Mostrar mensagens com a etiqueta CABO-VERDE. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta CABO-VERDE. Mostrar todas as mensagens

25 outubro 2017

REGRESSO

Bô dixam bai spiá nha terra
Bô dixam bai salvá nha Mãe...
Francisco Xavier da Cruz, "Mar Azul".
Vamos quase em novembro e, por todo este ano, ainda não caiu uma pinga de água no Maio. Enquanto sonha o verde tenro, o solo mantém-se seco, árido, malgrado a vegetação plantada para fixar terras e contrariar a erosão. A poeira é omnipresente.
O Maio é uma das nove ilhas habitadas do arquipélago de Cabo Verde e uma das mais periféricas na lembrança, pois não é capital, como Santiago, não possui o carisma de S. Vicente, os estonteantes contrastes de Santo Antão ou os resorts all inclusive da Boavista e do Sal.
No Maio, o mais notório é a plana monotonia da paisagem que restou de um vulcão depois de extinto e aplanado por duzentos milhões de anos de ventos soprados até ali desde o norte desértico de África.
Nessa manhã de Domingo, pelas dez horas, uma das duas carrinhas Toyota passou pela casa Amarela para nos buscar. A outra, tal como a nossa, andava a levantar pó pela vila de Porto Inglês e a pegar os restantes, pois, ao todo, seríamos uns vinte e cinco viajantes, os mesmos, em versão folgada, dos que tomavam parte no encontro médico que o liceu Horace Silver albergava durante uns dias. O programa desse dia consistia numa excursão à ilha, a qual incluiria uma visita ao centro de saúde e se concluiria com um almoço num alpendre com vista para o mar na residência onde estava hospedada a Maria da Luz, nossa anfitriã e de quem partira a ideia de reunir todos os delegados de saúde de Cabo Verde. Três horas bastariam para percorrer tudo quanto merecia ser visitado, ao que parecia, pois a ilha é pequena: 25 km de comprimento por 15 de largura.
Catados um a um, entre risos e conversas, arrancámos sob um sol abrasador, o astro esquecido de que despontara há apenas quatro horas.
Barreiro, Figueira Seca, Pilão Cão, eu ia reparando no nome de localidades que atravessávamos sem parar e de que a memória apenas retinha uma rua paralisada pelo calor. Entre duas localidades, nenhuma gente, somente aridez e pó e, aqui e ali, uns pés de milho desanimados, que mal ousavam a espiga; algumas verduras domésticas envergonhadas e os perfis magros de vacas e cabras que vagueavam na aspereza de encontrar sustento. Longe a longe, sem aviso, a explosão verde de um arbusto, numa cor excessiva para o leito arenoso e ocre de onde se erguia, fazia insuflar-me o peito com uma inspiração esperançada, como se tivesse acabado de engolir um gole de água fresca.
Há demorados minutos que deixáramos de ver o mar, e até as conversas tinham fenecido sob o calor, quando os meus olhos repararam numa tabuleta anunciando CASCABULHO e logo senti as carrinhas a travar num lugarejo que parecia ser constituído por uma única rua, em cujos becos espreitava a aridez do campo ou o verde empoeirado de uma acácia. “É para sair?” perguntámo-nos. Parecia que sim, e enquanto aguardava a vez de chegar à porta do veículo, chamou-me a atenção uma imensa panela que, no meio da rua, fumegava sobre brasas. Que seria aquilo?
A aldeia consistia numa rua de chão calcetado à mão-cheia, ladeada por casas de piso térreo, sem intervalo entre elas, e a casa em frente à qual, sob um loureiro-rosa em flor, fervia o panelão, pintava-se de azul intenso, amenizado por frontões brancos sobre as janelas. Dei por mim atraído pelo movimento que se encaminhava para a porta da pequena moradia, a ser saudado por um “seja muito bem-vindo” e um convite para entrar. Entrei, os meus olhos notaram a luz violenta que se infiltrava pela telha vã dos compartimentos; fui acenando em volta enquanto progredia pelas divisões apertadas, sentindo que atrapalhava as mulheres e raparigas que se afadigavam com travessas, pratos, talheres e esticavam entre as mãos oleados para cobrir as mesas postas no exterior, sob a sombra, curta mas generosa, do loureiro-rosa. Do interior de uma das janelas da casa um rapazito dispunha sobre o peitoril duas pequenas colunas de som, ligadas a um smartphone cuja música, em volume máximo, contaminava o ambiente e acenava à gente das redondezas. Que seria aquilo, quem seria o insensato que se dispusera a receber, para uma paragem apressada em nenhures, aquela quantidade de gente?!
