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30 julho 2023

LOJA DOS TREZENTOS

Com a presteza do merceeiro que tira o lápis detrás da orelha e sarrabisca uma conta no papel de embrulho, o ministro da saúde comparou nos telejornais a República de Cuba a uma empresa de prestação de serviços, daquelas a que o ministério recorre às colheradas para esticar a manta de retalhos do Serviço Nacional de Saúde.

Segundo o homem, quando paga a uma destas empresas não tem de se preocupar se o dinheiro vai todo para os médicos subcontratados através dela ou se a direcção da empresa mete dinheiro ao bolso no processo. Pizarro, aliás, acha muito natural que o faça... 

Assim, para ele fica resolvida a questão de o governo de Cuba meter, ou não meter, ao bolso oitenta ou mais por cento do dinheiro pago aos seus médicos pelos países para onde os exporta, como se fossem charutos ou barris de rum. Pizarro não tem nada a ver com isso, lava daí as suas mãos, o que, como se tem visto pelo modo como comanda o SNS, é o que ele sabe fazer melhor. Lavar as mãos com frequência é uma coisa boa, o ministério a que preside este grande estadista recomenda-o amiúde. 

Portugal anda atarefado a contratar 300 destes médicos semi-escravos e, pelos vistos, não se interessa pelas condições em que o faz, tal como os passadores e intermediários não se incomodam com o que acontece aos imigrantes que se afogam no mediterrâneo ou com os que atulham as estufas do Alentejo. Problema deles.

É claro que, neste seu empreendedorismo conquistador, Pizarro é forçado a ir arregimentar esta mão de obra bem-comportada ao terceiro mundo, neste caso à América Latina (África não tem sequer médicos para exportar), pois em nenhum outro local do mundo conseguiria, com o que Portugal oferece e paga aos médicos convencer, sequer, um único.

Tendo já perdido a capacidade de me espantar com a fibra e o estofo dos governantes que nos calharam em sorte, limito-me a corar de vergonha por habitar um país onde se vai acentuando, a cada dia que passa, o aroma esclavagista que nos tornou célebres noutros tempos. 

 

11 maio 2023

CADA CAVADELA, DUAS MINHOCAS

Temos de agradecer à TAP, e às peripécias com ela relacionada, o upgrade do dito popular "cada cavadela, sua minhoca". Agora, ainda entorpecidas pela luz do sol com que a enxada lhes iluminou a toca, os invertebrados bichos surgem aos dois, por vezes três, por cavadela.

Confesso que a maior surpresa desta semana foi ver aparecer novamente à luz do dia Constança Urbano de Sousa, que eu, como penso que a distraída maioria dos portugueses, pensava politicamente defunta e sob terra firme! Qual quê! A outrora especialista em abraçar corporações inteiras de bombeiros migrou de mansinho para as secretas e é agora expert em intelligence, coisa sobre a qual ninguém apostaria que escondesse uma jazida. Pois, mas o certo é que a mulher é a manda-chuva do Conselho de Fiscalização dos espiões e, nessa superlativa capacidade, não achou nada de especial que um serviço nacional de informações secretas fosse a casa de um cidadão arrestar-lhe o computador. Bafejada pela sorte, a nossa fiscal Mata-Hari, foi ouvida no Parlamento à porta-fechada, e foram os portugueses que ficaram a perder com a confidencialidade, que os inibiu dos momentos de rara beleza que, a crer no que vimos no tempo dos incêndios, devem ter proporcionado as suas explicações. À saída (e pela nesga que nos foi dada oportunidade de vislumbrar nas respostas que deu aos jornalistas), a senhora (jurista de formação) foi incapaz de enunciar qual o artigo da lei em que se baseou a intervenção do SIS neste corriqueiro assunto de polícia. Ficámos, no entanto, a saber que, afinal, aquilo que o ainda alegado Ministro das Infrasestruturas e o Primeiro Ministro consideraram, repetida e publicamente, um execrável roubo não foi afinal roubo nenhum, pois se fosse roubo o SIS não poderia ter metido mão no assunto. Percebeu? Eu também não.

Outra das felicidades revelada esta semana foi a de que o presidente da Comissão Parlamentar à TAP (Seguro Sanches, do PS) sentiu a honra violada pelas insinuações da Oposição de que quereria diminuir o tempo que cada deputado dispõe para, nas audições da Comissão, interrogar os convocados. Como tal, Seguro demitiu-se com fragor e, formoso mas não seguro, abandonou a função de queixo esticado como todas as donzelas ofendidas. Ora quem é que o PS (através de Santos Silva) foi logo buscar para o substituir? Lacerda Sales, o médico traumatologista que os portugueses bem conhecem dos tempos do Covid, quando esteve no Ministério da Saúde com a única função visível de amaciar as arestas mais ásperas da malograda ministra Marta Temido. Especialista em choques e apertos, amplamente rodado em atitudes esfíngicas e em não dizer nada que possa constar, o homem aceitou prontamente a missão, pois o que é isso comparado com os embates do mau-feitio combinado de Temido, Gouveia e Melo e Graça Freitas?

09 abril 2023

NOVA LOCALIZAÇÃO AEROPORTO LISBOA: BERLENGAS, PROPOSTA DE UM ANÓNIMO


Berlengas (avião a branco): proposta enviada aos responsáveis pela consulta pública.

Nome do proponente: Pedro Serrano

Localização: -1064467.3023676332,4752742.124779818 
Localidade: Berlengas
Número e dimensão das Pistas: 2, dimensão de geometria variável
Capacidade de expansão em hectares: infinita, depende apenas de cimento armado, flutuadores e pilares oceânicos.
Encontra-se limitado por alguma restrição aeronáutica? Se sim qual?: Não, apenas gaivotas e turistas
Encontra-se sobre alguma restrição de área protegida? Se sim qual?: Nada que não se consiga contornar
Esta opção estratégica destaca-se das restantes na medida em que….: Proporciona uma vista maravilhosa na aterragem e fica a pouco mais de 60 km de Lisboa, com a A8 mesmo ali ao lado.
Nome e descrição dos documentos de viabilidade técnica em anexo: sem anexos, trata-se apenas da minha opinião e pretende chamar a atenção para o populismo e grau de leviandade contidos no abrir às sugestões de quem lhe apetecer uma opinião sobre um assunto tão sério e eminentemente técnico. É quase o equivalente de um cirurgião perguntar a um doente como prefere que ele use o bisturi para o operar.
Com os melhores cumprimentos
pedro serrano, CEO aerotransportado

10 março 2023

VADE MECUM AGUIAR!



Meus Deus, que lhes terá dado? Ainda o país não tivera tempo para começar a arrefecer da indignação causada pelas atrocidades canoras do bispo de Beja sobre as vítimas deverem perdão aos seus agressores, e já bispos, arcebispos e cardeais se precipitavam para rádios, jornais e televisões vociferando que afinal os padres suspeitos iriam ser afastados, que seriam devidas indemnizações aos ultrajados e, claro está, que toda a Igreja andava em grande sofrimento com o sucedido. Um padre no activo, que em tempos disfrutou uma deliciosa noite numa tenda de campismo ladeado por uma rapariga de 11 anos e outra de 12, veio até confessar aos microfones da SIC que a gente, lá em casa, nem calcula o sofrimento que ainda o acomete, e já lá vão mais de dez anos sobre os tempos em que apalpava as mamas e o rabo às jovens católicas que lhe apareciam na sacristia. O homem, coitado, ainda passa horrores não inferiores às cinco santas chagas de Cristo; sofrem todos eles horrores, um horror que pode até ser retard e iniciar-se quase trinta ou quarenta anos mais tarde! É uma coisa crónica, devia ser classificada como profissão de risco.

