30 novembro 2011

Um Novembro como esse

   Entretanto, na Prainha, o tempo continua de banhos.

© Foto: Pedro Serrano, Cabo Verde, 2011

23 novembro 2011

LUZ DO SOL


Afinal
Aquelas tais estrelas cintilantes
D’outrora
Não são mais que mica brilhante
Agora.
Recamavam o banco de granito
Onde me empoleirava a espreitar
A procissão oscilante sobre pétalas
D’outrora
E onde me sento a descansar
Agora,
Friorento, semicerrado e mole.
Sobrevivem-nos as pedras e
A luz do sol

© Fotografia: Pedro Serrano, Leipzig, Novembro 2011.

22 novembro 2011

Cantai uma canção nova ao Senhor*


© Fotografia: Pedro Serrano, Leipzig, Novembro 2011.
Sentada na fila à nossa frente, a menininha da foto, mal o primeiro acorde do órgão se fez ouvir na imensa nave, não teve hesitação em olhar para cima, à procura da fonte daquele som.
Lá no alto, naquele mesmo balcão, há 260 anos atrás, o homem que pedalava o instrumento dava pelo nome de João Sebastião Bach e todas as semanas gostava de estrear naquela igreja, de que era mestre-cantor, uma composição sua dedicada ao Senhor, pois era o modo de garantir que lhe pagavam o ordenado ao fim do mês.
Quem mais lucrou com isso fomos todos nós, os que viemos a seguir, inclusive a menininha do casaco vermelho.




*J.S. Bach: "Singet dem Herrn ein neues Lied", BWV 225.

12 novembro 2011

MARINA, MARINA!


Esganado de fome, ao avistar no horizonte a área de serviço de Santarém virei-me para a minha acompanhante e quase mais afirmei do que perguntei:
“Paramos aqui a comer qualquer merda?”
Ela acenou com a cabeça, eu apressei-me a fazer pisca e desaguei na zona do restaurante.
Estranhará o leitor menos avisado que tenha usado de linguagem tão desassombrada para com a senhora que seguia no banco ao meu lado, mas tudo se harmonizará se revelar que a Carolina T. é natural do Porto e não se choca com trivialidades. Em abono dela, posso ainda acrescentar que é pessoa que abriga na mesma alma um coração de ouro e um humor com um concentrado cáustico capaz de desincrustar a ferrugem de um submarino afundado nas águas de Matosinhos há cem anos.
Nesse dia, viajávamos de Lisboa, onde tínhamos estado a trabalhar a semana inteira, e como eu ia para o Porto, sendo ela de lá, partimos em boa companhia, o estômago a dar a uma da tarde, a ronronar, mas nós ignorando-o para não atrasarmos a saída e a chegada.
Após percorrermos o passeio dos tristes em volta dos expositores do self-service entrámos de cotovelos em riste com os nossos tabuleiros na zona das mesas, o pescoço esticado à procura de um local aprazível. Sentados, depois de uma fatia de broa aviada com rapidez, alcancei então o apaziguamento gástrico que me possibilitou circunvagar o meu olhar pela sala.
“Não olhe de repente, mas acho que está ali o Zé, aquele juiz amigo do Carlos e da Isabel...”
“Quem?!”, perguntou ela, virando a cabeça na direcção do meu olhar.
“O Zé, aquele amigo do Carlos que é casado com a Marina. Sabe quem é, não sabe?”, insisti, pois a Carolina era também visita regular da casa desses nossos amigos de Viana do Castelo.
“A Marina sou capaz de reconhecer”, disse ela sorvendo uma colherada de sopa, “mas a ele acho que não; penso que só o vi uma vez em Viana, e de raspão...”
“Pois acho que é ele que está ali, com aquela senhora velhota”, continuei, mirando com insistência o tipo barbudo e grisalho que, a duas mesas de distância, se afadigava com os talheres.
A Carolina, já de si personalidade reflexiva, estava concentrada na refeição e mantinha-se monossilábica, deixando largueza à minha tarefa de fixar o outro tipo, na procura de uma confirmação de identidade, suposição que se foi robustecendo, pois, às tantas, pareceu-me que o homem reparara em mim e me olhava com o mesmíssimo ar da pessoa que procura folhear outra nas suas memórias.
“É de certeza ele”, transmiti à Carolina, “a senhora é que não sei quem é; talvez a mãe... ou a sogra”.
Ela fitou-me com um olhar pouco interessado.
Entretanto, na mesa do meu interesse, o par dera por acabada a refeição e começava a levantar-se. Quando o vi em pé, calmeirão, o leve ar de urso desorientado e bonacheirão, tive a certeza que era o Zé da Marina e, à aproximação da nossa mesa, levantei-me célere e atravessei-me no caminho.
“Olá”, saudei, “então por aqui?”, cumprimentei, estendendo a mão ao Zé e dirigindo um aceno à senhora.
O tipo parou, apertou-me a mão, sorriu com familiaridade; encetámos uma conversação sobre o tempo que ia tão mau, o trânsito; o pararmos ali para comer qualquer coisa, encontrarmo-nos assim... Sentada à mesa, despachando uma salada de frutas, a Carolina disfrutava a cena com o interesse suficientemente disfarçado para lhe permitir observar mas não ser chamada a participar na efusividade circundante.  
E, finalmente, eu saquei a carta que era necessário jogar, aquela que me permitiria cimentar em definitivo as coincidência felizes daquele encontro:
“Então e a Marina...?”
O homem alvoroçou-se ao ouvir a palavra, os olhos brilharam-lhe, estendeu umas significantes mãos na minha direcção, e eu arquivei os meus 100 % de certeza de estar perante a pessoa certa.
“Olhe que vamos agora mesmo para lá!”, respondeu, “este mau tempo deu cabo do passadiço, desconjuntou uma série de tábuas e vamos ver como é que ficou o barco, parece que até houve alguns que ficaram a boiar, soltos pela marina!”
Despedi-me o mais rapidamente que me foi possível do entusiasmo do desconhecido, evitando olhar a Carolina que, com o recolhimento de quem acaba de regressar ao banco depois de tomar a hóstia sagrada, tinha enterrado a cabeça no queixo na tentativa de adiar por mais uns segundos a explosão de uma gargalhada.    

