Corria o ano de mil novecentos e oitenta e dois. O mês era o de Setembro e o sol rodava tangente ao mar num poente rápido e avermelhado que emprestava às coisas uma nitidez suplementar. Em breve seria noite.
No cemitério Prados do Eterno Repouso dois jazigos sofriam, mais que os restantes, o revérbero do sol declinante: o Jazigo Perpétuo da Família Ramos Lopes e o Jazigo do Comendador Grenha dos Santos, derradeiras moradas separadas pelos escassos três metros que permitiam a visão de uma alameda inútil, apenas conduzindo ao muro oeste do cemitério.
As cruzes funéreas que encimavam estes dois jazigos, porventura consequência das particularidades refractivas do mármore de Viana do Alentejo e do Lioz-encarnado, brilhavam com uma intensidade não desajustada a uma lâmpada de halogénio de média voltagem.
Prolongando o olhar na direcção Poente e mantendo o enquadramento criado pelo espaço que medeia entre os braços verticais das duas cruzes, deparavam-se os quatro andares do edifício principal do Instituto Nacional de Estudos Tropicais.
No quarto andar havia ainda duas janelas iluminadas, momento a momento mais recortadas no céu pela noite, que alguém familiarizado com as dependências da instituição identificaria como sendo as do gabinete do Director. E se esse hipotético personagem, que tão bem sabia apontar as dependências do instituto, conhecesse também os hábitos de trabalho do Director, poderia predizer, sem grande margem de erro, que o Professor Avocat se encontrava ainda sentado à sua secretária.
O Professor Edgar Avocat era um homem encaixilhável nos exageros de uma caricatura. O caricaturista poderia até, se não quisesse ter muita maçada com a obtenção de uma fotografia do próprio, utilizar como modelo a imagem de um mosquito, tal era a semelhança do Professor Avocat com este insecto.
Quando bateram à porta, o Professor estremeceu. Estava precisamente naquele ponto do devaneio em que a realidade envolvente é um cenário inexistente. Fora há tantos anos já..., mas, diabo, que melancólica ternura ainda lhe despertava ocupar-se com aquilo... Dançando com Sofia nas matinés do Casino, enlaçando-lhe a ténue cintura e sussurrando-lhe ao ouvido as palavras da música que a orquestra tocava e que ouvia como se fosse ontem, hoje: Nuestras almas se acercaron tanto asi, que yo guardo tu sabor, pero tu llevas tambien, sabor a mi... Os passeios pela praia, os beijos nas dunas, os dois embriagados por um benevolente nevoeiro que trazia do mar ecos de traineiras...
O seu entre despertou na mente do sr. Marinho, chefe dos serviços administrativos, uma ilação errada: "está mal disposto", pensou. Mas, de facto, o Professor Avocat estava incomodado por ter sido apanhado em adultério para com o seu dever de alto funcionário e a entoação da sua exclamação tinha a ver com a culpa e não com uma agressividade dirigida.
O sr. Marinho entrou, como de habitual, com um:
“O Senhor Professor perdoe o incómodo, mas trata-se de uma matéria que requer a sua opinião.”
Não faz mal Marinho. Sente-se, por favor, soprou do canto o Professor, procurando acomodar-se aos vincos do fato cinzento. O sr. Marinho sorriu:
“Prefiro falar com o Senhor Professor a esta hora. Já não está ninguém no andar e, para além de não corrermos o risco de sermos constantemente interrompidos, não se põe o inconveniente de nos poderem ouvir...”
E transmutou o sorriso para uma expressão de cumplicidade implícita, que lhe encheu de parêntesis os cantos da boca.
Diga, Marinho, retorquiu o Professor Avocat, que tendia o oscilar novamente para os braços de Sofia.
“É por causa da Teles...”
O Professor franziu o nariz interrogativamente.
“A Teles, a da limpeza do segundo-andar. Aquela que dá de mamar aos mosquitos...”
O Professor Avocat pareceu ignorar o gracejo e continuou a fitá-lo por trás do vidro dos óculos.
“Faz setenta anos em Dezembro. Apareceu-me a choramingar a dizer que não quer ser reformada, que o Instituto é a sua vida. Calcule o senhor que até me chegou a dizer que não se importava de receber a reforma e continuar a vir cá graciosamente, sem perceber nenhum salário!”