Mas, a crer em D. Américo Aguiar (bispo auxiliar de Lisboa e da Pala), tudo o que se gerou na sequência das declarações da semana passada de bispos e cardeais não passou de uma grande infelicidade, grande parte da qual por responsabilidade directa do Vade Mecum.

Vade mecum, para os nossos leitores mais distraídos, significa literalmente "Vai Comigo", mas, na prática, refere um manual de procedimentos, uma espécie de livro de bolso com instruções de "faça você mesmo". Há Vade mecum para todas as áreas, existem em Medicina, em Direito, em Informática, até em Espiritismo, e, em última análise, pode exemplificar-se um livro de receitas de cozinha como um Vade Mecum culinário.

Pois o bispo da Pala foi o escolhido para nos vir informar que muita da culpa pelo imbróglio teve origem no Vade Mecum que eles usam lá na Igreja e de que seguem os artigos e as alíneas religiosamente, dado que o livrinho tem mais peso para eles do que, sei lá, a Vida dos Santos, a própria Bíblia. E o Vade mecum lá deles proíbe terminantemente que se use o termo "suspensão" para designar o afastamento de padres e outros incriminados do género: é que optando por usar o termo suspensão ter-se-á de, em conformidade, começar por abrir um inquérito, um processo, fazer investigações aprofundadas, mandar para o Vaticano, esperar a resposta do Vaticano, depois vai ao Ivo Rosa, ao Tribunal da Relação, ao Tribunal Constitucional, Belém, Jerusalém, uma fortuna em tradução e selos, um inferno de burocracia, prescrições, etc. Por isso aquela confusão de toda a gente ficar a pensar que a Igreja não ia afastar nenhum suspeito de agressão sexual a menores... É claro que vai, muitos, paletes deles se preciso for!

Tudo isto veio esclarecer D. Américo Aguiar, indigitado porta-voz por unanimidade e aclamação, tendo em conta o seu talento para anestesiar e manter em sentido jornalistas, o seu à vontade de mesa-redonda frente às câmaras e microfones, atributos que desenvolveu e exercitou na época em que trabalhou na Câmara, em Matosinhos, para o saudoso Narciso Miranda e para o PS.

"Voto em ti, Aguiar, tens o parlapié necessário para enfrentar a matilha...", teria dito, comovido, um dos prelados na noite da votação.

"Sim, já os vais conhecendo bem, lá da Pala e das Jornadas, tens à vontade e não te engrolas, como eu, em momentos infelizes...", terá alegadamente acrescentado D. Manuel Clemente.

"E não é só isso: dominas o Vade mecum do jargão político para se safar de um anzol: os mal-entendidos, o retirado do contexto, o não foi isso que eu disse, os não recordo ter dito isso, os não sabia de nada, os amigos jornalistas..."

E todos no conclave concordaram que era uma grande coisa o ter-se passado por uma experiência política prévia para enfrentar momentos de aperto, ainda que eclesiásticos.

"Uma mão lava a outra...", resumiu um dos presentes.

"Safa", desabafou um outro à saída da cripta onde tivera lugar a reunião, "que foi por um triz! Se não fora esta ideia do Aguiar de se apostar tudo na retórica, de jogar com a semântica, ainda nos encalacrávamos todos! Pois se até um prelado já Santificado, como o João Paulo II, não escapou à devassa!"

"Tempos de inclemência...", murmurou um terceiro.

"O Clemente?", interpretou um prelado pondo a mão em concha sobre o Sonotone, "esse e o Ornelas é que deram origem a toda esta avalanche, raios os partam!"

"Colega, olhe a outra face..."

 

 

  

08 março 2023

OS QUE FICAM À PORTA

Uma a uma, as ratazanas esticam o focinho fora da toca para, num discurso concatenado à pressa entre elas e empoado pelo makeup da hipocrisia piedosa, virem confirmar publicamente a sua vocação de encobridores. Cerram fileiras. Primeiro veio José Ornelas (bispo do eixo Leiria-Fátima), em seguida o inefável Manuel Clemente (cardeal-patriarca de Lisboa), quase em simultâneo com o muito convencido de si, Manuel Linda (que actualmente vexa o bispado do Porto, habituado a homens de outra fibra). Apareceu também à luz, embora um tanto cosida com as paredes, uma ratazana que responde pelo nome de Manuel Felício (bispo da Guarda) e, mesmo ontem, foi-nos servido, à hora dos telejornais, o vomitado de João Marcos, bispo de Beja. 

Todos vieram descartar a hipótese de afastamento preventivo dos padres acusados e suspeitos de abusos sexuais sobre menores, a que foram acrescentando joias da sua lavra, tal o sibilino José Clemente, que em vozinha adocicada e olhos revirados de "não falemos sequer dessas coisas", considera as indemnizações às vítimas como algo que, só de ser enunciado, poderia ser considerado insultuoso por elas, vítimas...  

Mas, o mais espectacular argumento de todos, veio do bispo de Beja (um dos que - e agora percebe-se a razão - se negou a participar nos trabalhos da Comissão Independente que investigou tudo isto), prelado que afirmou, entufado de piedade pelos predadores seus colegas de profissão, que em tudo isto está em falta o perdão, isto é: as vítimas devem perdoar os seus agressores, uma vez que eles se mostrem arrependidos. O perdão, acha o tipo, é o melhor tira-nódoas e apaga todas as marcas e manchas, torna praticamente desnecessária a justiça terrena (à atenção do Ministério da Justiça e dos tribunais entupidos). 

Deste modo, meu filho, se te entupiram a garganta, se o cu te ficou a arder ou se sangraste por ele, se a tua vida adulta ficou irremediavelmente abalada e tolhida pelo que te aconteceu quando andavas na catequese ou te ajoelhavas no confessionário, problema teu. Só te resta perdoar, pois os agressores estão muito arrependidos de se terem cevado em ti, uma e outra vez. Perdoa e engole.

Neste cortejo de horrores, a que os mais altos responsáveis pela Igreja Católica têm sujeitado os ouvidos da opinião pública, apetece perguntar se o Vaticano (e o Papa Francisco) estarão a par do reles espectáculo em cartaz neste canto da Península, estrelado pelos seus retalhistas e intermediários na condução da Fé. Será que o homem, lá em Roma, estará a acompanhar devidamente tudo isto? Será que alguém com a proximidade e os pergaminhos do nosso conterrâneo José Tolentino Mendonça (cardeal, assessor do Papa, cronista no mais lido jornal da terrinha) se tem debruçado e acarinhado esta causa? Ou será que vai ser forçoso esperar por Agosto e pelas Jornadas Mundiais da Juventude, para ir em procissão à Pala, manifestar ao Papa a indignação pelo que se passa por estas bandas e implorar-lhe que acerte uma vassourada nestes seus associados, que nada têm feito senão ignorar o que ele aconselhou? 

Abençoada Comissão Independente, penso mais uma vez para com os meus botões, que, suponho, deve andar completamente horrorizada e incrédula ante as reacções que despertou o cumprimento da sua missão. Abençoada, no entanto, pois mesmo que o seu trabalho não sirva para mais nada, enxotou até à luz do dia toda esta rataria sebosa, aninhada, instalada. E se a suas excelências, bispos e cardeais, não lhes é suficiente a simples informação de um nome para afastar um padre abusador, ficamos pelo menos a conhecer o nome e a cara de quem é quem neste xadrez, dos que ficam a guardar a porta enquanto o outro, o simples e anónimo padre Albino, vai à horta colher os tenros rebentos. 

"Deixai vir a mim as criancinhas!" 