Ia perguntá-lo a um colega que, como eu, se abrigava do calor sob o beiral estreito da casa quando uma brigada de rapazes nos empurrou para dispor nessa sombra dois ou três bancos corridos que tinham tomado, em empréstimo urgente, à capela local. E estava a festa pronta e a decorrer, e ainda as toalhas de oleado com frutas alegres estampadas ondeavam sobre as mesas, e já uma alma atenta me enfiava nas mãos um caldo fumegante, retirado à panela que rescendia no meio da rua. Era uma canja, amarela como as canjas, saborosa como as do Eça de Queiroz, mas de cabrito e não de galinha, que as cabras safam-se melhor nos terrenos onde parece nada restar para alimentar os seres. Mas ainda eu sorvia a sopa e chupava os meus pedacinhos de carne e já grossas fatias de bolo de aspecto fofo iam sendo trocadas pelos pratos de sopa recolhidos e alguém desarrolhava uma garrafa nova de whisky.
E como tudo se desenrolava e explicava harmoniosamente por si só, bastou-me ver no mesmo enquadramento a dona da casa e a minha colega Hermita para perceber, na similitude dos traços físicos, que assistia ao regresso de uma filha a casa dos seus pais, um regresso partilhado e testemunhado por colegas de todas as ilhas de Cabo Verde,  onde ainda sobrara convite para dois portugueses e um representante da Organização Mundial de Saúde.
Hermita, que conhecera dois dias antes e estava alojada com alguns de nós na casa Amarela, deixara a sua aldeia de sol eterno ainda muito nova para estudar fora. O curso de Medicina fê-lo lá longe, na Rússia, seis anos a milhares de léguas de tudo, de casa, de Cabo Verde; forçada a trocar o clima macio e a morabeza natal pelo frios perenes do leste europeu, pela estranheza da língua e do modo de ser dos eslavos. De temperamento contido, a tudo resistiu sem queixa e voltava agora a casa, a mostrar, sem o declarar, aos seus que triunfara na demanda e honrara os seus. Isso tudo se compreendia, sem necessidade de palavras, no olhar, simultaneamente orgulhoso e feliz, com que a mãe mirava a filha naquele Domingo em que a festa se mudara, levando consigo os bancos, da igreja para a pequena casa azul de Cascabulho.
Nem uma meia-hora teria passado sobre a nossa chegada quando começaram a chamar para as carrinhas, apontando os relógios, anunciando que se fazia tarde. Antes de regressar ao meu assento, contagiado pela correnteza humana, atravessei ainda a rua para ir espreitar, na casa em frente, a avó de Hermita, que tinha feito cem anos por esses dias. “Acha boa ideia?”, perguntava-me o Paulo, hesitante, “não acha que toda esta gente pode significar uma invasão da privacidade da senhora?” Encolhi os ombros, não sabia o que pensar ou o que dizer. Éramos conduzidos por alguém da família e na sala que antecedia o quarto, parentes e vizinhos sentavam-se ao longo das paredes e, não fosse os semblantes sorridentes, poder-se-ia pensar que velavam um ente querido recentemente partido. Quanto ao visitante, este penetrava no pequeno quarto durante uns instantes para cumprimentar a senhora acamada e logo se retirar e, ao apertar a mão seca dela na minha, ao encarar os seus olhos vagos e atentos, riscados por cataratas, achei que visitar a velha senhora encerrava algo do propósito da visita a uma pessoa santificada, abençoada pelos anos e pelo rasto de gente com que presenteara o mundo na parcela de eternidade que lhe fora concedida.  
© Fotografias de pedro serrano, Cascabulho, ilha do Maio, Cabo Verde, Outubro 2017.