O Professor espantou-se: !?
“É verdade...”, o sr. Marinho oscilava a cabeça como um boneco articulado sobre um tapete de peluche no vidro traseiro de um automóvel.
Tentou arrancar dos despojos de Sofia uma lembrança qualquer da Teles. Pois, era a velhota que alimentava os Aedes..., e depois? Onde confirmar na memória um motivo antigo para tanta dedicação? O Professor desistiu:
E você, que acha?
“Bem... Penso que não haveria inconveniente para o Instituto, talvez pelo contrário. Ela receberia a reforma e nós, por nosso lado, poderíamos afectar uma pequena verba, um suplemento mensal pelos mosquitos. A verdade é que no Instituto não há ninguém como ela para alimentar os bichos. O Senhor Professor lembra-se quando a Florentina a substituiu, nas férias dela? Os mosquitos iam morrendo todos. Dão-se bem com o sangue dela!”
Disso, o Professor Avocat já se lembrava. Até achara graça ao episódio. Que curioso! Porque seria? Chegara a pensar mandar estudar o sangue da mulher. Assentiu:
Bem, Marinho, na generalidade concordo com a proposta. Trate você do que for preciso.
O sr. Marinho levantou-se visivelmente satisfeito, menos pela felicidade da Teles do que por se sentir irmanado na generosidade do Director.
“Gratos ao Senhor Professor. A mulherzinha vai ficar radiante.”
Tentou voltar a Sofia, mas sem êxito. Os mosquitos empestavam tudo. Suspirou ao vestir o sobretudo: O melhor era ir para casa comer a ceia da Julieta:
Quarta-feira, céus – bacalhau espiritual!
2
A senhora Teles fora uma mulher alta, percebia-se isso na convexidade exagerada das costas, mas por força da idade ou por uma necessidade crónica de subserviência fora minguando.
Aparecera no instituto, que então ainda não se libertara administrativamente da Escola de Higiene e Saúde Pública, no final dos anos 50. Necessitava desesperadamente de um emprego e insistiu tanto com o jovem sr. Marinho, administrativo encarregado da admissão do pessoal menor e pessoa pouco dada a dizer não, mas um tanto avessa às responsabilidades de um sim, que este acabou por levar o problema à peritagem do Professor Aloysio Lebre, o então director da instituição.
E revelara-se uma boa aquisição. A sr.ª Teles mostrara-se, desde o primeiro dia, uma óptima funcionária. Não só trazia o segundo-andar impecavelmente limpo, como se debruçou, sempre com respeito e sabendo guardar distâncias, pelos problemas quotidianos do andar.
Foi ela que se ofereceu para passar a alimentar os mosquitos, tarefa até então relutantemente desempenhada por um técnico superior de laboratório.
O director do Departamento de Vectores e Hospedeiros, dr. Emídio Napoleoni, ficou prazenteiramente surpreendido com a mudança, pois a colónia de Aedes aegypti pareceu duplicar no aquário de tela e as baixas semanais diminuíram substancialmente. Mas nem toda a gente tinha a mesma opinião. As colegas da limpeza resmungavam que ela se dava ares, não lhes agradava verem-lhe confiados desempenhos que a elas estavam vedados, mesmo que essas funções tivessem sido sistematicamente recusadas pelas próprias, como acontecera com a alimentação dos mosquitos. Às preparadoras não caía bem a postura respeitosa, mas distante, da sr.ª Teles e, sobretudo, detestavam o modo silencioso do seu trabalho, sem nunca tomar parte na má-língua inter e intra andares, e dos seus gestos ao aproximar-se, sem ser notada, das bancadas para pousar uma placa de Petri ou um suporte com tubos de ensaio.
A única coisa que parecia abalar a impenetrabilidade de mordomo da sr.ª Teles era o ritual de cuidar dos mosquitos. Nessas ocasiões transfigurava-se: os olhos doentes enchiam-se de ruguinhas e as mãos, magras e com unhas que ela mantinha longas e aparadas em bico, tremiam-lhe no prazer da concentração.
