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05 setembro 2020

O que acontece em Cuba quando se paga uma cerveja...

    Bolero "Hermosa Habana", © filmado por José Serrano, 
Trinidad (Cuba), Casa de La Musica, Setembro 2004.

01 dezembro 2013

A VÉNUS DE AREIA

Trinidad, património da humanidade, dista 600 km de Havana. Resolvemos viajar até lá numa camionete expresso que partiu manhã cedo da capital, parou uma hora em Cienfuegos, onde comprei um CD de Los Zafiros, e nos deixou num resort da praia de Ancó já o sol se punha no mar do Caribe. Pelos vistos, as agências de viagens não confiavam nos alojamentos da cidade e, mau-grado a insistência, tinham-nos empurrado para uma daquelas estâncias all inclusive, onde tudo é horrível, desde a comida aos hóspedes que, para fazer render o que pagaram pela gratuitidade, se embebedavam com rum rasca desde manhã.
Deste modo, pelo meio da tarde, logo que nos enchíamos de flutuar no bidé que fazias as vezes de piscina do local, chamávamos um táxi e zarpávamos até à cidade, a uns vinte ou trinta km dali. E isso, Deus do céu, valia a pena.
Estar em Trinidad é como estar mergulhado num cenário de há duzentos anos atrás e, não fora pelo contágio da música omnipresente, tudo seria sonolento e parado como Viana do Castelo às onze da noite. A cidade é pequena, coloridamente arruinada, com a maioria das ruas em terra batida e as restantes calcetadas de seixos que vão mostrando os dentes à medida que as chuvas os desencastoam do alinhamento. Cães, burros, cabras e gente circula por ali numa ruidosa mistura e aos turistas como nós é, perante uma indiferença simpática, permitido espreitar por entre os gradeamentos à espanhola que resguardam as janelas de sacada das velhas habitações e ter uma mostra de um casal de velhos a ver TV nas suas cadeiras de balouço ou seguir uma dona de casa a pôr os pratos para o jantar em volta de uma mesa de pernas torneadas. Com surpreendente frequência as salas de estar têm um velho piano de cauda no centro do soalho de mosaico axadrezado e pesos de relógios de caixa reluzem por entre vasos de plantas de interior.
Isto passou-se há exactamente dez anos, embora o mês fosse o de Setembro, tempo de furacões e outras tormentas meteorológicas na zona. Mas até ali, e já veraneávamos por Cuba há uma semana, nada mais do que dias azul-ferrete; rumorejar sonolento de palmeirais; noites cálidas de trompetes a elevar até às estrelas os registos agudos e rum velho a emprestar uma tonalidade de caramelo aos cálices que eu e o Zé João (e todos os outros em volta) íamos vertendo nas poltronas de palhinha do Hotel Nacional.
Nessa tarde particular, quando o táxi nos despejou no centro da cidade, resolvemos ir espreitar uma feira ao ar livre, uma coisa meia improvisada e constituída por algumas filas de tabuleiros cobertos de bugigangas com um vendedor por trás. Nada que tentasse por aí além, pois bastava olhar para aquelas congas ou para aquelas flautas para perceber que não durariam um mês nem haveria afinamento possível para aquelas flautas.
Serpenteávamos entre os vendedores quando percebemos que, de súbito, uma certa agitação os tomara: alguns olhavam o céu apreensivos enquanto outros, mais previdentes, transformavam já em trouxas as mantas onde expunham as vendas. Com uma certa prática de errância pelo sul, eu já conhecia o que era uma chuva tropical de as ter experimentado na Índia ou em África. Bagos de água, capazes de arrombar a armação de um guarda-chuva, desabam do céu como xícaras de chá morno e em minutos as ruas não se distinguem do leito de uma ribeira.
Foi o que aconteceu e só tivemos tempo de correr para a soleira de uma casa, cuja entrada era coberta por um pequeno alpendre. E por ali ficámos, colados à porta de madeira, empoleirados no degrau, olhando, sem acreditar, a torrente que crescia aos nossos pés e uma rua que já se poderia descer de barco.
Depois sentimos a porta entreabrir-se e uma voz de mulher convidou-nos a abrigar enquanto a chuva não parasse. Entrámos para uma sala sombria e modesta, onde havia um sofá revestido com plástico transparente e, em lugar de destaque, uma imagem emoldurada do Che Guevara que lembrava um Cristo pela bondade do olhar transparente e pela luz que parecia jorrar do seu vulto.
Eu e o Zé estávamos sozinhos na sala, pois os habitantes da casa tinham recuado para outra divisão qualquer, como se os papéis se tivessem invertido e eles permanecessem, intimidados, em casa alheia! Ouvíamos as vozes abafadas vindas dos fundos e, também um tanto embaraçados pela invasão, mantinhamo-nos próximos de uma janela, controlando a evolução do tempo lá fora.
E não parava de chover!
Cansado da vista, um pouco mais ambientado, circulei lentamente pela sala e detive-me a olhar um armário envidraçado como se estivesse no Hermitage: lá dentro, dispostas em prateleiras, havia algumas miniaturas de animais em vidro e, dominando tudo, uma pequena estátua de um contorno de mulher. Era uma qualquer vénus de artesanato, esculpida em madeira cor de chocolate, sem olhos nem boca e, claro, sem braços como uma vénus que se preza. O corpo, de pescoço longo, cintura delgada, ventre liso e ancas aconchegantes, era coberto por um vestido de cerimónia, comprido, de alças, que lhe realçava as formas e, no seu relevo claro, quase cintilava na luz soturna da sala tristonha.
Dos fundos, chegou-me uma voz que, cautelosa, perguntou se gostava da boneca, se estaria interessado em comprá-la... Hesitei um pouco, mais por remorso de arrancar o distinto objecto ao seu lar do que propriamente por não o desejar. Perguntei, por perguntar, o preço:
“Dez dólares...”, a resposta veio pronta.
Ah, em Cuba, sabem como é, os cubanos estão sempre atentos a alguma forma de poder arredondar o limiar de sobrevivência em que se movem com uma inspiração e uma iniciativa invejável.
Lá fora a chuva parara, a rua escoara a água, o calor voltara, os pássaros retomaram o canto, o movimento recomeçou como se não tivesse caído uma pinga no último século.
À despedida, ainda quiseram saber se eu não estava interessado em mais algum dos objectos da sala, talvez uma das miniaturas de vidro, outra coisa qualquer, fosse qual fosse... Agradecemos muito e saímos, confortados, secos, e silenciosos.

