Curvas progressão Covid19/país (Fonte: Financial Times). |
É para mim um mistério, quase uma questão de fé (ou se acredita ou não, independentemente da realidade), o facto de uma máscara poder proteger um profissional de saúde do Covid19, mas o mesmo não acontecer se a pessoa que se protege, usando o mesmo meio, for um vulgar cidadão. E, pergunto-me, será que quando o dito profissional de saúde termina a sua função, mas continua a usar uma máscara nas suas idas ao supermercado, esta deixa de lhe proporcionar protecção?
Argumento 1 [usado pelas autoridades]: O problema é que as pessoas comuns não sabem usar máscaras (ou respiradores) e, então, pode a emenda ser pior do que o soneto e dar ao povo uma sensação de falsa protecção e, derivado dessa sensação, a pessoa baixar a guarda e facilitar, levar as mãos à cara e coçar a máscara, puxá-la para os olhos como o Bolsonaro, etc.
E quanto ao profissional de saúde, já nasce ele ensinado a usar máscara ou luvas? Será uma predisposição genética, essa sabedoria sobre uso de equipamento individual de protecção? Ah, aprendeu a fazê-lo. E não poderiam (as entidades competentes do Ministério da Saúde, claro) ter a gentileza de nos ensinar, de passar essa informação a quem está aflito e vai usar (já usa!) máscara de qualquer maneira? Talvez que as pessoas 'lá em casa' consigam aprender a fazê-lo.
Argumento 2 [usado pelas autoridades]: Mas as máscaras não são para uso indefinido, devem ser mudadas com frequência para continuar eficazes; de outro modo ganham vapor da respiração, empapam-se, e podem deixar passar o vírus. Sim, sabemos isso, que acontece sobretudo às máscaras ditas cirúrgicas (FPP1), moles, simples tecido com elásticos, sem bico de pato ou respirador, que são as máscaras que médicos e enfermeiros geralmente usam no dia-a-dia. Para que funcionem na perfeição, essas máscaras devem ser mudadas, mais ou menos, de 2 em 2 horas. Será que isso está a acontecer nos nossos serviços de saúde? Parece que não. E porquê? Não há máscaras suficientes para tal. Se isso fosse feito, cada profissional de saúde teria de usar 4 a 6 máscaras cirúrgicas por dia, dependendo da duração da jornada de trabalho. Se multiplicarmos isto por 150.000 profissionais de saúde lá se ia a reserva estratégica, de que tanto nos falam na TV, em três ou quatro dias. O óptimo é inimigo do bom.
Argumento 3 [usado pelas autoridades]: Suspeita-se que por trás deste discurso oficial "as máscaras não protegem" está uma ingénua tentativa de evitar que faltem máscaras aos profissionais de saúde, que são quem mais delas precisa e que, todos nós, necessitamos de manter bem protegidos para que não adoeçam e deixem de prestar cuidados — não posso concordar mais com isto da defesa dos profissionais da linha da frente. Mas esta argumentação parece ignorar um facto: o circuito de distribuição e venda de equipamento de protecção é (ou deveria ser) distinto entre o uso profissional e o uso leigo. São as farmácias e as lojas de produtos agrícolas ou de construção civil que vendem as máscaras/respiradores e as luvas que o povo tem comprado. Ou será que o Ministério da Saúde se anda a abastecer nesses locais de venda? Se anda, o sinal é péssimo e evidencia uma notória falta de planeamento, prévio e atempado, das necessidades em recursos que uma pandemia gera e que um verdadeiro plano de contingência deve acautelar. Deste modo, o argumento de que se o povo as compra não há para os outros é falacioso e inconsistente.
Argumento 4 [usado pelas autoridades]: Mas os fabricantes deste material são os mesmos, de modo que se forem distribuídos num lado (farmácias, lojas agrícolas) vão faltar no outro (centros de saúde, hospitais). Mas, atrevemo-nos a perguntar, não compete ao Governo acautelar isto, ou seja: requisitar toda a produção nacional (duas fábricas, suponho) para uso do Estado? E isso foi já operacionalizado e conseguido de modo inequívoco e radical?