Uma manhã de Inverno, o termóstato da tina dos Aedes avariou-se e os mosquitos começaram a dar sinais de agitação e, em seguida, de torpor. A sr.ª Teles ficou transtornada, correu a chamar o electricista do Instituto e enquanto este apertava e desapertava parafusos, conservou-se nervosamente cirandando em torno da bancada. Logo que o termóstato ficou pronto, a sr.ª Teles, perante o espanto de quem se encontrava no biotério, meteu o braço na tina (apesar de não ser dia de os alimentar) e enquanto os mosquitos, sôfregos de frio, enfiavam a diminuta tromba na sua pele, ciciava diminuitivos carinhosos.
Dela dissera um dia o dr. Napoleoni:
“Há gente tão só na vida que até a mosquitos se afeiçoa.”
Este desabafo ouviu-se uma tarde na cantina, à hora do café, quando meia dúzia de funcionários, sem tema para conversa, se entretinham circularmente a explorar a excentricidade da "rainha dos mosquitos". Mas ninguém se quis pôr a reflectir sobre a solidão e o único efeito que o dr. Napoleoni conseguiu foi um reforço na convicção, mais ou menos generalizada, de que aquele sul-americano que viera ao abrigo de um acordo no campo da investigação e ficara pelo amor de uma latina europeia, era esquisito na sua sensibilidade tropical.
3
O cinema Átila era um edifício com o toque arquitectónico patognomónico dos anos 30.
De dez em dez anos, quando a pintura se descascava outonalmente sobre os passeios e as árvores raquíticas da avenida, a gerência mandava que o pintassem com cores que alternavam entre o avermelhado de conserva de tomate e o cinzento-militarizado.
Acima das gigantescas letras rubras de néon, que desde o cair da tarde piscavam intermitentemente C-I-N-E-M-A ÁTILA, CINEMA Á-T-I-L-A, especava-se, ao nível dos telhados dos dois prédios que timidamente escoravam o cinema, uma pestana em betão de seis metros de altura, murete que o arquitecto resolvera ondulado e ornado com uma lira e umas folhas de louro. Um pouco recuada na fachada do edifício, a imperial pestana espetava-se no alto do cinema como uma travessa no penteado de uma espanhola.
Pouca gente saberia, talvez ninguém para além da gerência e das pombas municipais, que no telhado-terraço do cinema Átila existia, a coberto do pente-travessa ondulado, um pequeno apartamento com duas divisões. O apartamento fora originalmente concebido para habitação do vigilante da casa de espectáculos, mas o coração asmático do sr. Bela, funcionário daquela casa de espectáculos desde o seu começo, forçara-o a abandoná-lo, pois cinco andares sem elevador e uma filha divorciada com três rebentos era na realidade de mais para tal ninho de águias.
Na reunião do dia 6 de Janeiro de 1960, a gerência do cinema Átila lavrou em acta a decisão que o apartamento seria doravante arrendado a particular que reunisse a dupla condição de ser pessoa de respeitabilidade comprovada e só na vida, uma vez que não agradava à gerência a perspectiva de ter inquilinos barulhentos no terraço e, ainda menos, a ideia de escutar relatórios sobre crianças correndo pela escadaria abaixo ou sobre vagidos insinuantes na sala de projecção.
Uns três meses depois desta reunião, as duas divisões do terraço do cinema Átila foram alugadas a uma dama de meia-idade que trazia uma carta de recomendação assinada pelo serviço de pessoal do Instituto Nacional de Estudos Tropicais.
Domingo, sete horas da tarde, já não há sol.
A noite, acolitada por bandos de nuvens sujas, instala-se, preenchendo de silêncio frio todas as frestas da cidade.
Virgínia Teles acabou de acordar de um sono sem sonhos, pesado, mas quase uma vigília.
Por entre o muro de cimento (do outro lado é ondulado e cinzento) e o telhado do prédio vizinho, vê um pedaço do asfalto da avenida e as árvores mirradas soluçando ao vento, o todo temperado pelo vermelho espantadiço do letreiro luminoso do cinema Átila.
Sob os pés adivinha ruídos abafados. A segunda sessão da tarde acabou, andam a limpar a sala. Tem visto passar tanta gente para o cinema... Todos os dias passa uma multidão por aquela sala. Como gostam do escuro e de que ele seja iluminado por frémitos... Dantes não havia cinema, as pessoas não se entretinham assim. Havia jogos, imensos jogos; era velha e tinha visto muitos jogadores... De cada gesto eles faziam um jogo, viciavam-se naquilo desde a tenra idade e assim esgotavam a vida, reproduzindo os esgares deformados apercebidos nos espelhos dos olhos dos outros... Detestava espelhos, era um mal de família. Sorriu... Tempos se tinham feito em poeira, mas tempos houvera em que duas raças dividiam a terra: os senhores e os usados. E os senhores acabaram por definhar, tal o sangue enfraquecera com o débil exemplo dos usados...
