29 maio 2015
27 maio 2015
O QUE ESPERAR DE EVA?
Usando
os vários afluentes da autoestrada, chego, sem esforço, de minha casa a Óbidos
em vinte minutos. Óbidos é uma vila com pouco mais de 2.000 habitantes e tem
três livrarias. Mantendo a lógica da proporção livraria por habitante, Lisboa
deveria contar com 720 livrarias e Viseu com 150! Esta espantosa situação da
vila fortificada deve-se ao facto de uma livraria de Lisboa, a Ler Devagar, se ter arrojado – com o
apoio municipal, claro – a instituir Óbidos como uma espécie de capital da
cultura livreira. Deus os proteja a todos, apetece dizer, e os mantenha à
distância do sucedâneo do Ministério da Cultura, entretido a ver se pode ou não
vender Mirós à peça ou distraído a transformar o Museu dos Coches num deserto
com carruagens mas sem outro orçamento senão o proporcionado pelos camelos do
costume.
Voltando
às livrarias de Óbidos: uma delas, logo à entrada da vila, está instalada numa antiga
adega e oferece uma combinação de livros novos e usados; pode-se também trincar
por ali qualquer coisa, como sandes de presunto ou bruschettas e o wifi é
grátis. A meio da rua principal da vila está a segunda, esta instalada numa
velha mercearia, caixotes de madeira de transporte de víveres servem de
estantes e esta livraria que vende livros usados, tem, aliás, o ar sombrio e
poeirento de alfarrábio de uma qualquer Pérola
de Óbidos: Mercearia Fina. Finalmente, a terceira loja, está lá ao fundo da
rua, ao cimo das escadaria, instalada numa igreja, e as estantes sobem quase
até aos céus, como o nosso espanto. Este derradeiro templo da leitura vende,
praticamente em exclusivo, livros novos e ali pode encontrar o que se encontra
numa qualquer FNAC ou Bertrand de Lisboa, talvez até com maior riqueza na
oferta.
Pois
no outro dia comprei numa delas uma edição em segunda-mão dos Contos de Eça de Queiroz, uma obra que
me apeteceu rever após ter lido o Diário
Íntimo de Carlos da Maia, de A. Campos Matos (edições Colibri, 2014), uma
interessante efabulação sobre o que poderia suceder se Carlos da Maia – um dos
personagens centrais do Os Maias –
durasse até aos anos 30 do século XX e se tivesse dado ao esforço de escrever
um diário desde a última vez que o vimos com João da Ega, correndo à luz da lua
para apanhar um eléctrico.
O
livro que trouxe comigo pertencera a uma senhora e, na sua assinatura, os t eram como as cruzes em que o ramo
deitado coroa o ramo vertical sem se cruzar com este; à secante prefere-se a
tangente. O volume inicia-se pelo conto Singularidades
de Uma Rapariga Loura e foi com grande prazer que deambulei pelos
pormenores da história e pelo génio de Eça, sempre tão irónico e cáustico no desenho
dos personagens que uma pessoa se mantém, em permanência, a sorrir para dentro
de deleite.
A
páginas tantas, estava entretido no terceiro conto, encontrei uma flor entalada
entre duas folhas, o que não é raro suceder em livros. Pobre florzinha, tinha o
castanho da secura estival e o emurchecimento merencório das feminilidades
esquecidas. Continuei a leitura e, eis que, não muito depois, num conto que
referia aves, encontrei uma pequena pena, macia, de delicadas tonalidades, com
aqueles detalhes de beleza que só se nos revelam quando os acontecimentos se
isolam perante os nossos olhos distraídos. Aí, como que fui iluminado por um
lampejo, uma queda na simetria, e regressei à página onde encontrara a flor: na
página em questão Eça falava de flores, e eu estava perante um padrão de
associação temática entre o autor e o seu leitor. Revigorado, como que
iluminado por dentro, abdicando da serenidade em esperar o que um virar de
páginas, submetido à estrita lógica da progressão da leitura, me poderia revelar,
pus-me, como o leitor impaciente de um qualquer policial, a folhear o livro em
busca de novas surpresas que confirmassem e engrossassem os indícios
anteriores.
