30 abril 2020

18 abril 2020

ESPERA



© Fotografia de pedro serrano, Tessalónica, Grécia, 2018.

16 abril 2020

COVID19: OS DIAS CONTADOS

"Sabes que fiquei em primeiro lugar no concurso?"
"Eh, Francisco, que fixe! Quantos concorrentes eram?"
"Dois, eu e outro; o outro desistiu na prova prática..."
"Olha, fiquei classificada em terceiro lugar no concurso?"
"Ai sim? E quantos eram os concorrentes?"
"Duzentos e cinquenta."
Estes dois diálogos expressam duas verdades: 
A primeira grita que os números, em estado solto, a granel (também chamados  brutos ou absolutos), não significam grande coisa, como se vê no caso dos concorrentes acima. Há um tal Francisco, que parecia ser uma brilhanteza pelo lugar que obtivera numa prova de concurso, mas afinal isso só acontecera por haver apenas um outro na disputa; em seguida, no segundo diálogo, há uma rapariga que até só fica em terceiro lugar na listagem, mas os candidatos a concurso são 250, o que lhe realça, de imediato, o valor no resultado obtido. 
A segunda verdade, reza que, para podermos tirar ilações consistentes e comparáveis, é sempre obrigatório fazer contrastar o tal número a granel com o universo que lhe diz respeito. Por exemplo: número de casos confirmados de Covid19 e tamanho da população do país onde isso acontece. Outro exemplo: número de mortes por Covid19 por milhão de habitantes, e não apenas que "são 600 e aumentaram 35 desde ontem" — isso diz-nos (quase) nada. Ainda um outro exemplo: número de casos internados nos cuidados intensivos e sua relação com o motivo pelo qual esse número tem diminuído ou aumentado. É muito diferente o número de internados estar a diminuir porque os casos de Covid19 estão a diminuir no país, desse número de internados estar a diminuir porque têm morrido a grande parte dos que vão parar a cuidados intensivos e, deste modo, há sempre camas para todos e o sistema não rebentou. Pois não, mas, e como quase não há recuperados, esta folga deu-se à custa do cemitério e não da brilhante política de saúde do Sr. Ministro da Pasta Respectiva.
Estes longos preliminares tiveram como finalidade enquadrar uma situação que, de quando em vez, gera desconforto nos ouvidos mais atentos.
Portugal tem, consistentemente, ocupado o 15.º ou o 16.º lugar, a nível mundial, nos países com Covid19. Ora, tendo em conta, que temos 10 milhões de habitantes, este lugar no pódio de um mundo que tem, grosso modo, 195 países, é posição de arrepiar e, pessoalmente, preferiria que estivessemos na cauda do que nos píncaros.
É por isso que insistir apenas em mostrar números brutos (soltos de um valor que os relacione com o tamanho do local em causa) é curto, pode ser manhoso, e é  sempre enganador: A Espanha, aqui ao lado, tem 47 milhões de habitantes, a França 67 milhões, a Itália 60, a Alemanha 83 milhões, o Reino Unido 67; a Rússia 145 milhões, o Brasil 210, os EUA 329 milhões, o Irão 82 e a China 1.300 milhões. Estes países, de muito maior população e onde, portanto, um número maior de infectados representa muito menos, estão connosco no tal pódio, aliás acima de nós nesse estreito pódio, mas o estar acima pouco conta ao considerar o número de habitantes que têm quando comparados com a nossa migalha ibérica! Dos que estão ainda acima de nós, mas muito próximos em número de casos, temos a Bélgica (11,5 milhões de habitantes), a Holanda (17 milhões) e a Suíça (9 milhões) e, já em melhor situação do que nós e com menos casos, a Áustria (também com 9 milhões) e a Irlanda (com 4 milhões). Se tentarmos resumir isto usando o número de casos por milhão de habitantes, método que já nos permite compararmo-nos com quem nos apetecer, uma vez que o tamanho da população respectiva é tido em conta, verificamos que Portugal (1848 casos/por milhão de habitantes) está em 7.º ou 8.º lugar a nível mundial, mais ou menos como os EUA (1948 casos/milhão), e só somos ultrapassados por Espanha, França, Itália — os nossos vizinhos do lado — encontrando-nos em pior situação do que a Inglaterra, a Alemanha ou a Holanda, já para não falar da China ou do Irão, onde parece ter chegado a bonança. Deste modo é, na minha opinião, inquietante ver o cunho de simpática excepcionalidade com que nos consideramos em termos de atingimento pelo Covid, parecendo que tudo vai muito bem por cá, que a coisa quase parou na fronteira, pois o nosso jeito de cintura enganou o vírus! 
Se, por outro lado (usando a técnica de meter sob os números, que nos mostram diariamente na TV, o universo a que respeitam) olharmos o retrato segundo o número de mortos por Covid, o que se vê? Que Portugal (62 mortos por milhão de habitantes) continua no pódio, desta vez num 8.º ou 9.º lugar a nível mundial. É sabido que à nossa frente estão países como a Itália (358 mortos/milhão), a Espanha (409) e a França (263/milhão), mas esses três começaram a sentir os efeitos da pandemia antes de nós, já tiveram mais tempo para que os desfechos se manifestassem e possam ser contabilizados. Há depois, em situação mais grave, o Reino Unido (202 mortos/milhão) e a Holanda (193), mas, em relação a esses países, todos conhecemos a política desastrosa de lidar com o assunto que os respectivos líderes políticos assumiram e a que, a breve trecho, o Brasil se reunirá.
O que mais chama a atenção, no número de casos e mortos por milhão de habitantes, é a onda numérica, de uma certa contiguidade com os países que se sucedem quando olhamos para leste: Espanha, França, Itália. Seria, talvez, melhor arregaçarmos as mangas da precaução e da intervenção, em vez de estarmos à espera de um milagre tipo mar Vermelho ou de nos supormos país  neutro, como durante a II Guerra Mundial.  
Quanto à letalidade (proporção de doentes com Covid que morrem da doença), ela anda em Portugal pelos 3,5 %, valor semelhante ao estimado em Março pela Organização Mundial de Saúde (3,4 %), porém um número bastante acima das iniciativas iniciais da organização sobre a letalidade do Covid e que se ficava nos 2,0 %. Relembre-se que a letalidade média da gripe banal ronda os 0,1 %, ou seja: o coronavírus é cerca de 35 vezes mais mortífero.  
A perspectiva que expus até agora, baseada somente em número de casos confirmados e mortes reportadas oficialmente, é simples de obter, calcular e olhar, mas toda esta análise ganharia em ser mais sofisticada como, por exemplo, acrescentando-lhe o acesso a dados como mortes de diagnóstico pouco claro ou indeterminado (dá-nos uma ideia sobre a parte submersa do iceberg);  as estimativas do excesso de mortalidade sazonal, que poderá estar a acontecer e se evidencia objectivamente quando comparamos esta primavera de 2020 com primaveras homólogas (ou seja: anteriores); podendo tudo isto ser ainda temperado por informação específica vinda do funcionamento e movimento dos serviços de saúde (públicos e privados), tal como o número da casos de Covid19 entrados e saídos dos cuidados intensivos e qual a proporção dos doentes que morrem da doença durante o internamento, o que permitiria uma ideia sobre a qualidade dos cuidados prestados e compará-la com o que sucede noutros países. Isso ajudaria. Ajudaria também, em termos de retrato desapaixonado e honesto da situação, se os números de fontes distintas fossem comparados e uns servissem para rectificar ou validar os outros, pois já se viu que a contagem rigorosa não tem sido apanágio de Lisboa.
Finalmente, ainda no terreno contagem e relacionamento, apreciaria ver os números avulsos de casos e mortos mostrados na TV (que, pelos vistos, é a ração que, coitados, lhes é servida pelo Ministério da Saúde) apresentados por região e distrito do país, usando a tal técnica tão simples de os relacionar com o número de pessoas que lá moram e, para começar, respectivas idades, recorrendo a técnicas básicas de ajustamento e padronização.   
O que exaspera, no modo como todo este problema tem sido gerido e comunicado, mais do que a possível gravidade da situação do país (somos como os outros, havemos de conseguir fazer parecido; lamberemos as feridas como os outros), o exasperante é o optimismo bacoco das meias-verdades; de nos servirem no LCD um aumento de 30 casos nos curados como a sétima maravilha do mundo, quando a proporção de curados (total: 493), em relação ao total de casos (18.841) é de apenas 2,5 %, e sendo o número total destes curados bastante inferior ao número de mortos (total: 629). Sendo essa a realidade, não lhe chamem "a boa notícia é que o número de curados", pois não é boa nem má: mostra apenas que (nos que se safam) a recuperação e a cura são lentas.
De tudo o que ficou dito, há um aspecto que irrita e outro que preocupa. O que irrita, para além da nossa milagrosa diferença em relação a outros, são as fantasias em torno do pico e da data do pico, do planalto e do achatamento da curva. Que é isso do planalto? É um pico que não cresce e vai por ali fora em linha recta? E de que modo todo este crescimento no número de infectados, controlado ao nível decimal, é-o, apenas, por estar dependente do número de testes feitos diariamente, dependente também da fatia a quem são feitos esse testes, e do tempo que demoram os resultados a ser vertido nas estatísticas?
Portugal: Casos diários de Covid19 (confirmados), Fevereiro-Abril.
Fonte: John Hopkins University, 2020. Nota: a coluna mais alta assinala o
dia 10 de Abril, e 4 colunas à direita desta encontra-se o famoso pico,
previsto ministerialmente para o dia 14 de Abril de 2020 (é um pico assim para 