Por instantes fez-se silêncio na avenida. O nevoeiro escalava do rio as estátuas da cidade baixa.
A sr.ª Teles sentou-se na cadeira de balouço, espólio quase único de melhores épocas, semicerrou os olhos. Suportava mal a luz, uma fotofobia hereditária fazia-a andar constantemente com os olhos vermelhos e lacrimejantes.
Agora era obrigada a pensar no futuro... Não confiava muito na longevidade do "suplemento mensal" pela alimentação dos Aedes aegypti. O sr. Marinho ficara tão espantado por ela querer continuar a ir ao Instituto depois de reformada. E dissera que o Professor Avocat também se mostrara surpreendido... Não, não podia esperar muito do suplemento, um dia iam-lhe dizer que já não precisavam dos seus serviços. A necessidade forçava-a a decidir-se. O que seria se esta fosse a última oportunidade?
Enfraquecia a olhos vistos, tornava-se dia a dia, sentia-o, mais transparente aos olhos vistos. Virgínia Teles sorriu de olhos e lábios no balouço silencioso da cadeira. A decisão pusera-lhe um fogacho quente a rodopiar no sangue. A "rainha dos mosquitos" iria, finalmente, possuir um mosquito à dimensão dos seus desejos.
4
Que extraordinário!
O Professor Edgar Avocat regressou perplexo ao gabinete.
Estivera no Laboratório 3 até às seis e meia da tarde e ao passar pela porta do biotério, esfregando os olhos numa fé de que conseguiria afugentar as centelhas luminosas causadas por duas horas ininterruptas ao microscópio, acontecera-lhe olhar lá para dentro, pois a porta achava-se desusadamente aberta àquela hora.
Espantoso! Ela estava especada ao lado da tina dos Aedes, o braço esquerdo completamente estendido, hirto no ar, e olhava, com um olhar que lhe pareceu enternecido, para a chusma de mosquitos que lhe enegreciam o antebraço.
Irresistivelmente e porque a sua posição de responsável máximo daquela instituição lho permitia, entrou na sala para observar o fenómeno de mais perto. Obviamente ela dera pela sua entrada um tanto destemperada e virara-se lentamente, não parecendo, no entanto, preocupada ou, até, surpreendida.
Como é que consegue?, disparara-lhe, esquecendo de súbito a faceta de responsável máximo, como é que não fogem?
Pequeninas rugas vincaram os olhos dela, avermelhados por uma conjuntivite crónica, e um esgar dos lábios revelou uma fiada de dentes estragados e amarelados, onde apenas os caninos pareciam saudáveis.
Serão postiços?, interrogou-se o Professor, ao mesmo tempo que ela respondia:
“Conhecem-me..., sabem que se os alimento cá fora é porque podem confiar em mim. Desse modo posso também confiar neles.”
O Professor estudou com admiração os mosquitos, tranquilos e imóveis no seu rito bissemanal de alimentação. Nenhum deles parecia ocultar a intenção de se pôr, de um momento para o outro, a voar pelo biotério.
Em silêncio, a sr.ª Teles baixou o braço lentamente e começou a introduzi-lo, com todo o cuidado, na manga de gaze que existia numa das paredes laterais da tina. Quando o seu punho fechado atingiu a parede oposta à abertura, enrolou com a mão livre a manga de gaze em volta do ombro:
“Vá, meus queridos, chega de sangue por hoje.”
Os mosquitos, como se obedecessem a uma ordem, largaram o braço e espalharam-se pela tina, colocando nódoas escuras no branco da gaze.
O encantamento quebrou-se e o Professor Edgar Avocat sentiu-se, de repente, pouco à vontade:
Suponho que tem feito as análises de controlo com regularidade?
"Certamente", volveu ela levantando a atenção da tarefa de massajar o braço esquerdo, "está tudo normal".
