27 junho 2012

ORDENAMENTO DO TERRITÓRIO


Alemanha: antes e depois.

Na ressaca da II Guerra Mundial foi necessário dividir a Alemanha em fatias para que ela não ficasse com ideias. Os despojos foram partilhados entre a União Soviética, a Inglaterra, os Estados Unidos e a França. Com o seu pedaço e a rica experiência anterior em criar repúblicas independentes, a URSS imaginou a República Democrática Alemã (mais conhecida por Alemanha Oriental ou do Leste), território de grande utilidade para que o colosso comunista farejasse de perto o que se passava na Europa Ocidental.
O regime da Alemanha de Leste (a RDA) ficou conhecido pela sua ortodoxia e dureza e os russos não poderiam ter sonhado com melhores discípulos, pois nem nas suas mais devotas repúblicas federadas, como a Lituânia, a Ucrânia ou o Cazaquistão, conseguiram tanto ordenamento do território...
Um dos pilares da montagem e manutenção deste sistema foi o Ministério da Segurança do Estado (cuja sigla STASI se tornou famosa), um ministério totalmente dedicado ao policiamento político do país e arredores, com 90.000 funcionários a tempo inteiro e, no seus melhores dias, quase dois milhões de informadores, incluindo crianças, o que fazia com que a RDA tivesse cerca de 1 espião por cada 63 habitantes. Imagino que nas bordas da Península Ibérica o nosso ditador caseiro se babava de inveja.
A STASI, criada em 1950, teve as suas raízes na Gestapo alemã e absorveu com eficácia todos os métodos e requintes da sua congénere KGB com quem, aliás, mantinha estreita colaboração. A sua estrutura e interesses abrangiam todos os ramos possíveis da actividade humana, tendo até um departamento central cuja função era o controle do lixo, secção onde, como é do conhecimento geral, se podem obter informações vitais para o desenvolvimento de um país.
A sede nacional da STASI ficava em Berlim Leste, ocupava um quarteirão e tinha arquivos com cerca de 170 km de documentação. Mas nas outras cidades da RDA a STASI tinha filiais e Leipzig, no nordeste do país, era uma delas.
No passado Domingo, não em completo à vontade, subi as escadas da antiga sede da STASI de Leipzig, um edifício maciço e tristonho, agora transformado em museu, situado numa das principais avenidas da cidade e fronteiro à escola de música Felix Mendelssohn onde o Zé João e mais 600 alunos fazem os seus estudos musicais.
Há várias sombras que impressionam numa visita destas, a primeira das quais é a de ainda em 1989 tudo aquilo ser uma realidade operante e não o comboio-fantasma obsoleto em que os seus corredores se transformaram e onde o equipamento técnico repousa envidraçado: máquinas para abrir correspondência subrepticiamente, carimbos falsos de todas as cidades do mundo; cabeleiras postiças comidas pelo tempo; máquinas fotográficas disfarçadas em carteiras de senhora cujo couro engelhou...
Embora a STASI não fosse uma polícia política particularmente carniceira (nos anos 50 e 60 o cheiro a carne chamuscada na Europa era ainda uma memória vívida e a violência física mal vista), lá está, discreta na parte inferior de um placard, a fotografia a preto e branco de um pequeno forno crematório, uma coisa quase nada, quase só uma torradeira para o desenrasque de situações urgentes.
Mas uma das vitrines que mais provocam uma sensação de mal-estar, pegajosa e duradoura, é a que protege uns grandes frascos de vidro cilíndricos, com tampa de enroscar e umas flanelas amareladas enroladas lá dentro. Que porra seria aquilo,  enquadrado entre as máquinas fotográficas dissimuladas atrás de botões de casaco e os diminutos gravadores de fita acoplados a telefones? Pois é um catálogo de cheiros! Perante cada objecto suspeito, encontrado abandonado, os agentes da STASI aplicavam-lhe um pano altamente absorvente que captava as moléculas olorosas geradas pelo seu dono potencialmente fora da lei. Mais tarde, quando esse dono era chamado a interrogatório, sentavam-no numa cadeira com uma flanela nova dissimulada sob o assento, a qual se impregnava do odor específico de quem ali se sentara. Para a prova de compatibilidade entre as duas flanelas a STASI possuía (em 1988) 41 cães treinados para isso mesmo: cheirar quadrados de panos e providenciar evidência científica da culpa dos habitantes extraviados de Leipzig.
Finalmente, e isso é pormenor que só se sente cá fora, respirando o ar puro das ruas pacatas de Leipzig, os aromas das alamedas frondosas e dos seus jardins bem tratados, a gente fica a perguntar-se por onde andarão essas pessoas que ainda há menos de 25 anos faziam parte deste jogo repressivo. O que pensarão, hoje em dia, quando se cruzam, sorridentes e em liberdade, connosco e vão à sua vida como se nada fosse? Nada, é o mais provável.


Com excepção do mapa, © Fotografias de Pedro Serrano, Leipzig (Alemanha do ex-Leste), Junho 2012








ENTRETANTO EM BARCELONA...