baixote, mas não se pode ter tudo!).
Dito o que me enchia os olhos de poeira, o que me preocupa é que todo este realismo mágico transborde e ensope de dourado as calças e as saias dos que decidem no país. Desejo intensamente que todo este inebriamento não contamine e venha a moldar as decisões que vão ser tomadas sobre o regresso a escolas, abertura da indústria e do comércio, fim de medidas de isolamento, trilhamento de liberdades e garantias, etc. Em casos como este, tenho um medo que me pelo das decisões baseadas na evidência que os políticos sugerem que os técnicos lhe forneçam como sendo descoberta deles, técnicos.    

Nota: Todo este texto se baseia em dados disponíveis a 14, 15 e 16 de Abril de 2020, pelo que as posições relativas expostas (países no pódio dos mais atingidos, mortalidade) podem, para o melhor ou o pior, vir a sofrer alteração.

© Fotografia de cima e montagem: pedro serrano, abril 2020.

15 abril 2020

MÁSCARAS: Tudo quanto você gostaria de perguntar e não teve lata

Agora, que já se podem usar sem perigo de que nos ralhem, as pessoas, que têm vários tipos de máscaras em casa ou as tencionam comprar brevemente, perguntam-se muitas miudezas práticas, sendo uma das mais prementes: afinal aquilo é reutilizável ou não e, sendo, por quanto tempo posso usar a mesma? 
Deixo aqui alguns pensamentos e dicas sobre o assunto, adiantando, desde já, que nada do que se segue é preto e branco, e que o que se segue é enquadrado pela situação concreta que vivemos, em que o óptimo é inimigo do bom.
1. Máscaras cirúrgicas (FFP1) — Estas máscaras não são feitas de um tecido contínuo (como o pano de algodão ou lã), mas sim à base de diversos tipos de fibras, aglomeradas por diferentes processos. A finalidade do seu uso profissional (médicos, enfermeiras, dentistas) é evitar que qualquer bactéria ou vírus, que quem a usa possa ter, passe para o doente ou cliente. Resumindo: protege mais o outro do que quem a usa. Já não é mau! Tendo em consideração a sua arquitectura, a máscara cirúrgica é aplicada sobre a boca e nariz, não deixando espaço livre, entre a cara e o tecido, onde circule o ar. Deste modo, rapidamente vão ficando impregnadas do vapor da respiração de quem as usa e acabam molhadas. Ao ficarem molhadas, perdem parte da sua capacidade de filtro.
Num mundo ideal, estas máscaras devem ser usadas, continuamente, durante 2 horas, e os médicos mudam-nas também quando passam de um doente para outro. Falamos de profissionais e num mundo ideal. Se você, que se quer defender do Covid19, tem destas máscaras em casa e em pequena quantidade, não se pode dar ao luxo de as deitar fora de cada vez que usa uma. Certo? O que poderá então proceder para além do paralisante ralhete "não as use, são uma protecção ilusória", e para que não fique a olhar para o tecto sem faca e sem queijo?
Em tudo o que digo, parto do princípio que você está a cumprir as regras de afastamento e isolamento social e que só sai de casa para ir ao supermercado, à farmácia e aos correios, e que no seu lar TODA a gente está a fazer o mesmo. O quê? Às vezes batem-lhe à porta para entregar uma encomenda? Ok, deve pôr a sua máscara antes de abrir a porta e, se tiver luvascalce umas antes de pegar seja no que for. Se não as tiver, vá lavar as mãos de imediato, cantando durante 30 segundos "ah suas mãos, onde estão?, onde está o seu carinho?" (na versão Caetano Veloso).
Agora, você chegou do supermercado, andou por fora uma hora e a sua máscara está bastante húmida, além do mais porque você fartou-se de lhe soprar — aquela sostra que estava à sua frente na fila nunca mais se despachava a descarregar do carrinho os 260 rolos de Scotex 4 folhas com sabor a maracujá.
Aplique e tire sempre a máscara, seja ela de que tipo for (máscara ou respirador), usando os elásticos e sem tocar no material de que é feita, pois isso, para além de lhe passar para as mãos eventuais vírus que possam ali ter pousado, vai deteriorar o material e fazer-lhe perder características isolantes. Pegue na máscara retirada por um elástico e pendure-a, usando o elástico e tentando que o resto não toque em nada, num sítio alto (longe de alguém lhe poder mexer) e exposta à luz solar: a face de dentro de uma janela é o ideal, pois o vidro funcionará como lente ao reflectir os raios solares. A sua máscara vai ficar assim exposta ao calor, à secura e à radiação ultravioleta. Todos os vírus detestam esta combinação e o seu número começa de imediato a reduzir-se ao fim de poucas horas nesta estufa natural. Entretanto, se tiver de voltar a sair ou usar máscara, use uma máscara suplente e faça com que a que pendurou na janela (do lado de dentro, embora se houver uma brisa a passar nada a opor, pois arejar é também um bom método de desinfectar), tente que a pendurada esteja por ali 3 ou 4 dias sem lhe mexer. Passado este tempo, estará seca e razoavelmente pronta a ser usada de novo. 