À noite, à luz do hotel, percebi que o vestido da minha boneca era  simplesmente areia que fora engenhosamente disposta e colada sobre o corpo de madeira, de forma a dar a perfeita sensação de coleante e brilho que se desdobra no verdadeiro lamé.  
© Fotografias da Vénus de Areia, Pedro Serrano, 2013.

07 maio 2011

TREPAR PELA MARÉ

À espera do furacão IvanHavana (Cuba), Setembro 2004. 
Canção "Moonlight Drive", de Jim Morrison (The Doors, álbum 
Strange Days1967), interpretação de Zé João Serrano.
© Imagens e som de Pedro Serrano em câmara digital Sony.




Let's swim to the moon, uh huh 
Let's climb through the tide 
Penetrate the evenin' that the 
City sleeps to hide 
Let's swim out tonight, love 
It's our turn to try 
Parked beside the ocean 
On our moonlight drive 

Let's swim to the moon, uh huh 
Let's climb through the tide 
Surrender to the waiting worlds 
That lap against our side 

Nothin' left open 
And no time to decide 
We've stepped into a river 
On our moonlight drive 

Let's swim to the moon 
Let's climb through the tide 
You reach your hand to hold me 
But I can't be your guide 

Easy, I love you 
As I watch you glide 
Falling through wet forests 
On our moonlight drive, baby 
Moonlight drive 

Come on, baby, gonna take a little ride 
Down, down by the ocean side 
Gonna get real close 
Get real tight 
Baby gonna drown tonight 

Goin' down, down, down 

10 novembro 2010

Perigosa Cuba!