Entretanto em Barcelona a madrugada invade o quarto e polvilha-o em canela

© Fotografia de Pedro Serrano, Barcelona, Junho 2012.

23 junho 2012

ENTRETANTO EM LEIPZIG

Entretanto em Leipzig as pessoas preparam-se para ver o Grécia-Alemanha em enormes ecrãs colocados pela cidade. Na véspera, o Portugal-República Checa animava todos os televisores e o comentador alemão torcia de forma mal-disfarçada por Portugal...
© Fotografias de Pedro Serrano, Leipzig (Alemanha), Junho 2012.

20 junho 2012

UMA MÃO TRAVESSA


Agora que o mundo está tão globalizado é provável que já tenha reparado no estranho fruto que aparece na fotografia aqui ao lado, pois é relativamente comum dar com ele nos escaparates de legumes dos nossos supermercados. Chama-se quiabo mas não se assuste com a sonoridade do nome, pois o seu sabor não tem, nem de longe, tantos bicos.
Enquanto os especialistas continuam a discutir se é oriundo da África e alguém o levou para a Ásia ou se é asiático e nos chegou via África, aproveito o fundo de ecrã do rumor das discussões para dizer que, a mim, os quiabos me fazem sempre lembrar Angola e que, quando lá chegava, ia a correr comer alguns e, a cada prato que encomendava num restaurante, perguntava se “traz quiabos?”
Em nome dessa saudade, deixo aqui uma receita e, também, alguns truques sobre o modo de escolher e tratar com quiabos.
Compra
Quando vir quiabos à venda observe-os com cuidado e escolha aqueles que têm uma cor verde bem viva. Evite os que apresentam manchas esbranquiçadas na superfície ou que, ao toque, não reagem da sua murchidão. Ou seja, os quiabos querem-se firmes mas, por outro lado, pequenos: uma mão travessa ou pouco mais (10 a 12 cm), de outro modo serão fibrosos e duros ao paladar.
Preparação
Ao corte, os quiabos podem escorrer uma baba que impressiona os mais sensíveis mas que desaparece quando são cozinhados. Mas, se isso a inibe, uma maneira simples de fazer desaparecer esse fluido gomoso é deixá-los, durante uns 15 minutos, numa taça de água na qual se espremeu sumo de limão. Depois passe-os por água fria e corte as pontas de ambos os lados. Estão prontos a serem cozinhados
REFOGADO DE QUIABOS (para aproximadamente ½ Kg de quiabos)
Corte uma cebola de tamanho médio às rodelas e disponha-as pensativamente no fundo de um tacho onde está a aquecer azeite q.b. Deixe alourar. Mas o que é isso de alourar, perguntarão para si próprios aqueles que não tem coragem de o perguntar a terceiros? Bem, para isso tem de estar por perto: a cozinha nunca sai bem se a encaramos de forma precipitada ou menos cuidadosa e desse ponto de vista é como acender uma lareira e mantê-la a funcionar – para nos fazer companhia, uma lareira precisa de ser acompanhada. À medida que o azeite vai aquecendo, a cebola aquece também e vai amolecendo sob os nossos olhos. No início há uma fase em que parece que as rodelas se inteiriçam, que secam, mas depois rendem-se ao calor, à envolvência do azeite, e começam a tornar-se lassas, a ganhar um enrubescimento amarelado. Está no ponto (é um ponto instável, que rapidamente vira esturro) quando a cor se aproxima da do mel do sul do país, que é um mel claro e dourado. Neste ponto, deite os quiabos no tacho e ponha o fogo no mínimo. Antes de tapar o tacho, polvilhe o verde dos quiabos com sal (pouco) e pimenta. Depois, como quem dá de comer às pombas, distribua dois dentes de alho, finamente picados, sobre o conjunto. Olhe que isto de só aplicar o alho nesta fase do cozinhado é importante: se o mistura à cebola logo no começo é muito provável que o alho frija, o que vai afundar o paladar dos quiabos num travo de bifana de rulote! Não, o alho quer-se discreto. Ponha a tampa e deixe o todo refogar, sempre no mínimo, durante 20 minutos. Deixe-se estar por perto e espreite de vez em quando o que se passa lá dentro: se o refogado perder água, por exemplo, pode ter de acrescentar um pouco, de molde a manter a humidade necessária. Sabe que os quiabos estão no ponto quando, ao levantar a tampa, os sentir macios, sob o pau da colher, como uma almofada de penas.
Estão prontos e pode comê-los só assim ou usá-los como acompanhamento de qualquer prato. Quais? Sei lá, por exemplo um belo bife da vazia, um frango assado ou uma costela-mendinha estufada.
© Fotografias: (1) Do blog Tertúlia de Sabores; (2) Pedro Serrano, Barra do Dande, Angola, 2008