Um conselho: não use álcool ou lixívia para desinfectar este tipo de máscaras: vai encharcá-las e dar cabo das propriedades isolantes. Para além do mais, a lixívia é irritante para as vias respiratórias e ao voltar a usá-la vai sentir coisas semelhantes a sintomas respiratórios (exemplo: garganta a arder, tosse, dor no peito ao inspirar) e julgar que é do Covid19. Não é, é apenas ansiedade lixivial, o conhecidíssimo 'síndrome Neoblanc'.  
Nunca use máscaras de outra pessoa, por íntima que esta seja e você ponha as mãos no fogo por ela.

2. Máscaras bico de pato (com ou sem válvula) FFP2 — Você tem duas máscaras destas em casa por pessoa? Óptimo. Estas máscaras protegem bastante mais quem as usa do que as máscaras cirúrgicas e graças à sua arquitectura não ficam em contacto directo com a boca, o bico de pato cria um espaço entre a boca e o material de que é feita a máscara. Assim, não se humedecem tanto como as máscaras cirúrgicas e, logo, duram mais em condições de bom uso. Quando são providas de válvula (aquele quadradinho ou círculo de plástico que fica mais ou menos em frente à boca) ainda melhor: o ar que se expira sai pela válvula e o vapor não se acumula tanto no interior da máscara. Quanto ao modo de as alternar, siga o que ficou dito para as máscaras cirúrgicas. Se as suas máscaras bico-de-pato possuem válvula em plástico poderá, como medida suplementar, passar sobre a válvula um pouco de papel de cozinha (ou mesmo Scotex não-usado, se não antipatizar com o sabor a maracujá) embebido em álcool. Deste modo, ajuda a desinfectar a zona por onde entra e sai o ar. Faça tudo isto sem tocar no restante material de que é feita a máscara.
Nunca use máscaras de outra pessoa, por íntima que esta seja e você ponha as mãos no fogo por ela.
3. Finalmente, as máscaras FFP3, de que o exemplo mais conhecido são os respiradores usados pelos pintores de automóveis ou agricultores quando aplicam pesticidas. Estas máscaras têm quase sempre válvula, dão uma protecção excelente (ronda os 99 %) e habitualmente são feitas de um material semelhante ao cartão (ou plástico, ou tecido reforçado e algo rígido) e muitas possuem no contorno uma tira de borracha que permite uma aplicação quase perfeita e estanque sobre o nariz e a boca. Quando se leem as instruções que as acompanham, estas dizem que dão para um uso de 7 a 8 horas, isto é: a jornada de trabalho de um pintor de automóveis ou de um pedreiro ou estucador quando não faz horas extraordinárias. Isto seria no tal mundo ideal, neste em que vivemos (sem máscaras nas lojas; com máscaras em algumas farmácias e na internet a preços exorbitantes) teremos de as reutilizar e, diria, tendo em conta a arquitectura e o material de que são feitas, estas são as que se aguentam melhor e mais tempo.
Nunca use a máscara de outra pessoa, por íntima que esta seja e você ponha as mãos no fogo por ela.
4. Máscaras sociais: O que dizer sobre as tais máscaras sociais (ou comunitárias) que 200 empresas portuguesas já começaram a produzir, ultrapassando todos os limites de velocidade habitualmente aplicados às máquinas de costura? Não se me oferece dizer nada, não abro o meu bico-de-pato sobre o assunto, até que se perceba melhor o que aí vem. Nesta atitude limito-me a seguir o argumento comum dos nossos dirigentes da Saúde: não tenho evidência, nem científica nem outra. 
E agora a pergunta em que toda a gente estará a pensar: tenho eu máscaras em casa? E de quais? Tenho. Tenho sempre algumas máscaras cirúrgicas por aí, dão jeito de vez em quando e há longos anos que integro um grupo arriscado. Depois, boquiaberto, fui vendo o que se passava na China (Janeiro de 2020) e pensei para mim mesmo: "esta porra é grave e vai chegar cá não tarda!" Quando vi os pontinhos vermelhos de alguns casos a picarem o mapa da Europa, telefonei para a farmácia onde geralmente vou e perguntei:
"Ó Dr.ª L., a senhora por acaso tem por aí máscaras bico-de-pato? 
Ela tinha, bué, quantas precisava? Comprei uma caixita. Passou-se isto a meio do mês de Fevereiro e um pouco mais tarde, nos primeiros dias de Março, passei na secção de adubos e pesticidas da Agriloja, um supermercado tipo 'Casei com um Agricultor'. 
"Olha que jeitosos respiradores FFP3 eles aqui têm... E caixas com 100 luvas de látex." 
Comprei uma caixa de luvas e outra de respiradores. Ainda por lá ficaram milhares, uma autêntica reserva estratégica.
Estas aquisições, honra lhes seja feita, ainda me permitiram desenrascar posteriormente alguns entes queridos, daqueles que também pensavam que isto não tinha probabilidade de chegar a Portugal! Oh, pra eles, que bem ficam de boquinha tapada! 