Se Havana está virada para os Estados Unidos e nas barbas de Miami, Trinidad é vizinha das ilhas Caymão e da Jamaica, das quais está separada por um braço do mar das Caraíbas. A distância entre as duas cidades cubanas ronda os 700 km e, ao percorrê-los por estrada, tínhamos como principal finalidade conhecer a mítica Casa da Música.
Face à expectativa, a primeira impressão foi fraca: a famosa Casa da Música de Trinidad não passa de um pátio, com as paredes que o enclausuram cobertas por trepadeiras, dotado de um pequeno estrado que funciona como palco, um barzito lá ao fundo e, como recinto da plateia, uma dezena e meia de mesas em ferro forjado branco, um tanto kitsch como as pouco confortáveis cadeiras a condizer.
Quando lá entrámos pela primeira vez, seriam umas 2 da tarde, já se ouvia música do lado de fora das paredes. De facto, as sessões começam ali cerca das 10 da manhã e prolongam-se, sem interrupção, até às duas ou três da madrugada! Cada banda em palco ocupa o espaço cerca de uma hora e, a seguir, vem outra e depois outra e outra e outra... Meu Deus, como pode uma cidade de 65.000 almas produzir tanta música e tanto quem a toque?!
Entrámos no recinto timidamente, fazendo o possível por atenuar o ruído produzido pelas  pesadas cadeiras ao serem arrastadas. Lentamente, fomo-nos ambientando e o Zé João tirou a máquina de filmar da bolsa, começou a filmar o palco discretamente.
“Zé, achas que ofereça uma bebida aos músicos que estão no palco?”, perguntei, umas duas horas depois, entusiasmado perante uma banda particularmente dotada, onde sobressaía um contrabaixo com os flancos atravessados por buracos de bala.
Ele encolheu os ombros, não disse palavra e, se dissesse, provavelmente eu não a teria ouvido tal era o volume de som circundante. Fiz um sinal à menina do bar, expliquei-lhe o que queria. Minutos depois vi-a subir ao palco com uma bandeja carregada de garrafas. Depois, os músicos olharam na nossa direcção, sem interromper o que fazia um deles segredou qualquer coisa à rapariga e, com a bandeja incólume, ela desceu do estrado, aproximou-se da nossa mesa e dispôs as garrafas no tampo. Logo a seguir, sempre sem deixar de tocar, os músicos foram saltando do palco e vieram sentar-se à nossa volta. Ali permaneceram, bebendo e tocando para nós, até se darem conta que tinham de ir jantar para continuarem a função da noite noutro local. Quanto a nós, sem programa definido, acabámos por ir jantar com um deles num restaurante clandestino a funcionar dentro de um quintal murado, onde fomos os únicos clientes, e que, por acaso, era pertença do marido de uma prima dele.

Trinidad (Cuba), Casa da Música, Setembro 2004
 Canção: "Hermosa Habana", bolero de Rolando Vergara.  
© Filme: José João Serrano.

