era, portanto, noite e hora de as crianças estarem na cama. Na esquina seguinte deveríamos voltar à direita para a rua que nos levaria ao hotel. É nas esquinas que os pedintes de Bombaim se posicionam muito, questão de estratégia, pois vê-se quem chega de todas as direcções. Geralmente estão sentados no passeio, os indianos têm grande à vontade com o chão, em grupos quase exclusivos de mulheres e crianças. Vigiam atentamente e se percebem um olhar na sua direcção – por leve e disfarçado que seja – atacam de imediato. O enviado é, de habitual, uma criança, uma rapariguinha que se aproxima e nos estende a palma da mão por dinheiro, nos segue pela rua, insistente, por dezenas de metros, silenciosa, aqui e ali beliscando-nos o braço para nos relembrar a sua presença. O truque, o nosso truque, é nunca olhar, até que desistam.
Nessa noite, apesar de já muito passar das nove, havia ainda pedintes naquela esquina. Uma mulher, já de uma certa idade, acampada no passeio e uma criança, muito pequena, encostada às suas saias espraiadas, impossível não reparar. Mal sentiu o nosso olhar, a mulher, provavelmente avó, deu um toque na menina que se levantou prontamente, revelando o seu porte... Era tão nova que ainda não se equilibrava com total desenvoltura e apesar de qualquer desconto de estatura que lhe pudéssemos querer atribuir por alguma, eventual, desnutrição, não teria dois anos. Não, não tinha dois anos, comparei mentalmente com os minúsculos conhecidos e sobrinhos que a essa hora dormiriam nas suas caminhas confortáveis, em quartos de temperatura ajustada e dotados de sistemas de vigilância conectados aos ouvidos ansiosos dos adultos. Ainda mal andava, tinha a tocante falta de segurança na marcha de uma criança a quem os pais se apressam a seguir para lhes corrigir o passo ou amparar o previsível desequilíbrio. Mas a avó não se moveu, e a periclitante menina – enviada na nossa direcção – passou rente a nós e, distraída da missão, preferiu ir debicar o brilho da montra ao lado. Não tinha ainda a precisão, neurológica e psicológica, do alvo.
Para que a conseguisse segurar, dobrei uma nota de cem rupias em quatro, inclinei-me na direcção do chão e enfiei-lha na mãozita morena, fazendo-lhe uma festa na cabeça e apontando-lhe a avó. Mas isso já sabia ela, que essa coisa de notas e moedas tinha como mealheiro os grandes, e balançou sorridente para a avó que, vigilante no seu trono de cimento quadriculado, nos dirigiu um aceno grave de agradecimento. Retribuí o cumprimento e dobrei a esquina, iluminado por essa luz crua com que, sem aviso prévio, a realidade se pode manifestar.  
© Fotografia de pedro serrano, Mumbai (Índia).