© Com excepção das 2 imagens referentes a máscaras bico-de-pato, todas as fotografias e design por pedro serrano, 
abril 2020.

14 abril 2020

COVID19: DEPOIS DA PÁSCOA, O CARNAVAL

Pode o Carnaval suceder à Páscoa? Pode a realidade ser tão relampagueante na mudança que nos deixa zonzos? Pode. 
Foi o que me sucedeu nos últimos dois dias e de tal modo me senti vertiginoso que tive de ir reler alguns dos textos que escrevi por aqui sobre o uso de máscaras! Ainda somente há três semanas, sentindo-me o David que afronta os Golias da Organização Mundial de Saúde (OMS), do poderoso Centro de Controlo de Doenças (CDC) dos Estados Unidos da América ou a sua imitação europeia (ECDC), sentindo-me, como dizia, um atrevido pigmeu, tentava desmontar, um por um, os 6 argumentos usados pelas  organizações formais para o não uso de máscara, da estupidez que era o povo comum usar máscara; essa coisa de uso tão complexo que podia ser mais prejudicial do que útil, uma espécie de medicamento pleno de efeitos secundários.
Por cá, a casa gastava a copy-paste e quer o Ministério da Saúde (na pessoa da Ministra) quer a sua Directora-Geral da Saúde nos advertiam, com repetida paciência, da inutilidade e até do perigo para o uso desse artefacto, dessa ilusão. Por vezes, já  maçadas da repetição, deixavam perpassar para o espectador lá em casa alguma impaciência condescendente: "não use máscara, é uma falsa sensação de segurança; é um pano", o que, à moda do Norte, seria algo como dizer: "Ó sócio, se queres usar essa porra, é contigo, mas depois não venhas dizer que não te avisei!"
Lá na OMS, nas conferências, eles lançavam mão dum tipo irlandês chamado Michael Ryan, um ex-ortopedista de ar colérico que, quando o patrão lhe delegava os aspectos técnicos (Ryan é Director dos Programas de Emergência da OMS), nos vinha também barafustar contra as máscaras e o seu uso indevido, o qual consistiria, basicamente, em todo o uso que não fosse sancionado por eles, que estão no nível mundial. E estávamos assim, e de vez em quando lá surgia algum intrometido a falar que se calhar não era má ideia usar uma mâs..., mas os chineses... E eles que não, que era apenas um trapo, que ficava molhado como uma fralda, e que o melhor era lavar as mãos enquanto se cantavam os "Parabéns a Você" ou o "Oh corona não te quero ver mais" da Maria Leal.
E então, ontem, vi, boquiaberto e sem máscara, os nossos mais altos responsáveis da Saúde a afirmar, claramente, que toda a gente deve usar máscara, sempre, cada vez que sair para um local onde haja gente! Máscara, máscara, máscara, uma qualquer, pode até ser uma feita em casa com uma t-shirt velha ou um pano do pó, e até se inventou um novo nome para este tipo de máscara popular: máscara social. Estou deserto por folhear próximas edições da Luxe da Caras para ver como gente tal Lili Caneças e Babá Pitta da Cunha se adaptam ao novo tipo de visual e que sumptuosas máscaras sociais não irão produzir para as nossas elites os estilistas lusos mais ousados.
É verdade que havia alguma crispação na nossa Ministra, na nossa Directora-Geral, quando passaram a ter de advogar o uso do tal trapo, há sempre um travo amargo no engolir dalguns tipos de cálices e, para exorcizar o arrepio, Marta Temido afirmou mesmo, por várias vezes e na peugada do que já tinha feito o supracitado Ryan, que a máscara é apenas um complemento, um suplemento; de que nada resultará se o povo não continuar a seguir as medidas que eles já advogam há que tempos. Certo, estamos cientes!
Mas, confesso aos meus ouvintes, que estou algo preocupado com isto tudo, quero dizer, com o 8 ou 80 de que parece não sermos capazes de abdicar. A partir de agora, pode-se improvisar uma máscara em cima de qualquer joelho (faça-a em casa); a EFACEC, pós Isabel dos Santos e reconvertida à causa nacional, vai mesmo fabricar ventiladores a metade do preço do mercado! E mostraram até um protótipo, uma geringonça que parecia mais um armário metálico, daqueles onde se aloja um quadro eléctrico ou se guarda a mangueira dos incêndios, do que o ventilador de plásticos macios e abaulados made in China. Oxalá aquilo funcione, rezei a mim mesmo, reles incréu que tenho sido. Mas para que estava eu alagado em dúvida se aquilo tudo vai ser certificado pelo INFARMED? Pois.... Talvez eu esteja enganado, ultrapassado, mas a minha ideia do INFARMED (Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, organismo dependente do Ministério da Saúde) é que se trata de uma instituição pesadamente burocrática, mais administrativa do que técnica, que se limita a conferir as bulas dos medicamentos ou a mandar retirar do mercado pílulas avariadas, após ter sido avisada ou pela própria indústria farmacêutica que as produziu ou por algum congénere europeu ou americano. Que se saiba, não há por lá gente que tenha o hábito de avalizar as entranhas de um aparelho mecânico e electrónico complexo como um ventilador. Será que se vão apenas guiar pelo folheto de garantia da EFACEC na certificação? Confesso que não me sinto totalmente seguro com todo este entusiasmo e, sendo assim, termino com uma sugestão caseira de gato escaldado:
Caro leitor/a, compre uma máscara, das certificadas, logo que possa. Não há, não encontra? Já falaremos disso e, enquanto espera, use então uma caseira — melhor que nada. Mas depois (se ainda não a tiver, pois, pelo que tenho visto, muita gente a tem) trate de encomendar algo decente, que o proteja mais seriamente do que uma posta de t-shirt. Continua a haver na Internet material de protecção individual à venda, de tudo quanto possa precisar. É caro, é mais caro do que o que deveria? Certamente, mas compete-lhe a si decidir as prioridades: vale mais gastar 35 euros por duas máscaras FFP2 (bico de pato, protecção 95 %), ficar a discutir as perversões da especulação, ou ir parar a um ventilador? 
E algumas destas máscaras podem ser reutilizadas, sobretudo quando são usadas durante pouco tempo, como ir ao supermercado e voltar. Não vou gastar tempo a explicar como se usam: já o fiz por aqui (Covid19: Máscaras Reajustadas) e os telejornais (algo irritados por terem tido de andar a dizer mal das máscaras anteriormente) já nos prestam esse serviço; há vários clips na internet que o explicam, mas, não obstante, deixo aqui, para que veja com o que se parecem, uma foto doméstica dos três principais tipos de máscaras, do género: como devem ser. De cima para baixo:
FFP1 (máscara cirúrgica): aquela que vemos o nosso dentista usar sistematicamente; vemo-la nalguns médicos que encontramos nos hospitais; e em alguns seres vivos normais com quem nos cruzamos na rua e que, habitualmente, estão em período de baixa imunidade, por exemplo doentes oncológicos em tratamento. Chegam para pequenas deslocações a locais como supermercados, farmácias, correios, abrir a porta de casa a quem nos vem entregar uma encomenda.
FFP2 (máscara bico-de-pato; na foto uma de fabrico português, certificada): protege muito bem, evitando 95 % de todas as partículas que podemos respirar, designadamente vírus.
FFP3: protege muito bem, evitando 99 % de todas as partículas que podemos respirar, designadamente vírus.