"Despache-se padre Albino, que eu não posso ficar aqui, a tomar conta, toda a vida e já me bastam as chatices que tenho tido com a Comissão Independente!"

04 março 2023

O PATRONO DOS ABUSADORES

 

Chegada a hora de se pronunciar sobre as conclusões da Comissão Independente de Acompanhamento dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja e de vir dizer ao povo o que se propõe fazer sobre tão sinistro assunto, propõe-se o quê a Igreja portuguesa? Nada, nadie, rien, nothing, nichts; um rotundo e espantoso nada!

Ficámos a saber que por iniciativa da Igreja (como organismo colectivo) nenhum dos padres abusadores será afastado de funções (a não ser se condenado em tribunal), nenhuma vítima será indemnizada (segundo a Igreja é uma responsabilidade do padre violador), mas farão o grande favor de providenciar apoio psicológico às vítimas, desde que estas o requeiram na diocese onde foram abusadas. Finalmente, como tinham de tirar algum gesto de amor ao próximo da mitra, irão promover a construção de um memorial às vítimas de abuso, como se estivessem a referir vítimas de guerra, de terremoto ou de um outro acontecimento inevitável ou de força maior. Se me é permitido contribuir com ideias para esse memorial, proponho uma pala, como aquela que se preparam para nos fazer pagar nas Jornadas da Juventude, e sob a qual vários dos abusadores ou encobridores se irão resguardar do sol inclemente de Agosto. Ou talvez uma calçadeira com setenta metros de altura, um metro por cada ano de abuso oculto, ou em alternativa, um confessionário à prova de som e com retrete incorporada.  

Quem veio comunicar tudo isto publicamente, num tom onde imperava uma agressividade rebarbativa, foi um cavalheiro chamado José Ornelas, que acumula o ser bispo de Leiria-Fátima com a presidência da Conferência Episcopal Portuguesa, um graduado que, não assim há tanto tempo, andou por aí semienrolado numa situação de alegado encobrimento dos abusos sobre os quais foi agora convidado a pronunciar-se. Lembram-se? O Presidente da República até lhe telefonou a avisar que o caldo estava a azedar para os lados dele... 

Para ser franco, não fico tão espantado assim com este desfecho-éclair, pois sempre tive a sensação de que todos estes senhores estavam a fingir e só se moviam por força do aguilhão da opinião pública e desse prego no sapato chamado Comissão, uma comissão que, embora criada por eles, teve a lata de se portar de forma independente! Na hora da verdade, a Igreja continua a tentar esconder-se sob as varetas do guarda-sol, sem se dar conta de que o pano está mais que roto, está em farrapos. Não há batina que lhes valha. 

Em tudo isto há uma só coisa bonita de se ver: o trabalho que a Comissão Independente executou e apresentou no prazo em que prometeu que o faria! Um trabalho aturado, cuidadoso, cauteloso, isento e muito inteligente no modo deu a conhecer as suas conclusões. Valha-nos isso, num país onde a Justiça, pelo visto incluindo a Divina, está moribunda e tresanda.

    

 

 

 

11 novembro 2022

O ELOGIO DO ARGUIDO

Na sequência da demissão do seu secretário de estado mais querido (Miguel Alves, um paleante de Caminha), António Costa saltou de imediato ao terreiro para dizer o quê? Que ser arguido, estatuto com que Miguel Alves foi premiado, é até uma coisa boa e que os portugueses, ao pensar o contrário, só mostram uma grande iliteracia em matéria de Justiça. Sim, que o primeiro-ministro sabe do que fala e até relembrou aos jornalistas já ter sido ministro da Justiça. 

Mas recordemos o que se passou: este tal de Miguel Alves, até há poucos meses presidente da câmara de Caminha, usou 300.000 euros dos contribuintes para pagar, sem garantia alguma, a entrada para um pavilhão que iria ser construído numas bouças de Caminha, pavilhão que não existe, nunca existiu, nem vai existir: ou seja, 300 mil euros para o tecto. Segundo Alves, o negócio era sólido, assim como o seu parceiro no negócio, firmado com um outro rapaz que se intitula doutorado (phD, como o próprio teve o cuidado de esclarecer) embora não o seja! Este senhor, com quem Miguel Alves andava a cozinhar o arranjinho, é dono de umas 50 firmas mais ou menos fantasmagóricas, sem negócios em curso, algumas falidas, firmas que, tal como o tal pavilhão, não passam do papel. Pelos vistos, com a excepção dos 300.000, tudo se passa no domínio dos unicórnios e da realidade virtual.

Pois sobre tudo isto veio o primeiro ministro dizer-nos que não senhor, que ser arguido pode até ser uma coisa boa, distintiva, pois, entre outras vantagens, permite a uma pessoa não responder quando questionado pelas autoridades, ainda mais fácil do que a chatice de ter de alegar Alzheimer, arranjar atestado médico, etc. Ele sabe-o bem, pois, segundo disse, também já foi arguido.  

Perante esta distinção, é de propor que as pessoas passem a incluir nas habilitações do seu currículo o já ter sido, ser ou estar para ser arguido aos olhos da Justiça. Passaria a ser considerado um parâmetro de valorização positiva e faria com que os candidatos a qualquer emprego ou posição política ombreassem com outras grandes figuras da cena portuguesa que, por vezes com grande esforço pessoal, alcançaram esse honroso estado: José Sócrates, Ricardo Salgado, Manuel Pinho, Joe Berardo, Duarte Lima, Joaquim Couto, Isaltino Morais, Vale e Azevedo, Luís Filipe Vieira, a lista é longa e peço desculpa aos que me esqueci de referir. 

13 outubro 2022

ATIRA-ME ÁGUA-BENTA

Deplorável, o comportamento do presidente da república em relação aos abusos sexuais da Igreja em Portugal, e que fez com que um amigo meu se lhe referisse impiedosamente como o "Santinho dos Pedófilos".

Após a previsível gincana de ocultação, branqueamento e menorização por parte da hierarquia da Igreja (dos relatos chegados à Comissão Independente para o Estudo dos Abusos de Menores na Igreja somente 2 % foram declarados por iniciativa da Igreja), gincana que teve um pouco de tudo, desde um prémio Nobel da Paz em parte incerta, a bispos que encobrem subordinados e outros que desconhecem a lei e acham tudo isto apenas uma transitória e exagerada nuvem, esperava-se que um Presidente da República se comportasse de modo compatível com a dignidade, a neutralidade e a representatividade ampla do cargo para que foi eleito. E o que faz o homem? Telefonemazinhos a avisar bispos suspeitos de encobrimento de abusos de que vão ser alvo de aperto por parte da Lei e, como se não bastasse como indignidade, apressa-se a vir declarar sibilinamente que os 424 casos comunicados à Comissão são coisa pouca, que esperava até pior, fazendo, de imediato, lembrar a sinistra secretária de estado da Protecção Civil quando afirmou que, segundo os algoritmos, deveria ter ardido muito mais floresta do que ardeu....

Marcelo tem uma costela de bisbilhoteiro, outra de beato e uma terceira de torcer sempre pelo lado de quem manda ou tem pergaminhos. Tudo isso ajuda a explicar que não consiga estar calado e venha dar a sua mãozinha à Igreja nesta sua hora difícil, mormente àqueles que dentro dela têm mão beijável e guardam a chave da casa... E despachou-se a vir a público menorizar o cômputo da Comissão: que são até relativamente poucos os casos, sobretudo considerando o intervalo de tempo imenso que foi facultado aos possíveis queixosos, que há gente a poder queixar-se já com 90 anos, a quem essas coisas sucederem há 60 anos, etc. e tal. Dito de outro modo: o que pode esperar-se de fiável de alguém com noventa anos, ou exigir de precisão a uma memória com mais de 60 de tempo decorrido sobre os acontecimentos? Marcelo é premeditado e retorcido a disparar as suas balas de fragmentação. É possível que agora, após a indignação geral que assolou o país na sequência do seus ditos e comportamento, o presidente se apreste a condecorar, com as honras dos dourados, os membros da Comissão... Atira-me água benta, como cantavam os GNR. 