        

12 outubro 2017

TUDO O QUE ASCENDE DEVE CONVERGIR

© Sandra & Milena. Fotografia de pedro serrano, ilha do Maio (Cabo Verde), outubro 2017.
Nota: o título  deste post é inspirado no  do livro de contos de Flannery O' Connor Tudo o Que Sobe Deve Convergir.

ENTRETANTO NA ILHA DO MAIO...

 

© Fotografia de pedro serrano, ilha do Maio (Cabo Verde), outrubro 2017.

27 julho 2015

24 julho 2015

ENTRETANTO EM CABO VERDE: OPERAÇÃO TORTILHA

Sentei-me na esplanada do Morabeza era já perto da hora do almoço, embora  estivesse ali a matar saudades usando como pretexto um pequeno-almoço tardio. Numa mesa à minha esquerda estava encaixado um tipo enorme, de óculos escuros à mosca, envergando uma t-shirt de padrão camuflado. Nervoso, batia sem cessar com uma garrafa de água de plástico vazia na borda da mesa, perturbando um pouco a morabeza envolvente.
Chegou o meu sumo de ananás com hortelã e chegou um colega do artista da garrafa tamborilante: este era igualmente enorme, musculado como um vigilante das noites do Porto; vestindo roupa caqui, óculos escuros na testa, ar desconfiado e tenso. E mais preocupado ficou quando a moça que servia às mesas – uma brincalhona de boininha verde-pistáquio e polo cor-de-rosa flamingo, lhe ralhou brejeiramente: “Então isto hoje são horas de chegar! Daqui a pouco já não te dava almoço...” E ele a levar o responso a sério, justificando-se muito, pousando os dossiers que sobraçava numa cadeira vaga.
Formadores portugueses de pessoal militar, concluí numa mirada preguiçosa, pois há um quartel ali por perto, com uma magnífica vista sobre o mar – eu e o Paulo andámos por lá numa tarde sonolenta a coscuvilhar o interior com a pachorrenta cumplicidade dos responsáveis de serviço – devem vir aqui almoçar todos os dias. Com aquele ar de rambos e aquela rotina alimenatar não era preciso pensar muito para chegar a essa conclusão, aliás estava demasiado calor para pensar.
Ao mesmo tempo que o segundo Rambo fez a sua entrada, chegou uma dupla constituída por uma mãe e sua encantadora filha, uma donzela de suprema graça e de fazer torcer pescoços na sua t-shirt negra cabeada, na saia comprida de piedpul em xadrezinho cinzento e preto. Sentaram-se mesmo em frente a mim e tirei a máquina fotográfica do estojo para  obter uma foto discreta. Tento sempre que as  fotografias sejam tiradas de modo não ostensivo, imperceptível se possível, embora, em certas ocasiões, os visados se apercebam da minha curiosidade. Às vezes isso fica a notar-se na imagem final pelo olhar directo para a objectiva com que são imortalizados. Quase sempre não se importam, as mulheres fazem até amiúde um sorriso contente ou malandro dirigido ao vácuo. Saem geralmente muito boas essas fotos em que é captado o visado a fazer luzir um olhar de entendimento e de cooperação, involuntária e instantânea, com o fotógrafo.
Desliguei a máquina; já tinha obtido as minhas fotos, e a tosta mista chegara. Estava a trincá-la em sossego quando o segundo Rambo, que até aí estivera entretido, de garfo empunhado na vertical, a despedaçar umas coxas de frango, se levantou, chegou à minha beira e, sem preâmbulo, prólogo ou introdução, declarou:
“Não quero que o senhor me tire fotografias...”
“Escusa de se afligir, você é um bocado feio para o meu gosto...”
Ficou desconcertado com a reposta, suponho que estaria mais à espera de uma réplica salpicada de “deu entrada já cadáver”, “o alegado indivíduo”, “quando os nossos homens chegaram ao local” e outras das pérolas que integram o léxico de polícias e bombeiros. Mas continuou numa arenga amuada de que vira a máquina assestada à mesa dele, a objectiva ora aberta ora fechada...
“Ouça,” tentei chamá-lo à realidade, “não estava a focar a sua mesa, não há nada na sua mesa que me interesse; estava a tentar fotografar um pouco mais à direita...”, respondi, a ver se o tipo olhava em volta e percebia que havia coisas mais interessantes na paisagem do que tipos a fazer de agentes secretos.
Nada, não valeu a pena, Rambo2 continuou naquela de “só quero que não me tire fotografias, ok?” e, como um guarda-fatos ambulante, lá regressou à mesa de onde continuou a desferir olhares de atenta desconfiança até ao momento em que chamei Miss Pistáquio, paguei a conta e me fui, desejando “bom proveito” ao passar pela mesa deles a caminho do Pão Quente, onde o café é melhor e não havia objectivos militares à vista.

© Fotografias de Pedro Serrano, Praia, Cabo Verde, Julho 2015. 