De cima para baixo: máscara cirúrgica (FFP1); máscara bico-de-pato (FFP2); respirador FFP3.

 © Fotografias de pedro serrano, abril 2020.

09 abril 2020

ELOGIO DA MÁSCARA

Máscara, ó máscara
Como és difícil de rimar!
Estou aqui cheio de ensaiar
Arranjar-te uma correspondência
Mas és árdua como a evidência
Que a Organização Mundial de Saúde 
Nos tarda tanto, tanto, em anunciar. 
Estou para aqui cheio de tentar!
Fosses, por exemplo, um par de luvas
E punha-te a calçar cinco pares de dedos
Um par por cada um dos segredos
Que (alegadamente) nos andam a ocultar.
Máscara, é que não há maneira,
Se ainda fosses, vá lá, uma viseira
Ficavas por aqui à minha beira
Paulatinamente a embaciar
Não te havia de largar.
Consertava-te o elástico,
Se começasse a afrouxar,
Ou soldava-te o acetato,
Com a ajuda dum agrafo,
Se começasse a derrapar.
Se fosses um respirador, 
Rolariam, de repente,
Um ror de rimas a repicar:
Corredor, andor, amor, vapor...
Agora, máscara?!
Ó eminências da ciência
Então para quando essa evidência
De que todos as devemos afivelar?
Ninguém a poderá apressar?
Ó Guterres, vê se dás aí dois berres
A essa Organização tão Mundial 
Olha que ninguém te vai levar a mal
Afinal, és tu que entra com o cabedal
Que aboleta ao Tedros o colchão,
O motorista, e o subsídio de refeição.
Máscara, máscara, quem tas cantara!
E eu, assim, numa camiseta de sete varas.
É que isto das palavras esdrúxulas... São irrimáveis
Não só são ridículas, como muito pouco amáveis.
Máscara, ó máscara
Chega! Feliz Páscoa. 


Nota razoavelmente técnica: máscaras, respiradores e viseiras integram aquilo que habitualmente se designa por EPI, ou seja: equipamento de protecção individual. No que se refere a máscaras (onde cabem as cirúrgicas - FFP1 -; e os respiradores - FFP2 e FFP3), gostam de nos dizer que não existe evidência científica para o seu uso, isto é que não existem suficientes artigos científicos publicados que fundamentem a vantagem inequívoca do seu uso. Sobre isto da evidência convirá esclarecer que uma ausência de evidência demonstrada não é sinónimo de não haver efeito, ou seja: que as máscaras e respiradores não nos protejem do coronavírus (e outros vírus e bactérias). Deste modo, manda o princípio da precaução em saúde e do bom-senso que, numa situação como a actual, as usemos sempre que nos expomos a terceiros e aumentamos assim o risco de ser infectados, pois na actual fase de transmissão comunitária da epidemia, qualquer pessoa pode ser fonte de contágio, mesmo que ela própria se julgue sã.

PS: Quanto à imagem, é uma fotomontagem que encontrei, como tal, no YoutTube; onde abundam clips com as conferência de imprensa diariamente servidas pelo Ministério da Saúde.