Quem também se apressou a vir a público defender Marcelo foi António Costa - que contente deve ele estar com esta nova pantomina do presidente. É mais uma que Belém lhe fica a dever... Venham mais patas na poça como esta que, a pouco e pouco, S. Bento ir-lhe-á passando uma laçada suave pelo pescoço - depois será só puxar a trela; com etiqueta, é claro, e eis o velhinho neutralizado. Um dia destes, mais cedo do que o esperado, uma vez que Marcelo não se aperta por muitas horas, o primeiro-ministro estará na posição confortável de, em tom compreensivo e paternal, poder vir afirmar sorridente que mais aquela afirmação de Belém não passa de um dos queridos e inofensivos exageros do nosso presidente, que o povo já sabe como ele é e por isso o adora...   

10 agosto 2022

"SENSAÇÕES QUE EU FINTO" (o nosso homem no Katar)

Mesmo assim, a crer na foto, ainda parece ser no cabelo que Manuel Gomes Samuel, diplomata e representante de Portugal no Katar, tem mais-valia de melanina ou, talvez, mais ferrugina acrescentada...

Não querendo ficar atrás no pódio das idiotices, este artista português, que acumula a diplomacia com a cantoria pimba e tem várias composições na Net (uma dela intitulada "Loucura", de que deixo a letra inspiradora mais abaixo) veio dizer à TV que quanto mais preto um tipo for maior resiliência possui e mais apto está a trabalhar ao ar livre em países com temperaturas acima dos 40 graus, como é o caso dos emirados árabes. Esta constatação científica do Nosso Homem em Doha, um alto funcionário do Estado, deveria ser aproveitada de imediato por Marta Temido, que advoga igualmente uma maior resiliência dos profissionais do SNS, ou pelos Bombeiros Portugueses, na luta contra o inferno dos incêndios, pois este género de trabalhadores, graças à alta concentração em melanina, resiste a tudo e, quem sabe, permitiriam até a poupança das golas anti-fumo do saudoso ministro Cabrita. Viva a melanina, embora, a crer na letra de "Loucura" a cor preferida de MG Samuel, nome artístico do embaixador, seja o vermelho-tinto.

Na mesma entrevista, durante a qual exibiu o ar vaidoso e satisfeito de quem está a atingir o seu momento de glória, MG Samuel aconselhou ainda todas as tribos gay, que se venham a deslocar ao Katar durante o mundial, a evitar ser invadidos pelo cio (para usar uma frase da sua canção) e manter durante a estadia decoro no comportamento, para não chocar os autóctones, que, embora usem vestidos compridos e toucados, gozam da fama de ser muito púdicos. "Mantenham o brio", porra, como advoga o nosso embaixador cantante.

E, agora, a fantástica letra de "Madness": 


Tudo começou num momento de miragem / Eu estava lá vendo a tua imagem / Quando de repente, tu te foste embora / E eu fiquei sentado, mais de uma hora / Olhando para o vazio do horizonte fora / À espera que tu voltasses para onde a gente mora / Isto é loucura, loucura que eu sinto / Desejos frustrados, sensações que eu finto / Mentiras escondidas, mas eu não minto! / Amor forçado, de côr vermelho tinto Quando eu deixei de estar ao teu lado a vida deixou de ter significado... / Quando eu deixei de estar ao teu lado a vida deixou de ter significado, para sempre... / Tudo foi um sonho, um sonho que ruiu / E eu iludido de esperanças sem fio / Desejando uma mulher que ninguém viu Uma cara e um corpo num espelho que se partiu / Senti-me desesperado, invadido pelo cio / Mas vi-me obrigado a manter o brio Isto é loucura, mas eu não minto / Amor forçado, para sempre.

30 julho 2022

É CONSIGO, ISSO DO FRUTO DO SEU VENTRE


Cara leitora, se é candidata a grávida aceite um conselho: evite os signos zodiacais de Caranguejo, Leão e Virgem para horóscopo do seu futuro bebé, isto é fuja, como o Diabo da cruz, dos meses de Verão para término do feliz desenlace! De outro modo irá ter de andar a consultar o Portal do SNS (cada vez mais parecido com o Borda d'Água) para identificar quais as maternidades abertas ou fechadas no dia do parto, antes e após a meia-noite, ao fim de semana; irá, igualmente, ter de consultar os portais da Administração Interna para aferir se alguma das estradas por onde terá de percorrer dezenas ou centenas de quilómetros irá estar cortada por incêndios; irá ter de ir ao site do INEM procurar quantas ambulâncias estão como as esquadras móveis da polícia do Porto, isto é escangalhadas. Cara leitora, evite os meses de Verão para ter o seu, outrora, feliz acontecimento, transformado em angustiante acontecimento desde que o Serviço Nacional de Saúde ser transformou no Serviço Nacional da Inacessibilidade. 

E apesar de uma gravidez não ser doença siga os conselhos do Presidente da República e da Ministra da Saúde, que aconselham a não adoecer no Verão. E, se for teimosa e insistir em parir o fruto do seu ventre, prepare-se a acusação de ser a culpada pela situação e siga, ao menos, os conselhos da Directora-Geral de Saúde: não inclua bacalhau à Braz na sua ração de combate e enfie na mochila uma camisa de dormir e um garrafão de água para as horas que irá esperar em todos os serviços de urgência por onde terá de penar até que o seu bebé possa, finalmente, ver a luz do dia em relativa segurança.

Ao arrepio da conversa da treta sobre incentivos à natalidade, em cada um dos últimos dois meses morreu um quase-bebé por falta de atendimento nos hospitais onde as mães recorreram e era suposto terem recorrido: o primeiro, em Junho, nas Caldas da Rainha e, já esta semana, o segundo no Hospital de Santarém. A história desta segunda morte é macabra e evidencia negligência a toda a prova da rede dos Serviços de Saúde do Estado. Uma grávida de 41 anos (idade, por si só, condicionante de alto risco para gravidez e parto), seguida na gravidez por médico particular, estando em fim de tempo para parir apresentou-se no hospital da área de residência (Abrantes) com uma carta do médico assistente, resumindo a sua situação clínica e aconselhando que aí passasse a ser enquadrada nas poucas horas que faltavam para o parto e, depois, no parto em si. Uma obstetra, escudando-se na situação de a urgência de Obstetrícia estar "em estando de contingência" (essa fantasia trapaceira inventada pela Ministra da Saúde), atendeu-a com maus modos num corredor, em pé, negando-se a ler a carta do colega, por esta vir da "Privada" e recusando-se a tomar conta da situação. A grávida que fosse, pelos seus próprios meios, bater a outra porta... Aflita, a senhora foi bater à porta que lhe indicaram: Santarém, a 100 km de casa! Mas era tarde quando aí chegou e a criança já estava morta no útero, tendo a já martirizada mãe sofrido o horror de dar à luz um ser de imediato destinado ao cemitério. Desumano e evitável. 