12 junho 2012

O IMPERADOR CHINÊS


Hoje o Imperador Chinês ladrou-me!
Estava lá fora, na rua, a enfiar qualquer coisa na mala do carro, quando senti ladrar nas minhas costas. Era ele, a uns dois metros de mim, a ladrar na minha direcção, mas, mais do que em minha intenção, parecia que ladrava ao ar em volta.
“Então!”, admoestei-o com brandura, batendo com a mão na coxa, nesse gesto ancestral que sossega os cães e até faz saltaricar alguns de regozijo. Ele acalmou, esboçou um abanar tristonho do rabo, avançou um passo para mim. Aproximei-me, uma mão estendida, no aviso de uma carícia, mas ele deu meia volta e entrou pelo portão, contíguo ao meu, que leva à casa dele.
Coitado do Imperador Chinês, está de luto mas ninguém lhe disse nada.
O Imperador Chinês é um dos três cães dos meus veneráveis e estimados vizinhos Luísa e Fernando Baltasar. Para além dele há um perdigueiro de temperamento folgazão e uma cadelinha branca e fofa, mas seria pouco delicado da minha parte deixar os dois gatos da família fora da listagem: o gato preto, que vai envelhecendo e tem brancas no negrume perfeito da pelagem; e a gata branca de olhos claros, com uma expressão de perpétuo espanto, e que me assombra o peitoril das janelas com frequência. Mas voltando ao Imperador Chinês...
O Imperador Chinês não se chama mesmo assim, fui eu que lhe atribui o cognome por causa do aspecto geral, da pose. É um bicho já entrado nos anos, com a rolicez do corpo que perdeu formas, de pêlo amarelado e olhar semicerrado, distante, nos olhos algo em bico. Às vezes, quando se senta, imóvel, a tomar sol no jardim da frente da casa ao lado parece mesmo um imperador chinês a contemplar o seu império através da fenda dos olhos.
O Imperador Chinês era a sombra do Sr. Fernando Baltasar, que nos morreu na passada quinta-feira. Eram um par clássico aqui na Praia e podíamos cruzar-nos com eles todos os dias, partindo ou regressando do seu passeio pelas cercanias, ou encontrá-los sentados num murete à beira-mar vendo rolar as ondas ou passar os automóveis. Já não me lembro de ver o Sr. Fernando sem ele ou ele sem o Sr. Fernando, a não ser na situação em que, em separado, podiam estar a tomar sol sentados no patamar da entrada da casa ao lado da minha. Mas, até nessa atitude solitária, penso que esperavam um pelo outro.
Pois agora o Sr. Baltasar foi-se e ninguém deve ter explicado convenientemente ao Imperador Chinês o que se passou. Não o vi na sala dos velórios da igreja do Seixal, nem sequer, no Sábado, no funeral que levou uma procissão de carros e mais de uma centena de pessoas ao cemitério da Lourinhã. Estava um dia azul, de sol, e não foi dada ao Imperador Chinês a oportunidade de olhar uma última vez para o seu dono, como fez a D. Luísa, nem pôde despedir-se da sua companhia mais certa lançando um punhado de terra surda sobre o envernizado do caixão.
E agora, que são quase quatro da manhã e não há uma lua no céu, ouço lá fora o latido solitário, rouco e esparso, do Imperador Chinês lamentando o desaparecimento do seu amigo.

© Fotografias de Pedro Serrano, Praia da Areia Branca, Junho 2012.

08 junho 2012

CEREJO


É tão aristocrática que se deixa apenas ver ao longo de pouco mais de um mês em cada ano. Tudo nela ronda a perfeição: a cor, tão dela que define uma cor; o pé (que se deixa arrancar algo contrariado) produz um sonido que fica para sempre na memória dos estampidos; uma consistência, gerada, no breu de noites ainda geladas, a pensar no encontro com os dentes. E, por fim, o sabor, tão gostoso e viciante que uma pede pela seguinte e essa apela à  próxima, que arrasta a seguinte até que a taça, há minutos transbordante, se volveu um cemitério de caroços ainda palpitantes que foi um gosto cuspir.
“Ó dona Luísa, a cereja é boa?”
“É uma riqueza, D. Graciete, pode levar à confiança...”
“E não será ácida...?”
“Não, é uma doçura – olhe que nos temos fartado de a comer lá em casa.”
“E não terá bicho...?”
“Oh, D. Graciete, a senhora acha que eu lhe ia vender cereja bichada!? Faça favor de provar uma, não quero que vá enganada...”  
“Então pese-me aí um quilinho... Olhe, ponha antes dois que a minha Graça é doida por cereja...”


Nota: Cerejo é termo transmontano para 'o tempo da cereja'.
© Fotografia de Pedro Serrano, Junho 2012.

02 junho 2012

AS LAMBADAS QUE NUNCA TE DAREI


As lambadas que nunca te darei
Só pecam por tardia virgindade
As lambadas que nunca te assestei
Estão para lá do prazo de validade

As lambadas que nunca te darei
Choram por mais, como a meia-dose
As lambadas que nunca te assapei
Não desbotarão em verde-equimose

As lambadas que nunca te darei
Não vestem o negro da maldade
As lambadas que nunca te estalei
São rosa-pálido como a ansiedade




(Com a devida vénia ao Sr. Nicholas Spark)
© Fotografia de Pedro Serrano, Leipzig (Alemanha), 2011.