07 abril 2020

Covid19: PORTUGALventil

Aqui quase em frente à minha porta há um renque de contentores do lixo, nas modalidades de lixo normal, plástico e metal, e cartão e papel. Nestes dias de quarentena acumulou-se uma grande quantidade de lixo não classificável entre os contentores, depósitos que provocaram uma febre de feira de antiguidades entre os vizinhos, que andam por lá a disputar colchões velhos, mesinhas de cabeceira desirmanadas, colheres enferrujadas e outras preciosidades do estilo. 
Todas as vezes que espreito os contentores, o meu coração angustia-se, pois, mais do que o receio de não cumprimento, por parte dos respigadores, do distanciamento recomendado pela DGS, temo que, por esse país fora, na vertigem das arrumações, as pessoas estejam a deitar fora uma séria hipótese de sobrevivência à pandemia que nos fustiga.
Assim, cara/o ouvinte, tem uma varinha mágica com as lâminas embotadas e estava a pensar desfazer-se dela? Por amor de Deus, não a deite fora! O motor da sua escova de dentes eléctrica gripou e você ia deitá-la ao lixo? Por amor de, Deus não faça isso! Olhe que até as coisas mais humildes, como o tubo dispensador das gelatinas de WCPato que se colam na retrete podem vir a tornar-se um componente fulcral num futuro ventilador de cuidados intensivos! Ouviu?
Após arrastadas semanas em que assistimos às comunicações dos nossos responsáveis relatando a fase em que estávamos no derivado a ventiladores (a longa espera pela contagem dos que existiam em Portugal, da hesitante subcontagem dos que existiam mas estavam ocupados; da possibilidade de recorrer a ventiladores de uso veterinário; da intenção de os comprar num futuro próximo; da encomenda já feita à China, da retenção na alfândega dos mauzões dos alemães de uma encomenda que era só nossa), depois desse longo intervalo de mastiga, faz bola e estica a pastilha elástica, eis que, de súbito, um vendaval de empreendedorismo percorreu o país de lés-a-lés, como se todo o território tivesse sido contagiado pela WebSummit. Surgem startups como cogumelos, empresas de plásticos de Aljubarrota reconvertem-se da noite para o dia, fabricantes de motores de esguicho para limpa-para-brisas afirmam-se aptos a produzir sejam ventiladores  prontos a usar, sejam componentes essenciais para estes, pois recauchutaram já a impressora a preto e branco Acer numa impressora 3D que, mal chegue o cartucho tricolor da China (retido em Frankfurt), produzirá, ininterruptamente, cerca de 10.000 juntas da colaça específicas para ventilador/semana, funcionando em regime híbrido, eléctrico e solar e, portanto, contribuindo ainda mais para reduzir o tamanho da nossa pegada de carbono.
É que se fica abismado, quase embriagado, com esta promessa de abundância e acho que das duas uma: pelo Natal ou estaremos a exportar ventiladores para países com uma curva epidémica que cresça mais do que 7,3 % ao dia ou, em alternativa, vão começar a sair ventiladores grátis nas raspadinhas e no suplemento de fim de semana do Diário de Notícias e do Correio da Manhã. Qualquer um de nós poderá vir a ter um ventilador em casa e, quando já não precisar dele para a sogra, poderá sempre usá-lo para atiçar as brasas do grelhador que tem no quintal, pois as acendalhas ecológicas saíram fracas.
É claro que, depois de termos os ventiladores operacionais, vai se necessário que alguém os opere. E embora um médico intensivista ou um anestesista demore cinco anos a especializar, estou certo que, no mesmo espírito empreendedor e desenrascado que nos caracteriza, não teremos dificuldade alguma em reconverter a intensidade das dezenas de comentadores televisivos que discutem com todo o à vontade os formatos e as bossas da curva epidémica do Covid19, desde os seus achatamentos epidemiológicos à sua repercussão nas bolsas e nos mercados.

Como sou um pessimista nato, dou por mim a rezar para que, chegada a minha hora de necessitar de um ventilador (cruzes, canhoto, temido), me calhe um daqueles antigos que já havia nos hospitais no tempo da crise do BES ou mesmo um daqueles para uso veterinário de que o Dr. Francisco da Cruz Vermelha tanto pavor tem, por, suponho eu, aflição de poder acordar uma manhã num serviço de cuidados intensivos e deparar na cama ao lado com um pekinois (ressuscitado de algum Cãorona), enquanto o seu próprio ventilador está pacatamente a ser regulado por um médico veterinário.




© Fotografia de cima: pedro serrano, 2019.