E eis que no conto Adão
e Eva no Paraíso, nas páginas que o autor dedica à descrição anatómica
pormenorizada da fase impúdica e desnuda dos nossos pais primevos, dou de caras
com um encaracolado e destingido pêlo púbico. Mas após o prazer da nova revelação,
da confirmação da minha teoria de que a leitora ilustrava o autor, ficou-me,
restou-me, uma dúvida, para sempre por esclarecer: será que aquele solitário e descolorido
caracol se anemizara, entre páginas, sob a inclemência do tempo que passa e
tudo desvanece ou, pelo contrário, ficava a dever a sua morfologia pálida às singularidades de uma
rapariga loura?
© Digitalizações de Pedro Serrano.
Classificação:
LIVRO,
RUMINAÇÕES
23 maio 2015
SE A PALMA NÃO É PEQUENA (a praga das palmeiras)
Já notaram o estado das palmeiras do
nosso país? Quase concluo ser impossível não terem reparado, de tal modo o
espectáculo é generalizado, despenteado e pungente. Por todo o lado, de Faro a
Viana do Castelo, o olhar tropeça-nos em tocos sem ramos, em restos de árvore
com as – uma vez majestosas – copas descaídas num desalento cor de mato seco
onde outrora morava um verde brilhante e orgulhoso. Pobres árvores.
Tudo isto começou de sul para norte,
graças a um escaravelho importado de África, via Madeira ao que ouço dizer. O
escaravelho, um bicho voador de tamanho impressionante (será 5 ou 6 vezes maior
do que o escaravelho da batata) e nitidamente um ser de outras paragens, põe os
ovos numa toca que escava no topo da palmeira – a sua parte mais tenra e viva –
e daí nascem umas larvas, enormes, com um ar tenebrosamente alienígena que se
vão alimentando do miolo da árvore, transformando a polpa viva numa nojenta pasta
alaranjada. Finalmente, as larvas preparam o seu sono de beleza envolvendo-se
num casulo finamente tecido com fibra de palmeira, até estarem prontas para
eclodir e se metamorfosearem no escaravelho de que falámos. E o ciclo repete-se,
ao ritmo do declínio das palmeiras.
Em Espanha, o país organizou-se para
enfrentar o problema e proteger as palmeiras, pois a praga é de potência e
progressão assustadora: há organizações públicas que lidam com o assunto a
nível regional e local, produz-se investigação operacional sobre o melhor modo
de combater a praga. O que fazer para prevenir a contaminação? Como tratar uma
árvore já infectada? Como lutar contra escaravelho e larvas? Quais são as
soluções químicas e as abordagens biológicas possíveis?
Tenho em minha casa uma palmeira, uma
única, comprada há cerca de vinte e cinco anos num vasinho, quando era uma planta
pequenina com dois palmos de altura. E sob o meu olhar, o olhar do meu filho e
de quem me visitava, a palmeira foi crescendo, tornou-se referência quando
pretendo indicar onde moro: “é uma casa com uma palmeira grande, vai vê-la logo
quando entrar na rua...” Sim, avista-se bem nos seus nove ou dez metros de
altura, na sua pose de quem ninguém a arreda dali, uma imortalidade vegetal...
Mas um dia, ao fazer de carro o
trajecto de Lisboa para casa, dei-me conta que ao longo do caminho era uma
mortandade de palmeiras doentes, que na própria localidade onde moro, quase à
esquina da minha rua, havia árvores atacadas, desfiguradas. Cá de baixo, num
pescoço torcido e ansioso, estudei com atenção a minha palmeira, em busca de
escaravelhos alaranjados, de palmas secas e descaídas... Não me parecia, assim
à vista desarmada, que estivesse atacada; mas que percebia eu da saúde das
palmeiras?
Palmeiras no Casino do Estoril (repare nos tubos ao longo do tronco). |
Primeiro, dei por mim a falar sobre
palmeiras com vizinhos e jardineiros das redondezas e o desnorteio era geral:
ninguém sabia onde ir ou o que fazer; os jardineiros eram de opinião nada haver
a fazer uma vez a palmeira atingida – só restava deixar o bicho roer todo o
miolo do tronco e fazer um vaso artístico da parte sobrante... Procurei, depois,
na internet e depressa cheguei à conclusão que não iria longe com as entidades
oficiais: é certo que poderia entrar em contacto teórico com uma direcção
regional qualquer da agricultura, uma daquelas repartições do Estado onde o
telefone toca e ninguém nunca atende... Informações ao público, sobre aquele
assunto, zero vírgula zero, como é costume. Quem raio se interessa pela merda
das palmeiras? Restou-me um site de
uma firma (de Cascais) que lidava com o assunto e que abordava e informava com
bastante detalhe quem o resolvesse ler. A firma demonstrava também a sua
experiência na matéria, ilustrando a obra feita com fotos de intervenções em vários
locais, um deles no belo palmeiral que se planta fronteiro ao Casino do
Estoril. Telefonei, a conversa foi afável, clara e esclarecedora: fiquei a
perceber os passos a dar, que não iria lá com amadorismos, e que a coisa não sairia
barata. Se a palmeira merecesse uma intervenção – primeiro era mandatório fazer
um diagnóstico do seu estado de saúde – seria necessário tratá-la durante um
ano, sem garantia total dos resultados, como acontece em qualquer doença humana
grave. E, claro, havia as deslocações, que de Cascais até minha casa, na ida e
na volta, são quase 200 km.