07 março 2014

SAPATOS MOLHADOS

Sobre o nevoeiro espesso da manhã caía uma chuva miúda, a sensação, um tanto leitosa, era a de estar a guiar dentro de um copo onde se dissolvia um comprimido efervescente de paracetamol.
A meu lado, a Ana Paula Magalhães, a quem dava uma boleia à estação de comboio, discorria sobre o encontro que tivera em Cabo Verde com o rapaz sobre o qual eu escrevera dois apontamentos por aqui (Natal em pleno Verão Sem Eira nem Beira) e que ela decidira ir procurar ao Pão Doce, à porta do qual costumava estar estacionado o carro abandonado onde ele dormia, pois tem um amigo em Santiago que dirige uma associação-abrigo para crianças orfãs e sem-abrigo, que estava disposto a recolhê-lo.
“Claro que ele não quis ir…”
“Não me espanta nada”, respondi, “um tipo de quinze anos, habituado a uma vida de total liberdade, ser agora enclausurado com mais uns tantos. Ainda por cima um malandro esperto como ele, que se vai safando sozinho aqui e ali…”
“Isso é agora, mas aquele miúdo vai acabar mal”, continuou a Ana Paula, “o meu amigo da associação diz que a zona por onde ele se move é das mais perigosas da cidade…”
Encolhi os ombros, numa impotência, a começar, feita dos 4000 km de distância entre a manhã morrinhenta e o ensolarado que, àquela mesma hora, estaria no Plateau da cidade da Praia.
No banco ao lado a Ana Paula, que estivera em silêncio nos últimos quarenta e cinco segundos, deu uma gargalhadinha, contou:
“Quando fui à procura dele e o vi percebi logo, pela descrição do Pedro, quem era; atirei-lhe: ‘vi uma fotografia tua...’. Ele arregalou muito aqueles olhos grandes e respondeu:
“Como é que podes ter visto uma fotografia minha!?”
“Vi, vi. Estavas até vestido com um casaco vermelho, de Pai Natal...”
“O meu amigo!”, teria ele dito, “conheces o meu amigo...” E, sem transição, olhara a Ana Paula bem nos olhos e disparara:
“Dá-me uns sapatos...”
Agarrado ao volante, ri-me:
“Estava a fazer uma associação de ideias com as havaianas que me cravou e eu lhe dei…”
“Claro!”, respondeu ela, “é espertíssimo o tipo. Quando lhe disse – não tinha totalmente a certeza, mas sabia que seria por esses dias – que o Pedro talvez estivesse em Santiago, a trabalhar, ele exclamou: ‘O meu amigo’, e desatou a correr pela rua fora até a uma casa onde funciona o Centro de Língua Portuguesa, ou lá o que é…”
“Era onde eu costumava trabalhar quando estava lá…”
“Pois, ele sabia-o perfeitamente! Sabia as horas a que o Pedro entrava, as horas a que parava para almoçar...”
Tínhamos chegado a Campanhã. Saí do carro, tirei a mala dela do porta-bagagens, dei-lhe um beijo rápido:
“Despache-se Ana Paula, que ela molha.”





© Fotografias de Pedro Serrano, cidade da Praia, ilha de Santiago, Cabo Verde, 2011.


29 abril 2013

DOR DI NHA ALMA


Canção: "Dor Di Nha Alma"; autor Betù. Cantora: Lucy; pianista: Manuel Candinho. Ao vivo no Nice's Cachito, Praia (Cabo Verde), Dezembro 2011. © Video de Pedro Serrano, filmado com câmara Leica V Lux-20. 

Duem tcheu
Alma pertam ta tchora
Bo nha rainha c'ainda onte
Juram bo amor

Pa ba na kel mesmo lugar
Cum prova mam'crebô tcheu
Cai na braços ki ka di meu
Ki ka di meu

Magoam la na fund' do coraçon
Corpo derretem
Solvê na mar d'ingratidão

M'ta lembra nos primero beijo
Era segredo d'nos paixão
Pa caba'sim di note pa dia
Note pa dia

Hoje pa bô, mim m'ka nada
Um indiferença
Bo ta spiam
Ka t'odjam
Pior ki morte

Ma disilusão ta dué
Ta quema ki nem lume
Ta foga ki nem agua
T'arasa ki nem vente
Nha amor
Nha fantasia

26 março 2013

NA CURVA DA ESTRADA

© Fotografias de Pedro Serrano, Marrador, Santo Antão (Cabo Verde), Março 2013.