06 abril 2020

COVID19: A DITA CUJA CULTURA

Quem, hoje em dia, usa algum do seu tempo para ver TV, arrisca-se a assistir, num único visionamento, a extraordinários fenómenos. E nem precisa sintonizar canais de pendor mais populista, como a CMTV. Veja-se só tudo quanto vi e aprendi na respeitável SIC de ontem à noite:
Aparece no ecrã uma senhora, que as legendas identificam como Directora-Geral da Saúde da Escócia, a dizer que andou a pregar às pessoas que, derivado ao Covid19, ficassem em casa, mas que ela própria, por duas vezes, tinha ido passar fins-de-semana à casa de férias que possui lá nas Terras Altas e que isso fora muito feio, inadmissível, e estava muito arrependida de o ter feito; tudo isto declarado preto no branco e sem floreios ou atenuantes. Tirei os óculos e estava a limpá-los quando, na imagem seguinte, aparece outra senhora, que as legendas identificaram como Ministra da Saúde da Escócia (e, portanto, patroa da anterior), a dizer que o que a outra tinha feito era muito feio e inadmissível, que, de momento, não a ia afastar da função por causa disso, mas que, desde aquele instante, deixaria de aparecer nas conferências de imprensas diárias do Ministério da Saúde lá deles. Tudo isto dito igualmente pão-pão-queijo-queijo e sem floreios ou louvores ao trabalho prévio da primeira senhora. 
Limpei outra vez os óculos e fiquei a pensar para mim: Ena pá, olha que vantagem; vai só passar a aparecer uma! 
Como pode ser diferente a cultura de cada país!
E estava a pensar deste modo, pois, nesse mesmo visionamento televisivo, tinha acabado de ver 4 pessoas (mais uma tampinha) a entrar num elevador tipo lata de atum Tenório, daqueles de prédio de habitação dos anos 50 onde só cabem três adultos e uma criança, desde que acompanhada por um adulto. Acontece que três dessas pessoas eram os mais altos responsáveis da nação pela área da Saúde (uma Ministra, um secretário de Estado, uma Directora-geral da Saúde), autoridades que, todos os dias e desde há largas semanas, nos pregam as vantagens e a necessidade imperiosa do distanciamento social, chegando ao pormenor técnico e rigoroso de o quantificar em metro e meio a dois metros. Já no que diz respeito à tal tampinha, eu (e dez milhões de portugueses distanciados socialmente lá em casa) ficámos sem saber o que seria, por mim só percebi que a tampinha era ministerial. Será que teria saltado, por algum motivo imperioso, a tampa à Senhora Ministra? Nos tempos conturbados e de grande pressão que correm é bem possível.
E voltei a pensar para comigo, enquanto soprava nas lentes dos óculos para produzir um vapor de água que, mais facilmente, permitisse melhorar-lhes o alcance: o que é a cultura de cada país e como podem ter consequências diversas!
Veja-se os chineses, os japoneses, os coreanos, os singapurenses, os taiwaneses: explicava-nos a Organização Mundial de Saúde (OMS) que usavam máscara por questões culturais, seria uma cultura naturalmente mascarada. Nós, o resto do mundo, não devíamos fazer o mesmo, pois as máscaras não tinham eficácia alguma naquela epidemia que, muito a custo, se volveu em pandemia. Já eles, os orientais, nos dizem que andam todos de máscara ou respirador para se defender do contágio do Covid19,  que a estratégia tem resultado, e que assim não tem de estar cá com aquelas preciosidades (difíceis de distinguir e classificar) do sintomático e do não sintomático com que a OMS e o Ministério da Saúde nos têm entretido.
"Espirraste três vezes, pá, podes estar sintomático!"
"Não é nada, pá, na primavera espirro sempre: sou alérgico ao pólen."
"Hoje já tossiste quatro vezes, madrinha, podes estar sintomática; vamos já ligar para a Saúde24."
"Que disparate, filha, é do refluxo, dá-me para tossir. E agora engasguei-me com uma migalha! Bate-me aqui nas costas e já passa." 
Deve ser da questão cultural e de ser uma pandemia muito dinâmica, discorria eu, pensando que ainda há uns dez dias atrás ouvira a nossa DGS afirmar, quase implorando: "não use máscara, é uma falsa sensação de segurança; não servem para nada... É apenas um pano, etc." 
Sim, mas ontem, estranhamente, nesse mesmo dia em que via estes fenómenos todos da Escócia, essa mesma DGS que ainda há minutos estava de costas voltadas para a Ministra no elevador, dizia - um pouco contrariada é certo - dizia agora que, afinal, as máscaras podiam ser boas e deviam ser usadas não somente por sintomáticos (aqueles que tossem, espirram, e pode ser do Covid), mas também pelos profissionais que, embora de perfeita saúde, lidam de perto com outras pessoas, como é o caso dos empregados de supermercado, padeiros, farmácias, transportes públicos, bombas de gasolina, forças de segurança, bombeiros e, é claro, pessoal de saúde. Acho que se esperarmos mais uns dias, concluí para com os meus fechos-éclair, isto vai acabar por ser alargado também aos seres-normais-e-assintomáticos-que-vão-a-locais-onde-trabalham-profissionais-que-lidam-de-perto-com-outras-pessoas.
Tudo somado, deve dar uns 10 milhões de portuguesitos, computei, soprando os óculos e dando-me conta de que não os conseguia embaciar por estar (parafraseando a expressão enfadada usada por Marta Temido para se referir a este equipamento) com a "dita-cuja-máscara" afivelada na cara.
Aposto que a próxima salgalhada vai ser em torno do uso de LUVAS.
   

Nota: Se quiser assistir a mais dos fascinantes episódios sobre este problema das máscaras, leia o que escrevi neste blogue sobre o assunto. Basta clicar aqui: COVID19: MÁSCARAS REAJUSTADAS e aqui MÁSCARAS: Tudo quanto você gostaria de perguntar e não teve lata

02 abril 2020

COVID19: OS SINTOMAS EXPLICADOS AO POVO



Seja bem aparecida, Dona Sofia
Como vai hoje a sua disgueusia?
Ai, nem me fale nisso, vizinha
Que estou aqui toda tolhidinha,
Passei a santa noite a delirar, na verdade  
Sonhei que nos tinham cercado a cidade!
Alevantei-me, pus o xaile, enfiei as chinelas
A ver se me ventilava ao peitoril da janela
Mas não se aliviavam, os bofes malditos
Tive de ir à credência entornar um copito.
Maduro branco, uma pomada de categoria
Mas soube-me como se fosse só água fria
Acho que poderá ser essa tal disenteria
E, vosmecê, já arrebitou da sua anosmia?

Credo mulher, lá vem você com os exageros
É preciso fazer como dizem as autoridades
Ver a coisa pelo lado das proporcionalidades!
Derivado à asnomia, já nem sei o que pensar
Ontem, o meu homem, assentado à sala-de-jantar
Contrariou-se no turno do teletrabalho
Queria-me mandar os colegas pró ca*****
Tive de recapitular: Antunes, olha-me a tua cólica
Que, entre nós, quando o aperto o assedia
Pulveriza-me o ar que nem uma central eólica 
Para descontaminar, tenho de meter a casa a arejar.
Depois fui espreitar a minha Elizabete, ralada
Beta, estás isolada?, gritei sem cruzar a entrada.
Ai, mãezinha, que foi agora, quis ela apurar
Soprando nos sabugos  que estavam a caiar. 
Nada, é o teu pai que está a dar rateres à toa
Mas ainda não é critério para uma zaragatoa.
Oh, senhora, não me venha com esse retrato
Que não vou pôr-me a ligar para a Saúde24
E ficar o estupor do dia todo a martelar,
Tenho as unhas a estrear! 
Mas a mãezinha, voltou ela, como espantada
Não está com a fachada da marquesa encrespada
Que aspirou uma fragrância avinagrada
Ou farejou tampa de esgoto destapado
Será que não terá o olfacto avariado?
Olhe que vi ontem no Watsàpe do David
Que isso pode ser derivado ao Covid.