E depois, digo eu, há outras iniciativas que se poderiam, talvez, tomar: se o povo está cheio de equipamento de protecção individual (luvas, máscaras/respiradores, até óculos), se andou no açambarcamento enquanto o havia, não seria de pedir — usando os canais de comunicação do costume onde nos dizem que as máscaras são inúteis — ao povo 'lá em casa' que doasse esse equipamento a quem mais precisa, isto é às instituições de saúde? Claro que o povo, que não é parvo e não confia totalmente em quem o dirige, não iria entregar tudo, iria ficar com algum para si, e fazia bem. Mas estou certo que alguma coisa havia de ser doada e, multiplicada pelo país inteiro, seria algo que se veria, seria útil. Ou talvez acontecesse que as pessoas que continuam a encomendar máscaras nos locais do costume dissessem algo como:
"Oh Sr. Foskamónio, já chegou o sulfato de cobre que eu tinha encomendado para o míldio? Olhe, peça-me aí também 2 caixas de máscaras, das FFP3, ao fornecedor, que assim ofereço uma à minha médica de família que, coitada, está para ali sem mâscara, encravada entre a secretária e o espelho de ver Rx, a apanhar com perdigotos de toda a gente!"
Suponho que haverá muitas pequenas (crowdfunding para comprar material, doações particulares) e grandes (ensinar a usar máscaras e luvas) iniciativas que podem ser tomadas, pois a população participará com a generosidade que já vimos suceder na desgraça que foram os incêndios de há três anos. Agora continuar, desdenhosa e condescendentemente, a afirmar que as máscaras não servem para nada, que é quase um crime a gente usá-las, não é o sinal de transparência ou de verdade que nos dizem ser apanágio na comunicação das autoridades responsáveis.
O gráfico que abre este texto foi tomado de empréstimo ao Financial Times e mostra-nos as curvas epidémicas* do Covid19 segundo vários países do mundo e ao longo do tempo. É interessante notar que os países que apresentam curvas menos pujantes ou mais controladas são precisamente aqueles que usaram máscaras/respiradores durante esta pandemia (Coreia do Sul, Japão, Singapura, Hong Kong/China). É óbvio que as máscaras não explicam todo o sucesso, mas estão lá a contribuir.
Covid19 por país, assinalando aqueles em que se pratica uso generalizado de máscara. |
Argumento 5 [usado pelas nossas autoridades]: Ah, mas o uso de máscara é 'cultural' nesses países, como se fosse tão natural e frequente aquela gente de olhos aguçados usar máscara como comer arroz Xau-Xau ou Sushi. O que não é verdade. O que é verdade é que aqueles povos têm menos inibições, e maior disciplina, em usar máscara em certas situações, e agora, durante a pandemia, não se vê um único habitante daquela zona do planeta que não use uma. Porque será?
Argumento 6 [usado pelas autoridades]: O uso de máscara só seria eficaz se toda a população a usasse. Percebe-se a lógica, mas, como foi dito, o óptimo é inimigo do bom. Deste modo, quem se puder proteger com máscara nas saídas em direcção a locais onde possa haver concentração de pessoas que o faça. É que na fase em que nos encontramos da epidemia (transmissão comunitária livre) qualquer um de nós pode estar infectado sem o saber e desse modo passar o vírus a quem está ao seu lado no supermercado, na frutaria, na farmácia ou no elevador.
* Será que alguém podia informar a Dr.ª Marta Temido que não se diz curva epidemiológica, mas sim curva epidémica? É que, quando ela fala disso, está a falar da tradução gráfica da progressão de uma epidemia ao longo do tempo (por isso curva epidémica ou curva da epidemia), ao passo que epidemiologia é o ramo do conhecimento que estuda estas (doenças transmissíveis) e muitas outras doenças.
Nota: Agradeço a David Peres, médico na Unidade de Saúde Pública da Póvoa de Varzim e membro da comissão de Controlo da Infecção na Unidade Local de Saúde de Matosinhos, os conselhos (abaixo reproduzidos) de bom uso de máscaras e respiradores que elaborou e divugou.
Gostava de te contactar. O endereço de e-mail não é válido.
ResponderEliminarUm abraço,
José Alberto
pedroserrano22@gmail.com
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