Quando o caso veio a lume, o hospital de Abrantes fez o que geralmente fazem os serviços públicos, que é negar tudo e acusar a vítima de ser a culpada pela situação. O hospital de Abrantes apressou-se a dizer que não havia "registo" de essa senhora lá ter ido e, paralelamente, que (agora já segundo os seus "registos") tal pessoa não tinha tido a gravidez seguida nesse hospital, implicando sub-repticiamente a não-obrigação em receber a parturiente, como se houvesse um qualquer sistema de fidelização, tipo assinatura de telemóvel, e uma grávida tivesse de ser seguida em local X para, depois, ser atendida no parto nesse local X. Bela leitura da Constituição e do muito propalado Direito à Saúde! 

Durante um dia ou dois, talvez mais, o Hospital de Abrantes continuou a insistir nessa de "não haver registo" como se pudesse haver registo formal de uma situação que é despachada, em maus-modos, numa conversa de corredor. Que mais seria necessário para assumirem que a senhora procurou os seus serviços? Visionar as gravações do sistema de videovigilância do hospital, como faz a polícia com os criminosos? E que raio de Obstetra é essa que, estando ao serviço e tendo à sua frente uma grávida de risco (pela idade) e em fim de tempo, se recusa a ler a comunicação de um colega sobre o caso e corre a parturiente dali para fora sem sequer avaliar o caso? Que juramento profissional fez ela, quando se comprometeu, como médica, a não negar assistência a ninguém que lho peça e o necessite? A situação, que tem vindo a ver a luz do sol à medida que os implicados são apertados pela comunicação social, compagina, no mínimo, deficiente ética profissional e negação de assistência médica dentro de um estabelecimento oficial prestador de cuidados de saúde.

E de Abrantes para cima? Lacerda Sales (secretário de estado da Saúde) veio, sem compromisso e com presteza, anunciar dois inquéritos, como quem reforça o nó num embrulho. Dois dias antes, na TV, o mesmo senhor tinha anunciado que tudo estava sob controlo no mundo da Obstetrícia e que o novo funcionamento em rede dos serviços iria garantir que ninguém ficasse sem os cuidados, rebéubéu pardais sem ninho. Mas e a patroa dele, que aparenta ter desaparecido do mapa e empurra Lacerda, que sempre evidencia maior poder anestesiante, para a frente das câmaras? Bem, uns dias antes desta tristeza desatada, quando os jornalistas a questionaram sobre o novo agravamento do estado das urgências e do atendimento obstétrico, afirmou rispidamente que o facto não era nenhuma novidade para ela e que já tinha, até, avisado que isto ia acontecer! Temido ficou encravada no pensamento pandémico, ao que parece, e esta parece uma velha frase rebuscada aos tempos do Covid19 e em que ela gostava de prometer algo como "ainda vai piorar antes de melhorar". Enquanto aguarda um director executivo para o SNS que passe a assumir todas estas chatices, Marta comporta-se em modo 'maioria absoluta' - embora tenha responsabilidade por tudo isto, na verdade não tem que sentir responsabilidade por nada. Prefere viver na recordação doce do tanto de bom que se fez e não se afligir muito a pensar neste presente em que já falham as urgências de pediatria e as urgências em geral, não apenas as de Obstetrícia. E se, dantes, tudo isto era apenas mazela do pobre interior do país, a mancha alastra já aos grandes hospitais centrais da capital. É mesmo caso para se dizer: que seca extrema!    

16 junho 2022

SOLENEMENTE INCOMPETENTES

Taxa de mortalidade materna em Portugal, 2002-2020. Fonte: DGS, INE.


Apesar de termos das mais baixas natalidades do mundo, Marta Temido e o seu Ministério da Contingência prefeririam que os portuguese fornicassem ainda menos, pois nem mesmo com tão poucos partos consegue dar conta do recado.

Perca um minuto a observar o gráfico, que foi feito pela DGS (isto é: Ministério da Saúde) com base em números do INE. Esta informação é pública, a tal ponto acessível a quem a quiser ver que eu próprio acrescentei a informação respeitante ao ano de 2020, a qual, apesar de disponível, não constava ainda no gráfico da DGS.

Na imagem pode acompanhar-se a evolução nos dezoito anos de uma coisa que dá pelo nome de taxa de mortalidade materna, e que representa o número de grávidas, parturientes ou mães recentes que morreram em consequência do processo de gravidez e parto. Diga-se que este indicador não espelha somente as mortes maternas, sendo tão sensível que é considerado internacionalmente como reflectindo o grau de desenvolvimento (ou atraso) de um país. Em Portugal, este indicador foi desgraçadamente alto durante os anos 50 a 80 do século passado, tendo, progressivamente, melhorado e atingido o extraordinário valor de 0 em alguns dos anos da década de 90, reflexo da melhoria das condições gerais do país e, muito particularmente, da planeada atenção dada à gravidez (consultas regulares de seguimento, vacinação) e às condições em que se efectuava o parto (parto hospitalar e não podendo ocorrer em qualquer hospital). O cuidado com esta área foi tanto que, apesar do protesto de algumas autarquias mais bairristas, se encerraram pequenas maternidades sem o pessoal ou os meios necessários e, em nome de um treino sério, hospitais com um número demasiado reduzido de partos deixaram de ser oficialmente reconhecidos pela Ordem dos Médicos como local apropriado para formar a mão dos futuros especialistas.  

Conforme mostra a imagem, a partir de 2005 esse panorama sorridente começou a inflectir, termo que o Ministério da Contingência adoptou recentemente e adora usar, a crescer, regularmente e previsível como um relógio, tendo sofrido uma escalada imparável a partir de 2016 (ainda o Covid dormia no seio do não-ser) e atingindo em 2020 o himalaiano valor de 20,1 mortes maternas, valor que não se registava por cá desde 1980 (19,1 mortes maternas), ultrapassando até os limites máximos previstos na haste vertical do gráfico que, coitada, não ia além do valor "20". 

A pergunta é evidente: e ninguém se deu conta disto, desta tendência que tem 15 longos anos de evolução e 6 de escalada? Não, pelos vistos, ou, se o deram, fizeram o que também é hábito no tal Ministério da Contingência: mandou-se buscar a pá e a vassourinha e toca de varrer para debaixo do tapete - podia ser que ninguém desse conta, particularmente os jornalistas, que às vezes gostam de escabichar nos números. É claro que, em relação a este problema, houve quem, na altura própria e repetidamente, se desse conta da ausência, carência ou esgotamento de alguns requisitos essenciais e as associações profissionais (médicos, enfermeiros, administradores hospitalares) queixaram-se repetidamente à tutela, avisaram; em seguida houve até demissões de responsáveis hospitalares e declarações de isenção de responsabilidade assinadas por centenas de profissionais que viam a barragem prestes a ceder ao volume das águas que trepavam. Faltava um pouco de tudo, mas sobretudo gente e a pouca que havia, mal paga e exausta, debandava para paragens mais risonhas, fosse no sector privado fosse no estrangeiro. Tudo isto, recorde-se, foi como pregar no deserto; tudo, sublinhe-se, se passou antes das costas-largas do Covid.

De repente, pelo gatilho de um recém-nascido que morreu nas Caldas da Rainha por falta de assistência, a coisa estoura, como sempre acontece aos abcessos deixados à sua sorte. Mas, para além disso, o inchaço gravidez vem com uma idiossincrasia chata: não se consegue adiar a resolução para as calendas com a mesma facilidade com que se procrastinam operações às cataratas ou às juntas emperradas dos velhos. Quando as águas estouram há que ter um local que receba e cuide, de outro modo, e em poucas horas, pode morrer a mãe, pode morrer o filho, podem morrer ambos. E isso dá uma péssima imagem na abertura dos telejornais e depois lá tem de ir alguém dizer que foi criada uma rigorosa comissão de inquérito... Num serviço atrás do outro, esmagadoramente na cronicamente incapaz Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, a recepção de grávidas e parturientes nos hospitais do SNS foi cerceada e quem precisasse teria de correr Ceca e Meca até que finalmente alguém o recebesse. "Aguenta Goretti, respira fundo e cruza bem essas coxas! São só mais 80 Km..."