© Fotografia de Pedro Serrano, Matosinhos, 2011.

07 novembro 2011

GASPACHO


© Fotografia de Pedro Serrano, Montargil 2011.
Por entre as hélices cromadas dos moinhos de vento
Que trituram o crepúsculo de vermelho em pazadas
Parcimoniosamente medido, ascende em prumo lento
Um delicado fio de fumo branco das queimadas



05 novembro 2011

Sobre putas e vinho verde


Aos dezoito anos acreditava na redenção das putas e nas virtudes da escrita automática, actividade que praticava com três amigos numa mesa de sala de jantar ali perto da Rua da Quinta Amarela. Em substância, todas essas putas eram vagas como a lua que, em meses ímpares, cintilava no verniz da mesa.
Quando Aloísio lhe passou o bloco de papel, para excitar o gatilho da sua contribuição na nova rodada de escrita automática, leu a última linha que o amigo escrevera, depois a penúltima, e a antes dessa...
Uma tarde de Verão indolente, abatida sobre mim, que quedava espapaçado sob uma tília numa cadeira de convés, contou-me como fora violada numa passagem de ano num pequeno hotel de Londres, onde se entediava com a mãe e umas tias de província. Parece que o baterista da banda que tocava na sala anexa ao hall, um tipo despenteado e com a barba por fazer, já um pouco entrado nos anos e nos copos, a fitara toda a noite com insistência. Depois, sem que ela soubesse como, bateram à porta do quarto, a mãe já roncava no novo ano. Ele olhou com um ar descarado para a camisa de noite dela, para o ar ensonado e as coxas nuas e disse que tinha um quarto no andar de baixo, entre a recepção e a sala do pequeno-almoço. Ela (e achou na altura que apenas por tédio) disse “espera aí” em inglês, foi vestir umas calças e uma camisola por cima da camisa. A noite, contou-me, a boca enfiada na minha orelha, os cabelos negros a comichar-me os cantos do nariz, fora uma merda: o gajo estava incoerente dos copos, tratou-a com a brutalidade que entendeu conveniente a uma concordância tão rápida, e uma primeira foda nunca é nada de jeito, como toda a gente sabe mas ela não sabia ainda. Tinha ficado muito traumatizada, confessou-me a coitadinha, puta que a pariu e eu quase a pedi em casamento nessa tarde de Verão indolente sob a tília.
As putas que ele imaginava, pelo contrário, falavam pouco e moviam-se com o modo ausente de fantasmas, a cabeça meio inclinada, como se ocultassem um segredo iluminante; todas carregavam olhos angélicos e mãos de dedos finos cujos gestos ficavam gravados a preto e branco na memória como um filme das fronteiras da nouvelle vague. Respondiam a nomes simples como Joana ou Maria, havia uma estrangeira chamada Jeanne e uma canadiana sardenta chamada Marianne. Moravam em apartamentos quase vazios, um colchão no chão, esquálidos guarda-vestidos; nas noites invernosas rolos de cotão corriam pelo chão como as bolas de ervas sem raiz que rolam nos filmes americanos. Insone, escutando o vento nos estores, apanhava um livro dela do chão, onde ficara abandonado: eram os Pensamentos, de Pascal, na versão original francesa. Sim, podia ir longe com uma puta daquelas, ela podia até redimi-lo de um futuro incerto e demasiado teórico.
Em silêncio passou o bloco a Alexandre, levantou-se, foi espreitar pela vidraça. Lá fora, a chuva caía sem parar, alaranjada como gasolina no tracejado de chuveiro em torno dos candeeiros. Um carro passou, os passageiros embaciados fora de vista. Apeteceu-lhe uma francesinha, olhou para trás. Alexandre terminara o seu contributo, estendia o bloco a Álvaro; este fitou-o e, como se adivinhasse, disse:
“Prepara-te, a seguir és outra vez tu, André.”