Só se lembrou de recomendar cuidado com eles, olhe que qualquer dia fogem-lhe, já a porta do biotério se tinha fechado sobre a sua mão.
Que extraordinário!, repetiu o Professor antes de se deixar cair na poltrona e se entregar ao monólogo vespertino com Sofia.
Sofia amolecia-o sempre um pouco e por vezes, sobretudo no Inverno - como agora - quando as noites caíam abruptamente no meio da tarde, chegava a passar pelas brasas nessa indolência suave em que a realidade se esfumava e lhe era permitido passear fisicamente pelas paisagens queridas de outrora. Quando despertava desse transe, a memória vinha tão enriquecida em detalhes que podia viver feliz mais vinte e quatro horas dessas reservas, mesmo que com Julieta rezingando ao lado.
Sofia corria à sua frente, vestida de branco-leve, em direcção ao mar. Sorrindo, ele seguia-a num passo mais comedido, saboreando aqueles instantes. Ao chegar à areia molhada, a maré cheia começava a encolher, parara, voltara-se e chamou-o.
Edgar Avocat, o futuro investigador, estugou o passo pela duna abaixo.
O sol desaparecera além-mar. O céu impregnava-se de vermelho e as águas serenavam ao crepúsculo, chapeadas a ouro. Estava já próximo de Sofia, as tonalidades confundidas de céu e água tornavam-na quase etérea e enquadravam-na como se ela surgisse do vão de uma porta que de repente se entornasse em luz sobre um observador até aí no mais profundo breu.
Parou, inseguro, como se tivesse ido longe demais.
A luz materializava-se em finas partículas douradas que pareciam rodopiar na sua direcção, mas o cenário que o rodeava voltara a ser o do gabinete no quarto-andar do Instituto Nacional de Estudos Tropicais. A luz do tecto reflectia-se no vidro das janelas, transformadas em espelho pela noite e a face nos vidros correspondia à de um director de 63 anos de idade e não a um futuro investigador de 25 que se passeia pelas dunas.
A porta do gabinete estava entreaberta, porém fechara-a ao entrar!, e as partículas luminosas penetravam por aí. Progrediam rente ao chão no sentido da secretária e as mais próximas de si pareciam buscar uma agregação. Pensou em levantar-se, mas uma languidez desumana amortecia-o na poltrona. Deixou-se estar, os olhos semicerrados e um cavalo a galope no coração, fitando o contorno, momento a momento mais humano, que se ia erguendo na sua frente.
Sofia, poderia ser Sofia? Mas não tinha lógica, não deveria...
Sofia, princesa...
Pouco tempo mais permaneceu como espectador e a última sensação de que teve consciência foi a de um bem-estar, ao mesmo tempo grato e amargo, que se lhe derramava vertiginosamente na corrente sanguínea.
5
A morte súbita do Professor Edgar Avocat abalou a rotina do Instituto, particularmente pelo facto de ter ocorrido no gabinete da Direcção, uma noite, a horas difíceis de precisar.
O Professor fora encontrado na manhã seguinte, esparramado sobre a secretária, por um funcionário do quarto-andar que estranhara as luzes acesas (ainda não havia uma semana que o Director, inspirado nas recomendações do Governo, gerara um despacho interno sobre a necessidade de se poupar energia) e a porta entreaberta.
O Professor Vice Roque, seguramente o mais prendado candidato a director, andou toda a manhã numa azáfama, parecendo confuso com tudo o que lhe estava a suceder. Examinara o cadáver com cuidado na busca de uma explicação para tão perturbante evento, mas não encontrara nada de anormal. Um cadáver perfeitamente incaracterístico, cujo único pormenor verdadeiramente saliente eram duas picadelas na parte antero-lateral do pescoço, plausivelmente produzidas por uma lâmina de barbear nova e irritadas por uma qualquer loção after-shave.
A causa da morte fora-lhe praticamente sugerida pelo tubo de pastilhas brancas para uso sublingual que descobrira no bolso direito do casaco do Professor Avocat: enfarte do miocárdio.
Em Março de 1984, no primeiro aniversário sobre o fatal acontecimento, a nova Direcção do Instituto promoveu uma sessão de homenagem, integrada no Dia Anual do Instituto, à figura e à memória do Professor Edgar Avocat, insigne investigador e zeloso administrador.