24 março 2013

SANTO ANTÃO: VISTA PARA O INFINITO


Camuflado no horizonte, Santo Antão avista-se logo que, aterrados na ilha de São Vicente, descemos em direcção à cidade do Mindelo. A outra ilha lá está, nas traseiras de um cenário de mar que no dia da chegada se agitava verde de raiva e espumado nos cantos da boca. Mas os cambiantes da luz sobre os relevos da ilha vizinha produzem no céu uma paleta de brancos, lilases e ocres que se confundem com as imprecisões do horizonte, uma miragem que por instantes se revela como terra à vista para logo se esbater na bruma mística dos arquipélagos.
Se um dia for a São Vicente, visitar a incontornável cidade do Mindelo, não deixe de ir a Santo Antão, fique mais um dia ou dois para visitar Santo Antão como deve ser. Não se deixe preguiçar por não haver avião para Porto Novo ou para a Ponta do Sol nem intimidar pela viagem de barco entre as duas ilhas, pois durante a escassa hora que dura a travessia, o ferry ronrona, ensonado como os passageiros, e o nosso destino mantém-se sempre à vista, o que reforça uma sensação de segurança. E, depois, se é do tipo enjoativo, tem sempre à mão o saquinho de plástico que uma simpática menina lhe oferece ao entrar no barco e que a maioria das pessoas, por inútil para o fim a que se destina, acaba por usar para guardar os restos de alguma refeição leve consumida a bordo.  
Ao paladar, Santo Antão é como uma daquelas pastilhas em que uma metade é de cacau amargo e a outra de chocolate de leite. O que vemos, quando o barco se vai aproximando da ilha, é terra árida, em nada diferente da ilha que acabámos de deixar, como se um vulcão tivesse arrefecido apenas na semana passada e nada tivesse deixado senão a amarga tonalidade do basalto solidificado, uma memória de cinzas. No nosso caso, a linha divisória entre a metade amarga e a doce tem o significativo nome de Delgadinha, uma escarpa a altitude de águias, em que a largura do terreno mal chega para a faixa da estrada de empedrado onde zigzagueia o nosso transporte; crista que, de um e do outro lado dos retrovisores laterais, mergulha em ravinas que nos provocam a nostalgia própria dos seres desasados. Sim, como o gume estreito de uma faca, a Delgadinha corta-nos a respiração e dá o mote para definir a ilha de Santo Antão, uma majestosa filigrana de rocha suspensa no mar.
“Quem não gostar de rochas e montanhas é melhor não vir a Santo Antão”, dizia-me o Paulo puxando o travão de mão no meio da estrada, para que saíssemos do jipe a espreitar os vales profundos e as formigas que, por carreiros pendurados no ar se dirigiam para as suas casas com vista para o infinito.
Continuámos viagem, parando aqui e ali para dar uma boleia, como deuses assistindo ao esfarrapar das nuvens que, aos nossos pés, se rasgavam contra cordilheiras afiadas como dorsos de dinossauros. De surpresa em surpresa mal acreditava estar em África, pois a vegetação ia-se adensando em matas de pinheiros, eucaliptos, criptomérias e outras árvores dos climas temperados. E, lá em baixo, faiscando num azul esmaltado que contrasta com o anilado anémico do céu, sempre o mar, a recordar-nos que tudo podia não ser mais do que um sonho que uma vaga deixou a descoberto por agora.
Anoitecera, a paisagem desapareceu. Desfiz a mala pelos armários do meu quarto da residencial Top d’Coroa (o nome de um monte de formato curioso da ilha) e fui jantar um polvo guisado ao Cantinho d' Amizade, o sítio adequado para se comer na povoação da Ribeira Grande. Adormeci no meio do pessoano latir esparso dos cães na noite que, mais do que perturbar, pontuavam o silêncio.
No dia seguinte, como quem fora mudado de cenário por espíritos benfazejos e brincalhões, acordei entre mangueiras, jacarandás, bananeiras, tufos de buganvílias e plantações de cana-de-açúcar. Mas isso é a outra metade desta história que, em rubrica fora do local habitual, dedico ao Paulo Graça, um natural de Santo Antão que, com hospitaleira naturalidade, me recebeu e mostrou a sua terra.

© Fotografias de Pedro Serrano, Santo Antão (Cabo Verde), Março 2013.