31 janeiro 2020

ISOLAMENTO À LA CARTE

Se assim o entenderem, se chegarem com receio de poder transmitir o coronavírus à família e aos vizinhos, os 17 portugueses retidos na cidade de Wuhan poderão optar por ficar em isolamento, pois, muito gentilmente, o Ministério da Saúde fornecerá instalações "com conforto e tranquilidade", afirmou a Directora-Geral da Saúde aos meios de comunicação social. Só ficou mesmo por informar que o wi-fi é gratuito durante a estadia e que a palavra-passe é COrona_2020, seguida do número do quarto.
Se, se..., pois por vontade dos responsáveis da Saúde os repatriados de Wuhan serão preferencialmente despachados para casa, onde disfrutarão de um apetecível isolamento no seio dos entes queridos e poderão, todas as manhãs, descer ao café no rés-do-chão do prédio e contar das suas desventuras na China, sendo-lhes ainda permitido, em total liberdade, levar ao infantário os filhos que não viam há tanto tempo, e acompanhar a velha mãe ao centro de dia ou à igreja.
"Ó, Jorge, já que vai sair, podias passar no Continente e trazer meia-dúzia de ovos e um pacote de mistura orientalpara saltear no wok - está em desconto no cartão."
"Mistura oriental?!", grita o cônjuge do poço do elevador, "tu nem me fales em comida chinesa nos próximos 14 dias, enquanto a minha quarentena voluntária durar."
E na circunstância ("ínfima", como garantem os responsáveis pronunciando-se sobre pessoas que estão a 12.000 km) de poder estar infectado, o Jorge poderá deambular por aí a contaminar dezenas de pessoas que, por sua vez, contactarão outras tantas dezenas ou centenas e por aí fora. 
No caso de as coisas não se passarem como sonham os responsáveis portugueses e um dos regressados - que até sentiu sintomas no dia do embarque mas resolveu camuflá-los no inquérito que lhe fizeram à chegada, pois a perspectiva de poder ter de voltar para trás aterrava-o - desenvolver a doença após a chegada, equacione-se o que será tentar encontrar no futuro toda essa gente sobre a qual o Jorge tossiu ou espirrou. Será um pesadelo, será deixar escapar a possibilidade de, à partida, conter a doença: é leviandade o que Portugal se prepara para fazer em nome da brandura dos costumes, do pensamento burocraticamente correcto e de hipotéticas normas que não permitem o 'internamento compulsivo' no território nacional, termo aliás exagerado para caracterizar o que se deveria fazer. Estamos a falar do interesse colectivo, do interesse de todos (10 milhões) versus o interesse individual.  É simplesmente uma questão de prudência e de defesa da saúde pública tentar usar todos os meios ao nosso alcance para tentar reduzir a zero as hipóteses de algo nos escapar e poder correr mal, enquanto isso se pode fazer. Remediar será mais árduo, será um pesadelo para a tranquilidade da população e para o trabalho já esforçado dos profissionais de saúde.
E o que fazem outros países que, como nós, estão a trazer nacionais da China infectada? Sujeitam-nos a isolamento mandatório (quarentena) durante o período estimado como necessário, até que o risco de transmissão possa ser posto de lado, claro. Mas nós não somos como os outros, nós gostamos de resolver os problemas com doçura e afirmando que cumprimos protocolos que vão mudando todas as semanas e, nessa linha de pensamento coronário, mandamos os nossos para casa. Ide em paz! Mas resta ainda resolver aqueles chatos que tiveram o bom-senso de explicitar o desejo de preferir ser isolados à chegada (bem saberão a dimensão do que viram por lá) e são encarados com mal disfarçado tédio pelo Ministério da Saúde: são os tais chegados "com esse receio", de que fala a Directora-Geral, e a quem - se insistirem - será providenciado isolamento à la carte e, tudo leva a crer, isentados de taxa turística durante a estadia.