Estremunhada, Temido surge finalmente nos LCD a assegurar estar alerta, que já no dia seguinte começará reuniões de alto nível na área da capital e seus subúrbios, onde os serviços de obstetrícia estão a ser assegurados até por médicos ainda estagiários da especialidade... No dia seguinte, de facto, já ela tinha dado a volta ao texto e composto a narrativa para acalmar o povo, uma narrativa superficial, patética e, de certo ponto de vista, intelectualmente desonesta. Ora o que foi ela descobrir como linha de fuga? À falta de, desta vez e assim tão de repente, não poder descarregar culpas directamente sobre a Ordem dos Médicos ou sobre o Covid19, engendrou que a falência da capacidade dos hospitais é como se fosse uma espécie de pandemia, ou seja, que, no fundo, é incidente que pode simplesmente suceder, como se fosse uma bactéria ou um vírus; um acontecimento exterior que, sendo exterior, não é responsabilidade dela... É uma teoria fatalista, é o destino! De tal modo se satisfez nesta teoria que acabou a afirmar, contente, peremptória e pedagógica, que o Ministério irá usar nesta situação (dos serviços que fecham como berbigões à proximidade do dedo) a mesma estratégia de contingência que se mostrou tão eficaz no Covid19: a Contingência, saia um plano de contingência para as maternidades de Lisboa! 

Resumindo:  isto pode acontecer a qualquer Governo, com a naturalidade ou a imprevisibilidade do choque com um meteoro ou de uma praga de gafanhotos e o caminho para enfrentar a disrupção é a contingência, que é como quem diz: encarar o problema criado como uma anormalidade e não como algo que compete a qualquer SNS civilizado e minimamente capaz: a função de estar vigilante e ser responsável pela, neste caso, saúde materna da sua população.

Para além da Contingência, Marta Temido mostra-se ainda disposta a tudo, até a ir buscar obstetras ao estrangeiro, até a formar médicos obstetras no estrangeiro se preciso for! Talvez alguém lhe pudesse ter dito que não são necessários tais extremos de heroísmo, que há por cá médicos suficientes para os (poucos) partos que vão pingando e que são já inferiores aos portugueses que morrem anualmente. Acontece que grande número desses profissionais estão no sector privado que, actualmente, é já responsável por cerca de 20 % dos partos que se fazem no país. Talvez, para começar a resolver o assunto, inadiável e urgente, de quem necessita de parir, a ministra devesse ter pensado nisso logo à cabeça: se não sou capaz e há quem consiga, tenho de ir ter com esse que consegue. É uma vergonha ter de chegar a isto? Sem dúvida, mas afinal quem deixou chegar o descalabro até aqui, apesar do que os números e os gráficos gritam aos quatro ventos? 

Nossa Senhora da Contingência.

Na sua torrente explicativa, na solenidade das conferências de imprensa ao país, Temido, para além de pedir que nos uníssemos todos em volta da fogueira e não exagerássemos nas queixas, prometeu também ir formar: a) uma Comissão, b) um grupo de acompanhamento, c) uma rede nacional de referenciação em saúde materna, d) outras miríades de iniciativas que, pelo tom de peditório nacional, recordam as antigas campanhas sanitárias dos países em vias de desenvolvimento e tresandam a ineficácia e entretenimento...

À margem de tudo isto, o sector privado mantém-se discretamente em silêncio. É estranho, mas não vi ninguém interessar-se em ir perguntar-lhe se tem tido problemas com os partos, o seguimento de grávidas ou a falta de médicos obstetras. Pelos vistos não, pois se até se dispuseram a dar uma mãozinha a Marta Temido nesta hora aflita.

Numa excelente e recente biografia sobre Fernando Pessoa, escrita pelo norte-americano Richard Zenith, o poeta refere-se a uma certa categoria de portugueses como sendo "solenemente incompetentes". Pessoa fala de uma realidade que o rodeava nos anos de 1920, mas o termo parece ainda útil cem anos depois.    

 

 

   

 

29 abril 2022

GUTERRES E AS MATRIOSKAS

Vinte e quatro horas após ter sido recebido com sobranceira indiferença no Kremlin, eis o secretário-geral da ONU passeando-se pela baixa de Kiev de mãos atrás da costas como se flanasse no Chiado, detendo-se aqui e ali para observar um aspecto pitoresco e causando o espanto entre os guarda-costas e a comitiva.

Depois, mal entrado na sala do encontro com Zelenskii, Guterres abriu o saco das emoções e das boas intenções, vibrou com as desgraças da Ucrânia, conseguiu imaginar para as câmaras o que seria se a sua própria família levasse com um morteiro pela cabeça abaixo, e apresentou enxurradas de inferências teóricas, uma das quais sintetizava que (tal como acontece com as bonecas russas) se estava perante uma crise dentro de uma outra crise, sendo a crise mais de dentro o que se passa no interior do estaleiro em Mariopul e a crise mais de fora a invasão russa da Ucrânia. Satisfeito por ter conseguido fatiar o bolo, Guterres prometeu que, para já, se iria concentrar totalmente na primeira, sem, é claro, esquecer a segunda.

Entretanto, não querendo ficar de fora do encontro de Kiev, os russos, mal terminara a conferência, fizeram-se anunciar despejando dois mísseis sobre Kiev, explodindo o que não foi interceptado pelas baterias antiaéreas a escassa distância do local onde o secretário-geral da ONU se afadigava. Estamos falados no que concerne ao que Moscovo toma em atenção a ONU e quejandos.

Visto tudo isto, não será pois totalmente descabido que Guterres, que tem um fraco pelos corações ao alto e as mãos postas, comece as preces pelo milhar e meio de pessoas que se encontram no interior do estaleiro de Mariopul. Putin disse tudo quanto tinha a dizer sobre o assunto há semanas, quando afirmou que, ali, não entrará nem sairá uma mosca. É assim, como insectos, que considera quem lá está, cercado... 
O que ele gostaria mesmo era conseguir agarrar, ainda vivos, os combatentes do estaleiro, para os fazer desfilar na parada de 9 de Maio, em Moscovo, porventura aplicando-lhes um laxante umas horas antes, para que se cagassem de medo durante o desfile, um detalhe que os antigos soviéticos não descuravam quando se tratava de exibir prisioneiros. Mas afigurando-se isso difícil no actual figurino, Putin optará por deixá-los às voltas no espeto, empatando Guterres e os corredores humanitários e esperando que quem resta nos subterrâneos vá estourando de fome, de doença ou ferimentos, de
angústia e de medo. Afinal quem ali está, à mercê, são precisamente os mais icónicos "nazis ucranianos", os que é forçoso desnazificar, mais os respectivos comparsas: família, vizinhos, amizades, alguns velhos, nada que aqueça ou arrefeça. São pouco mais que poucos, se se fizer pesar a glória do Império no outro prato da balança. Que estourem! É para o lado que o assassino industrial de Moscovo dorme melhor. 

  

07 abril 2022

POUCOS MAS BONS!