Suspirei fundo e decidi investir na
palmeira como se investe num familiar que está doente e a gente quer ver melhorar...
E os dois funcionários principais da firma lá apareceram no dia aprazado, uma
manhã soalheira de inverno. Mal relanceou um olhar à árvore – que já pré-observara
em fotografia que lhes enviara por mail – o homem confirmou a doença, fez-me
notar os pormenores que, vistos cá de baixo, indiciavam o mal. O passo seguinte
seria subir lá cima e avaliar a sua extensão. No começo da consulta as notícias
foram más, a árvore estava muito infectada, comentava ele do cimo da escada,
atirando, como demonstração, diversos casulos e pedaços alaranjados de uma papa
nojenta, que não era mais do que a polpa da árvore depois de sugada e mastigada
pelas larvas. Enraivecido, enquanto ele ia cortando ramos e pedaços de tronco
com uma motosserra, dez metros mais abaixo eu esventrava entre as solas dos
sapatos os casulos, observando os informes vermes acinzentados de focinho
aguçado e negro, antes de os esmagar contra o asfalto da rua.
Casulo da larva. |
Quase dois palmos de tronco foram
limpos com a motosserra e o senhor Morgado anunciou que, dali para baixo, a
árvore estava limpa e era ainda possível instituir um tratamento, pois o ponto
vital ainda não fora atingido. O que queria eu fazer?
Umas duas horas mais tarde, já a hora
do almoço roncava nos estômagos, o senhor Morgado deu por concluído o trabalho:
fora feita uma limpeza cirúrgica da árvore, aplicado um duche químico no topo
da palmeira e, nas escamas do tronco da árvore, tinham sido introduzidos
profundamente três catéteres com uma tampinha azul à superfície, tubos por onde
seria aplicada a quimioterapia, uma combinação de várias drogas cuja mistura
iria variando todos os meses, de modo a potenciar o tratamento e evitar a
resistência do bicho ao mesmo. Antes de regressar a Cascais, o senhor Morgado
deixou-me uma atraente mala térmica cheia com os frascos dos produtos químicos
a usar; contendo máscaras, luvas, seringas, todo o arsenal necessário a tratar
a palmeira ao longo de um período de doze meses. Os resultados ir-se-iam vendo,
o essencial era seguir as instruções e não deixar passar as datas da medicação.
Ele estaria à disposição, por mail e telefone, para qualquer informação, mas
achou-me suficientemente capaz para continuar a ministrar os cuidados à doente.
Poderia regressar em qualquer altura, se preciso fosse, mas 200 km, vezes x era factor a ter em conta, achava ele,
achava eu.
Isto foi em Janeiro e, religiosamente,
todos os meses, no dia apropriado, eu e o meu amigo Ricardo vamos a casa do
Luís António pedir a escada emprestada, uma grande escada, daquelas extensíveis,
quase à bombeiro. Preparamos as mistelas em grandes baldes de plástico e,
enviando-me constantes “segura bem na escada”, o Ricardo sobe os inúmeros
degraus e, em prestações vertiginosas, vai despejando os 12 litros do duche
químico no topo da palmeira. De vez em quando encontra um escaravelho moribundo,
deitado de patas para o ar no topo da palmeira, que me atira, anunciando:
“Está aqui mais um filho da puta...”
Rhynchophorus ferrugineus. |
Perguntarão os leitores: “Mas achas
que todo este esforço, dinheiro, vai valer a pena? Um ano de tratamento, sem
ter a certeza?!”
Bem, meus amigos, as pragas do Egipto também não duraram para sempre...
Bem, meus amigos, as pragas do Egipto também não duraram para sempre...