© Fotografia de Pedro Serrano, Cabo Verde, Setembro 2011.

01 novembro 2011

SERPENTINANDO


Dir-se-ia que a finalidade de tudo estava concentrada em fazer mover pelo mundo aquela tira infindável de tecido. A faixa tinha uma largura uniforme, mas os seus motivos mudavam a cada três metros, ou por aí, como se fossem saris, capulanas ou outros panos estampados costurados numa sucessão infinita.
Agora eu e X fazemos parte de uma fila de gente que, em passo rápido, percorre uma estrada que ladeia um monte e serpenteia até ao cume. Há gente que transporta a faixa á nossa frente, vemos gente a empunhá-la nos braços estendidos nas curvas da estrada abaixo de nós. Aquela serpentina sem fim dá forma a uma bela imagem, todas aquelas pessoas contrastando em cor e movimento no verde luxuriante da montanha.
Fascinados, um tanto eufóricos com toda aquela azáfama, X e eu desatámos a correr por ali acima com os nossos metros de faixa, como se quiséssemos fazer levantar no céu um papagaio de papel, ultrapassando o pedaço de fila que nos antecede e caminha ordeiramente em direcção ao cume.
Ao chegar ao cimo avistámos um enorme edifício, envidraçado, parece-nos um centro comercial com mais luz do que o habitual. Umas dezenas de metros antes de o alcançar somos interceptados por alguém que é responsável pelo fluxo da marcha e nos diz:
“Então? Têm de ter calma! Já tivemos de abrandar o passo dos outros para que isto não se ensarilhe tudo!”
E, de facto, as pessoas que no chão cor de colorau da estrada se aproximam do edifício movem-se em câmara lenta, algumas avançam um passo para logo o recuar.
Entrámos no hall do edifício com os nossos pedaços de faixa bem esticados expostos nos braços. Uma rapariga morena, de cabelo encaracolado e húmido, dá mostras de estar ali para preferir, naqueles km de pano estampado, o meu pedaço. Estendo-o na direcção dela, ela dá um passo atrás.
“Não faças isso”, segreda-me X. “Assim os outros vão pressentir que ela quer o teu bocado, vão antecipar-se e roubar-lho...”
Encolho o gesto até passar ao lado dela, chegar a sua vez, e ela abrir os braços para tomar o meu pano. O meu pedaço, reparo agora, ostenta um padrão xadrez, uma combinação de cores em vermelho e negro.
“Tenho em casa uma mala de viagem, em napa, que condiz mesmo bem com o seu pano”, digo quando ela começa a envolver na cintura o pedaço de faixa quadriculado.

© Fotografia de Pedro Serrano, Porto 2011.