Trinidad, património da humanidade,
dista 600 km de Havana. Resolvemos viajar até lá numa camionete expresso que
partiu manhã cedo da capital, parou uma hora em Cienfuegos, onde comprei um CD
de Los Zafiros, e nos deixou num
resort da praia de Ancó já o sol se punha no mar do Caribe. Pelos vistos, as
agências de viagens não confiavam nos alojamentos da cidade e, mau-grado a
insistência, tinham-nos empurrado para uma daquelas estâncias all inclusive, onde tudo é horrível,
desde a comida aos hóspedes que, para fazer render o que pagaram pela
gratuitidade, se embebedavam com rum rasca desde manhã.
Deste modo, pelo meio da tarde, logo
que nos enchíamos de flutuar no bidé que fazias as vezes de piscina do local, chamávamos
um táxi e zarpávamos até à cidade, a uns vinte ou trinta km dali. E isso, Deus
do céu, valia a pena.
Estar em Trinidad é como estar
mergulhado num cenário de há duzentos anos atrás e, não fora pelo contágio da
música omnipresente, tudo seria sonolento e parado como Viana do Castelo às
onze da noite. A cidade é pequena, coloridamente arruinada, com a maioria das
ruas em terra batida e as restantes calcetadas de seixos que vão mostrando os
dentes à medida que as chuvas os desencastoam do alinhamento. Cães, burros,
cabras e gente circula por ali numa ruidosa mistura e aos turistas como nós é,
perante uma indiferença simpática, permitido espreitar por entre os
gradeamentos à espanhola que resguardam as janelas de sacada das velhas
habitações e ter uma mostra de um casal de velhos a ver TV nas suas cadeiras de
balouço ou seguir uma dona de casa a pôr os pratos para o jantar em volta de
uma mesa de pernas torneadas. Com surpreendente frequência as salas de estar
têm um velho piano de cauda no centro do soalho de mosaico axadrezado e pesos
de relógios de caixa reluzem por entre vasos de plantas de interior.
Isto passou-se há exactamente dez
anos, embora o mês fosse o de Setembro, tempo de furacões e outras tormentas
meteorológicas na zona. Mas até ali, e já veraneávamos por Cuba há uma semana,
nada mais do que dias azul-ferrete; rumorejar sonolento de palmeirais; noites
cálidas de trompetes a elevar até às estrelas os registos agudos e rum velho a
emprestar uma tonalidade de caramelo aos cálices que eu e o Zé João (e todos os
outros em volta) íamos vertendo nas poltronas de palhinha do Hotel Nacional.
Nessa tarde particular, quando o táxi
nos despejou no centro da cidade, resolvemos ir espreitar uma feira ao ar
livre, uma coisa meia improvisada e constituída por algumas filas de tabuleiros
cobertos de bugigangas com um vendedor por trás. Nada que tentasse por aí além,
pois bastava olhar para aquelas congas ou para aquelas flautas para perceber
que não durariam um mês nem haveria afinamento possível para aquelas flautas.
Serpenteávamos entre os vendedores
quando percebemos que, de súbito, uma certa agitação os tomara: alguns olhavam
o céu apreensivos enquanto outros, mais previdentes, transformavam já em
trouxas as mantas onde expunham as vendas. Com uma certa prática de errância
pelo sul, eu já conhecia o que era uma chuva tropical de as ter experimentado
na Índia ou em África. Bagos de água, capazes de arrombar a armação de um
guarda-chuva, desabam do céu como xícaras de chá morno e em minutos as ruas não
se distinguem do leito de uma ribeira.
Foi o que aconteceu e só tivemos tempo
de correr para a soleira de uma casa, cuja entrada era coberta por um pequeno
alpendre. E por ali ficámos, colados à porta de madeira, empoleirados no
degrau, olhando, sem acreditar, a torrente que crescia aos nossos pés e uma rua
que já se poderia descer de barco.
Depois sentimos a porta entreabrir-se
e uma voz de mulher convidou-nos a abrigar enquanto a chuva não parasse.
Entrámos para uma sala sombria e modesta, onde havia um sofá revestido com
plástico transparente e, em lugar de destaque, uma imagem emoldurada do Che
Guevara que lembrava um Cristo pela bondade do olhar transparente e pela luz
que parecia jorrar do seu vulto.
Eu e o Zé estávamos sozinhos na sala,
pois os habitantes da casa tinham recuado para outra divisão qualquer, como se
os papéis se tivessem invertido e eles permanecessem, intimidados, em casa
alheia! Ouvíamos as vozes abafadas vindas dos fundos e, também um tanto
embaraçados pela invasão, mantinhamo-nos próximos de uma janela, controlando a
evolução do tempo lá fora.
E não parava de chover!
Cansado da vista, um pouco mais
ambientado, circulei lentamente pela sala e detive-me a olhar um armário
envidraçado como se estivesse no Hermitage: lá dentro, dispostas em
prateleiras, havia algumas miniaturas de animais em vidro e, dominando tudo,
uma pequena estátua de um contorno de mulher. Era uma qualquer vénus de
artesanato, esculpida em madeira cor de chocolate, sem olhos nem boca e, claro,
sem braços como uma vénus que se preza. O corpo, de pescoço longo, cintura delgada, ventre
liso e ancas aconchegantes, era coberto por um vestido de cerimónia, comprido,
de alças, que lhe realçava as formas e, no seu relevo claro, quase cintilava na
luz soturna da sala tristonha.
Dos fundos, chegou-me uma voz que,
cautelosa, perguntou se gostava da boneca, se estaria interessado em
comprá-la... Hesitei um pouco, mais por remorso de arrancar o distinto objecto ao seu lar do que propriamente por não o desejar. Perguntei, por perguntar, o
preço:
“Dez dólares...”, a resposta veio
pronta.
Ah, em Cuba, sabem como é, os cubanos
estão sempre atentos a alguma forma de poder arredondar o limiar de
sobrevivência em que se movem com uma inspiração e uma iniciativa invejável.
Lá fora a chuva parara, a rua escoara
a água, o calor voltara, os pássaros retomaram o canto, o movimento recomeçou
como se não tivesse caído uma pinga no último século.
À despedida, ainda quiseram saber se
eu não estava interessado em mais algum dos objectos da sala, talvez uma das
miniaturas de vidro, outra coisa qualquer, fosse qual fosse... Agradecemos
muito e saímos, confortados, secos, e silenciosos.
À noite, à luz do hotel, percebi que o
vestido da minha boneca era simplesmente
areia que fora engenhosamente disposta e colada sobre o corpo de madeira, de
forma a dar a perfeita sensação de coleante e brilho que se desdobra no
verdadeiro lamé.
© Fotografias da Vénus de Areia, Pedro Serrano, 2013.
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