Parte nova a crescer no topo da palmeira. |
© Fotografias, de cima para baixo: (1) Pedro Serrano, Praia da Areia Branca, Abril 2015; (2) Pedro Serrano, Estoril, Março 2015; (3) Pedro Serrano, Fevereiro, 2015; (4) Ricardo Ventura, Março 2015; (5) Ricardo Ventura, Maio 2015.
Classificação:
SOCIEDADE
19 maio 2015
NÃO VENHAS TARDE: 16. DOMINGO NO PARQUE
26 de Setembro, Domingo
Levantei-me
tarde mas, mesmo assim, antes dos outros, que ainda devem estar nos respectivos
dormitórios. Não gosto de me demorar no meu, com aqueles zombies que por lá
param e que nunca parecem sair dos catres; um ou outro tem mesmo pinta de
agarrado, observei um a raspar pensativamente, com uma unha comprida e
castanha, a cal da parede ao lado da cabeceira do beliche. Dizem que há quem
injecte aquela porra nas veias quando não há produto do autêntico à mão,
ouve-se até falar em quem misture maionese nos caldos intravenosos e, a ser
verdade, mais uma vantagem em se estar aqui tão vizinho do Lâle Pudding Shop.
Vim para a
sala comum esperar por eles e, ao passar pela recepção, fui perguntar que dia
da semana é hoje: é Domingo!
A sala de
estar tem um sofá e vários maples que já viram melhores dias. Há, também, um
grande móvel-rádio, daqueles muito envernizados e assentes em pernas, como se
fossem uma cómoda ou um armário de bebidas. Este está sempre sintonizado numa
estação que só passa música rock e pop. Sento-me a escrever no diário, já estou
uns dias atrasado em relação ao dia de hoje, pois a fulgurância dos
acontecimentos e das aflições dos últimos dois dias desbarataram-me a
sequência. No rádio explodem de súbito as primeiras notas da guitarra, aguda e
nostálgica, do “Europa”[1],
o último sucesso do recém-convertido ao budismo Devadip Carlos Santana, peça
instrumental que é a coqueluche deste Verão. Em Portugal não se ouvia outra
coisa antes de virmos e o inesperado de sentir o som invadir os meus ouvidos,
como uma maré-cheia, neste canto do mundo congelou-me a esferográfica sobre as
linhas do caderno.
A música,
muito dançável e com o seu quê de bolero, pontapeou-me a um fim de manhã na
Rotunda da Boavista, no Porto, em que encontrei o Miguel Lamares armado de um
sorriso superior na cara barbada, nos olhos míopes ampliados por lentes
grossas. Estamos em 1969 e o Miguel é meu colega no liceu. É um gajo enorme e
há algo nele que lembra um urso e lhe dá um toque assustador, embora seja um
tipo bonacheirão. Outra das coisas boas do Miguel, para além do disco que tem
debaixo do braço e se faz rogado em mostrar, é a irmã, a encantadora Peki, uma
miúda mais nova e de quem me tornarei amigo no início dos anos 70. Mas nessa
manhã, numa esquina da Rotunda, o Miguel pendurava no sovaco um rectângulo
esbranquiçado.
–
Se soubesses
o que tenho aqui...
–
O que é
Miguel? – digo, percebendo pelo formato que é um disco – Mostra...
–
Aposto que
nunca ouviste nada como isto – continua ele.
–
Não sei, sei
lá; se não mostras o que é...
–
Já ouviste
uma música chamada “Soul Sacrifice”...?
Confessei
que não.
–
E uma
chamada “Evil Ways”?
–
Também
não...
–
Estás
ultrapassado, merdoso – concluiu. – Isto é o que vai dar... Isto é um som totalmente novo...
Depois permitiu
que olhasse a capa do álbum, na qual um focinho arreganhado de leão se
contornava a carvão numa caricatura em que surgiam cabeças rapadas de mulher,
camufladas nos detalhes do desenho[2].
Eu já sabia que o gajo não me ia emprestar o disco, mas não desisti de tentar
perceber o que era aquilo: que raio de banda se ia chamar Santana? Até parecia coisa portuguesa, de rancho folclórico!
Santana!?
–
Se eu te
trouxer uma cassete, gravas-me isso?
- Talvez...,
respondeu.
Claro que
gravou, que o Miguel, apesar do gigantismo e dos modos ásperos, era um coração
de leão, grande e bondoso.
