01 dezembro 2013

A VÉNUS DE AREIA

Trinidad, património da humanidade, dista 600 km de Havana. Resolvemos viajar até lá numa camionete expresso que partiu manhã cedo da capital, parou uma hora em Cienfuegos, onde comprei um CD de Los Zafiros, e nos deixou num resort da praia de Ancó já o sol se punha no mar do Caribe. Pelos vistos, as agências de viagens não confiavam nos alojamentos da cidade e, mau-grado a insistência, tinham-nos empurrado para uma daquelas estâncias all inclusive, onde tudo é horrível, desde a comida aos hóspedes que, para fazer render o que pagaram pela gratuitidade, se embebedavam com rum rasca desde manhã.
Deste modo, pelo meio da tarde, logo que nos enchíamos de flutuar no bidé que fazias as vezes de piscina do local, chamávamos um táxi e zarpávamos até à cidade, a uns vinte ou trinta km dali. E isso, Deus do céu, valia a pena.
Estar em Trinidad é como estar mergulhado num cenário de há duzentos anos atrás e, não fora pelo contágio da música omnipresente, tudo seria sonolento e parado como Viana do Castelo às onze da noite. A cidade é pequena, coloridamente arruinada, com a maioria das ruas em terra batida e as restantes calcetadas de seixos que vão mostrando os dentes à medida que as chuvas os desencastoam do alinhamento. Cães, burros, cabras e gente circula por ali numa ruidosa mistura e aos turistas como nós é, perante uma indiferença simpática, permitido espreitar por entre os gradeamentos à espanhola que resguardam as janelas de sacada das velhas habitações e ter uma mostra de um casal de velhos a ver TV nas suas cadeiras de balouço ou seguir uma dona de casa a pôr os pratos para o jantar em volta de uma mesa de pernas torneadas. Com surpreendente frequência as salas de estar têm um velho piano de cauda no centro do soalho de mosaico axadrezado e pesos de relógios de caixa reluzem por entre vasos de plantas de interior.
Isto passou-se há exactamente dez anos, embora o mês fosse o de Setembro, tempo de furacões e outras tormentas meteorológicas na zona. Mas até ali, e já veraneávamos por Cuba há uma semana, nada mais do que dias azul-ferrete; rumorejar sonolento de palmeirais; noites cálidas de trompetes a elevar até às estrelas os registos agudos e rum velho a emprestar uma tonalidade de caramelo aos cálices que eu e o Zé João (e todos os outros em volta) íamos vertendo nas poltronas de palhinha do Hotel Nacional.
Nessa tarde particular, quando o táxi nos despejou no centro da cidade, resolvemos ir espreitar uma feira ao ar livre, uma coisa meia improvisada e constituída por algumas filas de tabuleiros cobertos de bugigangas com um vendedor por trás. Nada que tentasse por aí além, pois bastava olhar para aquelas congas ou para aquelas flautas para perceber que não durariam um mês nem haveria afinamento possível para aquelas flautas.
Serpenteávamos entre os vendedores quando percebemos que, de súbito, uma certa agitação os tomara: alguns olhavam o céu apreensivos enquanto outros, mais previdentes, transformavam já em trouxas as mantas onde expunham as vendas. Com uma certa prática de errância pelo sul, eu já conhecia o que era uma chuva tropical de as ter experimentado na Índia ou em África. Bagos de água, capazes de arrombar a armação de um guarda-chuva, desabam do céu como xícaras de chá morno e em minutos as ruas não se distinguem do leito de uma ribeira.
Foi o que aconteceu e só tivemos tempo de correr para a soleira de uma casa, cuja entrada era coberta por um pequeno alpendre. E por ali ficámos, colados à porta de madeira, empoleirados no degrau, olhando, sem acreditar, a torrente que crescia aos nossos pés e uma rua que já se poderia descer de barco.
Depois sentimos a porta entreabrir-se e uma voz de mulher convidou-nos a abrigar enquanto a chuva não parasse. Entrámos para uma sala sombria e modesta, onde havia um sofá revestido com plástico transparente e, em lugar de destaque, uma imagem emoldurada do Che Guevara que lembrava um Cristo pela bondade do olhar transparente e pela luz que parecia jorrar do seu vulto.
Eu e o Zé estávamos sozinhos na sala, pois os habitantes da casa tinham recuado para outra divisão qualquer, como se os papéis se tivessem invertido e eles permanecessem, intimidados, em casa alheia! Ouvíamos as vozes abafadas vindas dos fundos e, também um tanto embaraçados pela invasão, mantinhamo-nos próximos de uma janela, controlando a evolução do tempo lá fora.
E não parava de chover!
Cansado da vista, um pouco mais ambientado, circulei lentamente pela sala e detive-me a olhar um armário envidraçado como se estivesse no Hermitage: lá dentro, dispostas em prateleiras, havia algumas miniaturas de animais em vidro e, dominando tudo, uma pequena estátua de um contorno de mulher. Era uma qualquer vénus de artesanato, esculpida em madeira cor de chocolate, sem olhos nem boca e, claro, sem braços como uma vénus que se preza. O corpo, de pescoço longo, cintura delgada, ventre liso e ancas aconchegantes, era coberto por um vestido de cerimónia, comprido, de alças, que lhe realçava as formas e, no seu relevo claro, quase cintilava na luz soturna da sala tristonha.
Dos fundos, chegou-me uma voz que, cautelosa, perguntou se gostava da boneca, se estaria interessado em comprá-la... Hesitei um pouco, mais por remorso de arrancar o distinto objecto ao seu lar do que propriamente por não o desejar. Perguntei, por perguntar, o preço:
“Dez dólares...”, a resposta veio pronta.
Ah, em Cuba, sabem como é, os cubanos estão sempre atentos a alguma forma de poder arredondar o limiar de sobrevivência em que se movem com uma inspiração e uma iniciativa invejável.
Lá fora a chuva parara, a rua escoara a água, o calor voltara, os pássaros retomaram o canto, o movimento recomeçou como se não tivesse caído uma pinga no último século.
À despedida, ainda quiseram saber se eu não estava interessado em mais algum dos objectos da sala, talvez uma das miniaturas de vidro, outra coisa qualquer, fosse qual fosse... Agradecemos muito e saímos, confortados, secos, e silenciosos.

À noite, à luz do hotel, percebi que o vestido da minha boneca era  simplesmente areia que fora engenhosamente disposta e colada sobre o corpo de madeira, de forma a dar a perfeita sensação de coleante e brilho que se desdobra no verdadeiro lamé.  
© Fotografias da Vénus de Areia, Pedro Serrano, 2013.

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