05 novembro 2010

Contigo en la distancia

Ao contrário da Índia, onde, apesar da riqueza do país nessa arte, me vi aflito para a ouvir ao vivo, em Cuba acorda-se com música, vive-se imerso em música todo o dia, adormece-se ao som da música que, noite dentro, sobe até à janela do quarto do hotel.
O fenómeno é nacional (dizem eles, sobre si mesmo, que são dez milhões, dos quais cinco milhões são músicos), mas veja-se, por exemplo, o caso do Hotel Nacional, em Havana. Ali tropeça-se em música, não apenas a ao vivo, mas também nos ectoplasmas da que por ali andou. Nat King Cole esteve por lá nos anos 50, actuou no Tropicana com grande sucesso e, por ser negro, foi impedido de ficar na ala principal do Nacional, sendo empurrado para os aposentos, mais discretos, onde eram alojados conhecidos membros da Mafia. As suas fotografias, sorridente para a eternidade e indiferente a tais pormenores, enchem agora paredes nobres do hotel, em vizinhança com as de Frank Sinatra... E, ao passar entre corredores, podemos acariciar, com mão incrédula, as peles do gigantesco par de congas que Robert Plant, o lendário vocalista dos Led Zeppelin, ofereceu ao hotel quando por lá esteve.
Acabo de me sentar, ainda estremunhado pelas moléculas remanescentes do rum Havana Club (Añejo Reserva) da noite anterior, nas poltronas de palhinha das arcadas, com vista para o mar; pedi o pequeno almoço. Passa um pouco das onze e o Zé João ficou a dormir, os seus 15 anos também se ressentem do rum, que anda a beber em excesso para o meu gosto de pai. Mas um dia não são dias, apesar de esses dias serem noites.
Esqueci os óculos escuros no quarto e enfrento a luz forte de olhos semicerrados, embalado no crepitar incessante das folhas das palmeiras, que roçam entre si as agulhas verde-gafanhoto sob a brisa que sobe do Malecón, quando sinto uma presença no meu campo de visão. À minha frente perfilam-se quatro pessoas: uma rapariga leva aos lábios uma flauta transversal, um rapagão debruça-se amorosamente sobre um contrabaixo cujos reflexos envernizados são praticamente da cor do rum de ontem à noite; um veterano segura uma guitarra acústica junto ao pescoço e o quarto elemento do grupo, com semelhante quantidade de neve capilar, empunha umas maracas na minha direcção, prontas a disparar.
O líder do conjunto é o senhor da guitarra e, num sorriso obsequioso, pergunta se podem tocar para mim, se desejo ouvir algo em particular... Levanto-me sempre um pouco do cadeirão quando sou abordado por esta gente, sinto que sou alvo de uma deferência especial e já sei que, como acontece com todos eles, são músicos maravilhosamente competentes. Timidamente, pergunto se poderiam tocar-me o “Contigo En La Distancia”... Sorriem muito – é que a música é mesmo cubana, não mexicana, argentina ou porto-riquenha; conheço-a pela mão do Caetano Veloso e do álbum Fina Estampa, essa joia-prima. Àquela hora da manhã sou o único tipo sentado sob as arcadas, de modo que eles entretêm-se na minha companhia. A seguir, abusando do meu privilégio, peço o "La Luna En Tu Mirada” e, depois, a “Rumba Azul” e o “Mi Cocodrilo Verde”, estas duas também músicas cubanas. O som da flauta ondula, argentino, no ar e eu desejo que entre pelas venezianas do quarto e acorde aquele burro, que não sabe o que está a perder.
Consolado, pego na tosta mista e no sumo de piña, que não tive lata de consumir enquanto o grupo estava a tocar para mim, dividido entre a sensação de sacrilégio e o desejo de lhes perguntar se eram servidos.  Acabo de dar a primeira dentada e eis que sinto uma nova presença no meu campo visual... Desta vez são apenas três: duas guitarras e umas maracas, a perguntar se podem tocar para mim e o que desejaria eu ouvir. Acho que vou ter de ir trocar dólares mais cedo do que previa.

© Fotos de Pedro Serrano: Habana, Cuba (2004).


Notas: "Contigo En La Distancia" (César Portillo de La Luz), Cuba, 1952; "La Luna En Tu Mirada" (Luis Chanivecky); "Rumba Azul" (Armando Orefiche), Cuba, 1942; "Mi Cocodrilo Verde" (José Dolores Quiñones), Cuba, [?].  

04 novembro 2010

Sereias & outros moluscos

Habana (Cuba), 2004. © Filme: Pedro Serrano. 
Música: California Dreamin' (J. Phillips/M. Phillips), 
do álbum de George Benson: White Rabbit, 1971.