E foi assim
que, aos dezasseis anos, conheci aquela música que contaminava tudo quanto
conhecíamos de uma nova sonoridade que, vista de agora, não é mais do que a
música cubana invadindo o rock com a sua batida, as suas congas e o agudíssimo
solar da guitarra do Carlos Santana, um som expelido alto como o soprar dos
trompetes das bandas de música do Caribe e do México.
Entretanto
em Istambul é Domingo e as ruas estão inundadas de gente no caminho até ao lado
de lá do Bósforo, onde vamos trocar traveller’s
checks por liras. Na ponte que liga a Europa à Ásia e se deixa atravessar
em vinte minutos, se olharmos à esquerda vemos o Mar Negro e à direita o
Marmára, um mar interior que é uma espécie de filial esquecida do Mar Egeu.
À sombra da
ponte, à beira da água, estendem-se pequenos cafés onde, no regresso do banco,
nos sentamos a beber uma Coca. O modo de vestir de quem passa faz lembrar o
jeito como, em Portugal, se vestem as pessoas da aldeia quando vão à cidade,
quase todas as mulheres amarraram lenço na cabeça e os homens que as precedem
seguem aperreados em fatos sem gravata e sapatos apertados. Os que parecem ter
maior poder económico vestem-se como os ciganos ricos: de preto, a luzir de
ouro nos pulsos, nos pescoços e nos sorrisos, chapéus de aba curta e barbas
negras. Gente vestida à oriental, com longas vestes, barretinhos ou véus, quase
nenhuma. Por todo o lado se veem soldados, fardados, a passear de mãos dadas!
Já tinha reparado que, por aqui, se encontram homens a caminhar alegremente de
mãos enlaçadas, mas que a defesa nacional o faça com esta descontração é coisa
que me espanta.
Multidões
apanham barcos que acostam e partem continuamente e, à janela de pequenas camionetas,
os condutores gritam os destinos para onde se dirigem. A engrossar esta
gritaria, vendedores de água como pulgas, com bilhas à cabeça. Volteámos por
entre as bancadas onde se vende peixe frito, boiões com estranhos frutos e
conservas. Atrevemo-nos a comprar uma sanduiche com um colorido ímpar e um ar
tentador: as duas metades da baguete estão recheadas de rodelas de tomate e
verdíssimos pimentos, estreitos e compridos. Dou uma primeira dentada e a minha
boca explode em chamas que só acalmam um pouco uns bons copos de água mais
tarde e sob o olhar divertido de quem passa. Verde traiçoeiro! Ao cruzar
escadas apinhadas de gente perfumes intensos entontecem-nos as narinas, como se
todo o escaparate de uma barbearia de bairro tivesse sido estilhaçado de repente.
Voltámos a
Sultanhamet, a zona da cidade onde fica o hotel. No parque do lado de lá da
avenida deparámos com as cores atrevidas de dois camiões enormes que dizem: Trans-Asia. Os donos são espanhóis e vão
para o Nepal. Andam à procura de dois motoristas. Começaram viagem em Barcelona
onde tencionam regressar em Janeiro. O Rui ficou tentado com a ideia, a mim,
embora me atraia também a facilidade de ter todo o trajecto garantido sem
esforço de planificação, não me apetece muito um compromisso tão longo e, além
disso, eles só tem lugar para duas pessoas, o que significaria termos de
abandonar o Des. Bem, poderemos voltar a passar por aqui e dar uma espreita: há
sempre carrinhas pão-de-forma, camiões e camionetes ocidentais acampadas por
aqui, uns ostentando riscas psicadélicas no estilo do Magical Mistery Tour[3]
e anunciando Magic Bus, outros
pintados de amarelo total ou verde-pistáquio; vimos até um autocarro inglês de
dois andares, intensamente vermelho, pronto para rumar à Índia mas com a pose
de quem acabou de sair de Piccadilly.
Amanhã, se
os nossos vistos ficarem prontos, poderemos arrancar para a etapa seguinte:
Teerão, capital do Irão, que ainda é reinado de um Xá da Pérsia. Já demos um
sinal numa agência de viagem e o Des acha que fizemos mal e podemos ter sido
vigarizados. Não sei o que o faz pensar isso, mas, ultimamente, ele parece-me
assustado com tudo, o que não deixa de nos surpreender depois daquela noite de
projectos tão épicos em Kavala.
Classificação:
NÃO VENHAS TARDE
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