 

Na corajosa luta contra o colosso russo, uma das poucas armas que vai restando aos ucranianos (sós no processo, pois ninguém anda por lá a morrer por eles) é a palavra, a divulgação internacional da sua tremenda aflição. Parlamento atrás de Parlamento, o presidente ucraniano tem falado para todo o mundo e, quem o ouve, está atento às suas razões, aos anseios do seu país, aos seus pedidos de ajuda.
Chegada a vez a Portugal, fica-se estupefacto ao tomar contacto com a notícia de que meia-dúzia de parlamentares naftalínicos "não acompanham a iniciativa", como metaforicamente o PCP expressa a sua oposição. O PCP que, apertadinho, já caberia num táxi, vem, pela voz da sua líder parlamentar, dizer que não deveria ser permitido a Zelenskii falar à Assembleia, e o primeiro motivo que invoca é rançosamente burocrático: quem está apto a falar no parlamento português são os chefes de estado de visita ao país. Ora o ucraniano não está cá! Anda longe, distraído em ninharias.
Para além disso, continuam os comunistas, deixar o homem falar aos deputados lusos seria um serviço à escalada da violência, à militarização desenfreada, e os comunistas são todos pela pomba branca com raminho no bico. E, já agora e por omissão, por Putin, por Lavrov e pelos outros todos dos arredores do Kremlin, ao que se vai vendo.
Na outra órbita desta estranha realidade, a donzela da ONU manifesta-se diariamente "em choque" com os episódios que lhe chegam de Leste. Um ser lacrimoso, é curto para os tempos que correm.

05 março 2022

JÁ ERA

A atitude geral é a do tipo que, boca atafulhada de pregos, os vai espetando, um a um, no caixão, sem se aperceber que é o próprio caixão que prega. De resto, enquanto martela, vai palrando com o interlocutor e tem resposta pronta para tudo, nunca se deixa apanhar num aperto, transparece-lhe no rosto a satisfação por ser assim tão espertalhaço. Uma mãe diria, desvanecida: já em pequeno era assim, tinha as respostas na ponta da língua! 

Esta mesma pose é a que transparece na entrevista que dá ao Público em 4 de Março deste ano que corre. No começo da conversa, João Oliveira ainda vai esbracejando na apertada casaca do democrata sensato, reflexivo e equidistante, até reconhece que o que a Rússia praticou na Ucrânia foi uma invasão! (após o tsunami que a posição do PCP desencadeou na opinião pública, tornava-se necessário deitar água na fervura). Mas, no reconhecimento da invasão, não surge nunca uma palavra para censurar Putin ou o Kremlin. Pelo contrário, e à medida que se entusiasma e esquece a contenção que teria jurado a si manter perante os jornalistas, Oliveira vai expondo os tristes ossos do seu dogma sobre o assunto. A saber:

a) A Ucrânia já bombardeava civis no leste do país e isto já no tempo de Zelenskii;

b) O Presidente Zelenskii fartou-se de incorporar nazis nas suas forças armadas (a presença consentida destes nazis é sublinhada três vezes por Oliveira ao longo da entrevista);

c) Os ucranianos estavam a conduzir uma limpeza étnica no Donbass;

d) O regime de Zelenski, para além de nazi, é xenófobo;

e) A revolução de Maidan (praça símbolo do momento em que a Ucrânia, em 2014, se libertou do regime fantoche, imposto por Moscovo) é designada por João Oliveira por "aquilo a que se chamou a revolução de Maidan" e durante a qual ele viu, em videos, "batalhões nazis a vangloriarem-se".

Putin não diria melhor, aliás tudo isto é, por uma pena, o que Putin e o seu regime assassino afirmam todos os dias como justificação para a invasão.

Razão tem Jerónimo de Sousa para exibir um ar crescentemente preocupado sempre que aparece em público. Coitado do homem, deve ter noção que, depois dele, nada vai sobrar do partido: nem deputados, nem dirigentes, nem votos. Com os putativos herdeiros à sua disposição, alegremente atarefados a selar e exibir o caixão, o PCP não vai longe. As causas do óbito resumir-se-ão em frase curta: suicídio por obsolescência.  

02 março 2022

DIZ-ME COM QUEM VOTAS...

Senti-me envergonhado de ser português quando soube que 2 deputados europeus portugueses tinham votado contra a resolução do Parlamento Europeu que condenou a invasão da Ucrânia pela Rússia. A resolução foi aprovada por 637 votos a favor e uns miseráveis 13 votos contra (1,3 % do total). Nos 13 que votarem contra, estão os 2 portugueses do PCP, 3 ou 4 comunistas gregos, 2 ou 3 Verdes e, pelo menos, 1 deputado do grupo Identidade e Democracia, o grupo da extrema-direita no Parlamento Europeu em que se filia Marie le Pen e onde, orgulhosamente, o Chega acabou de ser aceite. Sandra Pereira e João Pimenta Lopes (os eurodeputados do PCP que votaram contra) estão assim em boa companhia!

24 fevereiro 2022

TUDO EM FAMÍLIA

Maria de Belém Roseira, a vespazinha do PS que já se achou apta a ser presidente da república (4 % dos votos nas presidenciais de 2016), foi, há cerca de três semanas, notícia destacada do Público por estar, alegada e umbilicalmente, ligada à génese da trapalhada da concessão de nacionalidade portuguesa ao abrigo de se poder ser, talvez, descendente de um judeu sefardita.

Como já era sabido, e o Público aprofundava, a iniciativa, sem limite temporal para concessão e com critérios mais que frouxos, permite a naturalização portuguesa de praticamente quem quiser, o que tem aberto a porta a uma constelação de negociatas que passam pelo imobiliário de luxo, agências de viagens e sites que aconselham e orientam em como se obter um passaporte português/europeu sem dor e quase sem espera a preços módicos. Uma espécie de Vistos Gold, desta vez baseados na etnia... Um dos beneficiários mais recentes e mais famosos desta iniciativa foi o Sr. Roman Abramovich, oligarca russo e poderoso amigo de Putin, que, há quem o documente, faria o trabalho de rectaguarda da lavagem dos dinheiros obscuros gerados em torno do universo Kremlin, presidente incluído. Como se fosse um motorista do Rendeiro ou o amigo Carlos Santos Silva, mas a uma escala verdadeiramente impressionante.

O campeão nacional da concessão deste tipo de nacionalidade tem sido a Comunidade Israelita do Porto que, até agora, concedeu 90 % delas e está em vias de se tornar podre de rica com as diversificadas áreas que o negócio desbrava.

Estávamos com este nível de conhecimento sobre a matéria, mais a costumeira inacção do Governo em torno do assunto, quando o Público nos vem sobressaltar com a notícia de que terá sido Maria Belém Roseira a levar a iniciativa deste bolo legislativo à Assembleia da República, mas que o articulado da mesma teria sido concebido e redigido por um advogado do Porto (Francisco Almeida Garrett), por coincidência uma das figuras mais proeminentes da Comunidade Israelita do Porto e, ainda por coincidência, sobrinho da tia Maria de Belém. Como o mundo é pequeno e a Rússia tão aqui ao nosso lado.

Vera Jardim, porta-voz de Belém.

Hoje (24 de Fevereiro), ao fundo da página 14, sob a designação de artigo de "Opinião", o Público publica um texto que, em cerimonioso tom de Estado e em quatro pontos resume os impulsos legislativos que levaram à lei de concessão da nacionalidade aos sefarditas, e "fixa a excepcionalidade" de nenhum candidato ter de saber a língua a que se candidata ou sequer residir no país", com o generoso intuito de que nenhum judeu seja impedido de "regressar livremente à pátria e à língua da qual os seus ascendentes foram expulsos, perseguidos, quando não assassinados". Sê bem regressado à pátria Abramovich! Finalmente, o último ponto do texto aflora as "distorções ou ilicitudes" vindas a público em torno do assunto e, gravemente, pugna para que "se defenda a lei e se combata a fraude" (estás a ouvir Van Dunen?). Cereja no bolo: este artigo vem subscrito por quatro personalidades, uma delas Maria de Belém Roseira, como se sabe sem conflito de interesse na coisa... Como é a mais baixinha, Belém assina em último e, por assim dizer, fica ofuscada pela precedência de Vera Jardim (seu porta-voz na tal candidatura a Belém), de Alberto Martins e de Manuel Alegre, apoiantes da senhora à malograda candidatura à Presidência de 2016, em que Marcelo Rebelo de Sousa levou a medalha de ouro, Sampaio da Nóvoa a de prata, e Marisa Matias a de bronze.   