Presentes, o Secretário de Estado da Cooperação e dos Assuntos Tropicais, representando o Governo no luto e na homenagem, e os Directores-Gerais dos diversos Departamentos do Ministério da Saúde e da Ciência com que o Instituto habitualmente colaborava.
No cadeirão central da mesa de honra, Julieta Avocat ouvia distraidamente a comunicação do Professor Vice Roque, lamentando o tempo que ainda a separava da entrega da Medalha Por Serviços Distintos, cerimónia que se ia desenrolar entre o Secretário de Estado e a sua pessoa, na qualidade de herdeira universal de Edgar.
Forçou uma máscara de atenção na direcção dos papéis que o Professor Vice Roque agitava comovidamente e os seus olhos interiores focaram-se na recordação das primeiras horas da manhã, vividas no cemitério. Não teria podido deixar escoar aquele dia sem visitar Edgar de um modo especial. Por um lado, o primeiro aniversário da sua morte, por outro o reconhecimento público de que a memória de Edgar Avocat continuava bem viva.
Levantara-se cedo, ainda anoitecia, e passara pela florista antes de se dirigir ao cemitério onde chegou, com Inocência, às oito da manhã. Até às onze, hora a que se iniciava a homenagem, teriam tempo para tratarem do jazigo. Inocência levara artigos de limpeza e apetrechos de jardinagem para que fosse possível transformar a morada de Edgar, e um dia a sua, num tabernáculo festivo.
Na véspera, à noite, combinara com a velha criada as etapas do trabalho: primeiro limpariam a fundo o jazigo, incluindo-se nesta operação uma lavagem enérgica do chão; depois substituiriam as cortinas da porta e o debrum que orlava o bordo da prateleira de granito onde repousava o esquife. Finalmente, mudariam a areia e a água das jarras e colocariam as flores.
Enquanto Inocência se ocupava com os vidros, partira a mudar a água às jarras e a preparar as flores. A uns cinquenta metros do jazigo, quase no canto do cemitério e num terreno ocupado unicamente por campas, existia uma torneira com uma pequena pia de pedra por baixo, ao lado de um recipiente para lixo.
Lavou as duas jarras meticulosamente e, depois de as encher com água, colocou-as sobre a laje de uma campa vizinha para que não vertessem, pois o terreno era de saibro e um nada irregular. Sentou-se junto da torneira no banquinho desdobrável que trouxera e iniciou a decapitação das folhas secas, podando, em seguida, os pés das flores para que se adaptassem à altura das jarras. Quando Inocência chegou, estava a terminar o preparo das flores. Os caules das plantas, sobretudo os dos jarros, tinham-lhe manchado as mãos e, receando aparecer na homenagem com a pele dos dedos esverdeada, achou melhor pedir a Inocência que transportasse as flores. Ela trataria das jarras.
Inocência afastou-se, florida e entalando entre o braço e a cintura avantajada o banquinho dobrado, enquanto ela se deixara ficar a tentar, mais uma vez, tirar de si aquela viscosidade esverdinhada. À terceira tentativa e graças ao auxílio rude das arestas da pia de pedra, a incómoda tonalidade desvaneceu-se e Julieta aproximou-se da campa a fim de recuperar as jarras. Ao inclinar-se sobre a laje, um hábito antigo, nascido na necessidade de se distrair durante as monótonas e arrastadas praxes dos funerais, puxou-lhe o olhar para a lápide da campa:
VIRGÍNIA TELES
1828-1899
Julieta Avocat suspirou ao pegar nas jarras. Era um tanto triste, mas era mesmo assim, a Humanidade estava destinada a perecer e ninguém escapava a essa sorte. Hoje uns, amanhã os outros; os ricos e os menos ricos. A morte a todos nivelava e até aquela pobre, que não merecera sequer uma derradeira inscrição do afecto de algum familiar, era irmã, nos desígnios insondáveis do Senhor, de Edgar.
Mergulhada nesta constatação balsâmica, Julieta Avocat consultou o relógio e afastou-se na direcção do jazigo.
(1983/2010)
Fotografias de © Pedro Serrano: Porto, 2007 (primeira fotografia); Lisboa, 2010 (segunda fotografia); Lourinhã, 2009 (terceira fotografia), Mértola, 2008 (quarta fotografia).