Nota razoavelmente técnica: Disgueusia consiste na perda ou modificação da percepção do sabor dos alimentos (podem saber a uma coisa diferente do habitual e isso pode acontecer apenas com certo tipo de alimentos, e não com todos, podendo também variar de pessoa para pessoa. Quanto à anosmia consiste na perda do cheiro, sem a pessoa estar com o nariz entupido.

© Fotografia: Portografia.


01 abril 2020

ANTIGAMENTE


    © Fotografia: pedro serrano, Porto (Ordem dos Médicos), 2019.

O CERCO DO PORTO - O Regresso

Adorei, adorei, o modo como a Direcção-Geral da Saúde (DGS) catapultou a sua atrapalhada aritmética de considerar que, em 24 horas, os casos de Covid19 no Porto tinham passado de 417 para 941, para a sugestão de um cerco sanitário à cidade do Porto. Ainda por cima ao Porto, uma cidade experimentada e traumatizada em cercos (sanitários ou outros), e tão ciente disso que até tem uma rua a comemorar um deles.
Não foi pois de espantar que o Porto, através do seu presidente Rui Moreira, tivesse reagido à 'cavalada'* com um tremendo coice. Ficou-lhe bem, ficou-lhe como seria de esperar, digo eu, que, confesso, embora emigrado há longas décadas, sou natural da cidade ou, que como é costume agora, quando se quer exibir o penacho da transparência, declaro desde já os meus conflitos de interesses. Ainda na declaração de conflitos íntimos, devo acrescentar a suave desilusão que me acometeu quando, no dia seguinte — a velocidade com que o corona obriga a rotações de 360 graus  o secretário de estado da Saúde veio desmentir, lacónica e veementemente, a sugestão de cerco da véspera, pois eu já imaginava um emissário nacional para tratar da envolvência da minha cidade: Francisco Jorge, um profundo conhecedor dos nano-micras virais e homem que se sonha a si mesmo como uma encarnação actual de Ricardo George. Ainda não foi desta! 
E como pelo sonho é que vamos, já estava por aqui a imaginar as fronteiras ao tal cerco, como seria que iam delimitar a coisa? Onde, a Norte e a Sul, seriam fixadas as fronteiras? É que não é fácil... A sul, o Porto confunde-se com Gaia e, a Norte, alastra como uma seta até Matosinhos, até à Maia. Onde iria ser então a linha transgressora, a partir da qual se dispararia sobre o meliante que se dirigisse ao IKEA, à EXPONOR? Imagino-a em Antuã, a Sul, aproveitando o passadiço sobre a A1 da estação de serviço como poiso confortável para os vigilantes e a Norte, a Norte... Bem, estou certo de que a DGS teria uma qualquer ideia, depois de ouvida a Europa a 27 que, como dizia a Ministra da Saúde nos saudosos dias dos primeiros casos de Covid19, nesta cena de progressão a epidemia portuguesa está alinhada pelos outros países europeus. 
Perdi-me, perdi-me no sonho e já sonhava com os rastreios mágicos e antecipatórios da Cruz Vermelha Portuguesa estendidos acima do Douro, uma tenda de campanha em cada um dos municípios cercados. Adeus ovos moles, adeus tripas à moda do Porto (mesmo se servidas frias), adeus bacalhau à Narcisa, adeus aos bolinhos de amor de Felgueiras, às empadas do Natário em Viana.
Termino, mas não de imediato, como sucede nas longas conferências diárias do Ministério da Saúde. Tinha prometido a mim mesmo que não mais da minha pena sairia uma linha que pudesse perturbar a vital unanimidade necessária ao enfrentar destes tempos difíceis, e que os nossos benfeitores não se cansam de propalar. Mas um homem não é de ferro e as pérolas diárias que os tais pontos da situação nos despejam são de engasgar uma ostra. Um dia mandam-nos ver os nossos velhinhos e enchê-los de afectos, e no dia seguinte os lares estão como era bom de ver que ficariam, embora os números de casos e mortos não sejam nada de por aí além (como diz a DGS) e, basicamente, a responsabilidade seja dos próprios lares (como metralha a Ministra da Saúde) que não activaram planos de contingência; uma manhã quem decide o que se vai fechar, cercar ou fazer são as autoridades de saúde locais e, na tarde seguinte, essa responsabilidade é puxada, à rédea curta, para Lisboa... Pelo meio da conferência, ainda sobra tempo para nos inteirarmos das últimas sobre a etapa de isolamento social das netinhas da Directora-Geral ou ouvir as analogias misteriosas de Marta Temido que relacionam o Covid19 com os adolescentes tailandeses aprisionados numa gruta subaquática... Será que era suposto ficarmos comovidos? Bem faz António Sales, o secretário de estado que recorda vagamente o primeiro ministro japonês, e que, lacónico, sóbrio, cingido à objectividade do que tem a transmitir, recorre, sempre que pode, a discurso escrito! Que nunca lhe falte uma máscara, das boas e não dos ilusórios trapos molhados a que se refere Graça Freitas, é o que lhe desejo  (com respeito) nestes tempos de perdigotos potencialmente mortais.   
Termino, agora sim, com um apelo à autarquia do Porto para que não deixe de, usando uma das vielas ainda sem nome da cidade, a cognominar de Rua do Cerco do Porto II ou, mais cinematograficamente, Rua do Cerco do Porto - o Regresso.

*Nota razoavelmente técnica: No dia 30 de Março de 2020 as estatísticas oficiais do Ministério da Saúde/DGS divulgaram publicamente que, em 24 horas, os casos de Covid19 tinham crescido no Porto 126 %, um aumento nunca alcançado em território específico de nenhum país do mundo nesse espaço de tempo, nem compatível com o comportamento epidemiológico conhecido de qualquer fenómeno epidémico dos últimos 100 anos, designadamente o do Covid19. Assim sendo, teria sido tecnicamente obrigatório ter desconfiado de tais valores (uma atitude de clássica sensatez aconselhada em todos os manuais perante valores inesperados); reintroduzir os dados na base de dados desde o início da colheita desse dia; proceder à sua validação (dupla contagem, verificada por mais do que uma pessoa) e só então proceder à sua divulgação pública, sobretudo quando essa divulgação poderia desencadear o pânico de uma população e implicar uma decisão como a de um cerco sanitário.