 

12 fevereiro 2022

ANTES O CORREIO DA MANHÃ!

Em tom jubiloso, o Público de ontem (11 Fevereiro) anuncia que, na "oportunidade criada pelas eleições legislativas e o início de um novo ciclo político"(!!) vai renovar o seu painel de colunistas. Aproveita para os apresentar, bem como para enquadrar os motivos da escolha: para começar são as três mulheres ("um ainda maior equilíbrio de género") e duas delas "afrodescendentes" ("promotor da diversidade da sociedade portuguesa contemporânea"). As imagens mostradas enquadram uma loura caucasiana (como diria o Chega) entre duas senhoras de pele mais escura, pois convém relembrar que existem afrodescendentes de outras tonalidades, do branco desmaiado ao negro retinto, passando pelo ruivo.

Chega-nos um travo a foguetório da redacção do jornal e os motivos citados quase pareceram bastar na escolha de um perfil jornalístico que, tanto quanto suponho, é o que espera o leitor médio de um jornal. Pessoalmente, entristece-me o tom da notícia, uma vez que as razões pela quais duas das ditas senhoras são escolhidas e louvadas são precisamente as mesmas pelas quais não se deveria afastar ou distinguir ninguém: sexo e cor de pele. É curto e, se estivesse na pele das novas colaboradoras, não ficaria satisfeito com tal começo e tal publicidade. Olha a novidade, olha que diferente! Cheira a circo e cada dia que passa desde que, em 1990, o Público foi vendido nos quiosques a primeira vez, compreendo melhor aqueles que nos cafés, praças e cantos deste país folheiam o Correio da Manhã. Afinal, ali há as mesmas notícias que se podem encontrar nos outros jornais, umas postas de novidades suculentas, e pouco catecismo. E, em termos de posterior utilidade doméstica, o Correio é bem mais generoso em papel do que o anorético Público, o que permite embrulhar muitos mais molhos de grelos e enrolar muito mais cones de castanhas assadas.

Mas uma notícia positiva deve ser realçada na parangona do Público de que vos falo: Rui Tavares (o rapaz do Livre) deixará de brindar os leitores com as fastidiosas e pormenorizadas crónicas em que explica aos leigos como o mundo poderia ser um lugar muito melhor. Ao menos isso!



Acrescento em 21 de Fevereiro: entretanto tive a oportunidade de ler duas crónicas da nova colunista Carmo Afonso, que se caracterizam por uma insipidez total de tom e por uma repetição insonsa de lugares comuns que não aquecem nem arrefecem.

 

27 janeiro 2022

O CABO DAS TORMENTAS

Tenho cá para mim que, com o escoar dos dias, João Rendeiro irá acabar a implorar que o extraditem para Portugal. É que, apesar de tudo, Portugal é um país meigo para o seus criminosos, sobretudo os ricos, ao contrário de países atrasados e sem respeito pelos direitos humanos dos bandidos como a África do Sul. 

Se, para além de manhoso e espertalhaço, Rendeiro fosse um nadinha inteligente, já teria percebido isso há eternidades, tê-lo-ia, talvez, até considerado, com o conselho do seu motorista, antes de se decidir pelo país para onde iria fugir. Mas será que o homem nunca viu na TV uma reposição do Papillon, do Expresso da Meia Noite ou de um dos muitos outros filmes sobre condições prisionais nos países exóticos? Não, provavelmente o banqueiro consumia todo o seu tempo acordado a maquinar sobre como vigarizar o próximo ou como fazer cópias falsas de obras de arte arrestadas sem que ninguém desse conta. É um caso genuíno de Xicus-espertus-lusus de Lineu.  

Há apenas pouco mais de um mês engavetado na prisão de Westville, Rendeiro já lançou mão a tudo quanto se lembrou para tentar passar os dias noutro ambiente mais airoso e onde seja menos arriscado apanhar o sabonete que nos caiu ao chão: primeiro acreditou nas virtualidades de uma fiança, propondo-se pagar uns generosos 2.000 euros de gasosa ao tribunal; depois, como o expediente não resultasse, sacou das questões de saúde que, coitadinho, seriam tão gravosas que necessitam de monitorização médica permanente e na choça sul-africana, como antigamente nos liceus, só se pode ir uma vez por semana procurar a enfermeira. E não é que, estando com tosse, não lhe enfiaram sequer uma zaragatoa no turbinete médio? É uma desfeita, negar uma hipótese de Covid a um tipo que foi capaz de roubar cerca de 15 milhões de euros sem que, praticamente, ninguém reparasse! No entanto, confesse-se, parece estranho que essa premência de acompanhamento médico perante uma condição crónica, como o seu fraco coração, não tivesse preocupado Rendeiro quando andou por aí, em gincana encriptante por entre países ou hospedado em hotéis de cinco estrelas. Acresce, tendo em conta as informações clínicas divulgadas pelo próprio, que as consequências cardíacas de uma febre reumática não são, na generalidade e sua idade, nenhuma urgência médica e que o, muito badalado pela defesa, perigo de tuberculose nas prisões sul-africanas toca a todos e não antecipará forçosamente a presença do cadastrado perante o seu Criador, até porque a tuberculose é doença de contágio e consequências lentas e fácil de tratar em tipos com a condição social de Rendeiro. 

Finalmente, sem mais na manga que faça levantar o sobrolho do soberano e democrático desinteresse manifestado ao português pelas autoridades judiciais sul-africanas, João Rendeiro lembrou-se de escrever à ONU a queixar-se das terríveis condições da prisão onde é hóspede, dizendo-se, inclusive, solidariamente preocupado com a situação de outros colegas de enxerga e solicitando uma vistoria urgente daquela entidade às instalações; convidando o próprio secretário-geral Guterres a que faça uma pausa no problema da fome Afegã e na invasão da Ucrânia pela Rússia para o visitar e comprovar ele mesmo que o autoclismo da cela não funciona, que as janelas não têm vidros e que os pobres presos, mesmo aqueles com proventos para suborno, são obrigados a estar a maior parte do tempo nas celas!

Perante este acumular de agravos e injustiça, e como dizia inicialmente, é natural que o tempo, esse grande nivelador, faça despertar uma nova consciência no novel grande denunciador internacional das condições prisionais e o faça mudar de opinião quanto ao local de encarceramento definitivo que lhe é mais favorável. É que mais dezanove anos (a pena que terá de cumprir) sem autoclismo, sem água quente, com papas de aveia por croissants ao pequeno-almoço, sem lanche nem edredão, com os alísios a entrar livremente pelas janelas, com o colega mais próximo a metro e meio de distância e, eventualmente com um X-act no bolso... Para tudo resumir, sem a consideração que ele acha merecer, a que se foi habituando entre Lisboa e Cascais e que, calculou erradamente, julgaria majorada e multiplicada num país onde a iliteracia e as mordomias são ainda direitos muito fortes. 

Então, nesse dia de epifania, Rendeiro, comovido, rogará para regressar à pátria, de onde nunca deveria ter saído. É que o sonho africano já não é o que era!