30 julho 2013

AQUECIMENTO CENTRAL


À entrada de minha casa há um banco de pedra onde as pessoas gostam de se sentar enquanto aguardam alguém ainda dentro da habitação ou em que, simplesmente, nos quedamos olhando quem passa na rua ou espreitando o por do sol lá ao fundo, para os lados do mar. Como está virado a sul, a pedra do banco mantém-se quente mesmo ao cair da tardinha, quando já tudo vai arrefecendo em redor. É por isso, suponho, que a Mia gosta de se deitar ali, o corpo todo colado à pedra para aproveitar as moléculas restantes de calor. 
© Fotografia de Pedro Serrano, Julho 2013.

24 julho 2013

EM ROMA, SÊ ROMANO


Ia ao King Triplex, ali numa transversal da avenida de Roma, ver uma fita e, por comodidade, escolhi ir jantar a um restaurante em que, de algumas das mesas, se vê a bilheteira do cinema.
Sentei-me, pedi secretos de porco com salada (eles servem uma salada de alface com coentros, combinação muito feliz) e fiquei-me a responder a uns SMS atrasados.
Estava nisto quando senti perto de mim o raspar de cadeiras a ser afastadas. Olhei: na mesa ao lado estavam a sentar-se dois tipos, ambos engravatados e com aquela palidez acinzentada de quem passa os dias em gabinete equipado com janelas anti-suicídio. Um deles – o que exalava o ar mais importante, a estourar num fato novo como sapatos apertados – relanceou em volta um olhar onde se misturava a importância da figura que espera ser reconhecida com a paranoia do poder estar a ser escutado. Abstraí-me no ecrã do Nokia e passado o tempo conveniente voltei a espiolhar, pois estavam entretidos nas ementas. Eu bem me parecia que conhecia uma daquelas caras! Era um dos novos secretários de estado da Saúde, um parceiro vindo directamente do Norte profundo onde, tinha uma ideia vaga, estava ligado ao turismo rural ou assim... Quanto ao outro, percebia-se pela pose, pelo modo como segurava com contenção o menu na vertical aguardando que Sua Exc. decidisse, estava ali para servir de espelho meu e, à sobremesa, se tivesse encarnado o ouvinte perfeito, beneficiar de espaço para poder apresentar o seu empenho, pagar o jantar.
Antes mesmo de Sua Exc. mover o pescoço e lançar um novo olhar paranoico sobre a sala, já eu fixava a montra do restaurante e olhava o exterior com o ar desalentado de quem vê chuva cair.
“Que é que o Senhor Doutor vai querer beber?”, interessou-se o subalterno, enquanto o empregado esperava, paciente e ciente de que aqueles tinham uma aura de Jornal da 1.
“Vinho, claro, comemoremos...”
“Branco, tinto...?”
“Prefiro tinto e, já agora, de preferência lá de cima...”, incitou o outro num acesso emocionado, recém-chegado à capital mas já atolado nas saudades de vacas pastando livremente.
Olhei o relógio, pedi um café. Eram nove e dez, ainda era cedo e queria reter-me por ali até ao limite, pois – graças ao laminado de presunto e ao Duas Quintas – os meus vizinhos descuravam o tom abafado de comunicação e banhavam-se agora no sentimento dourado de quem está bem-na-vida e ainda espera vir a ficar melhor.
“Ó, homem, confesso que para mim foi de surpresa em surpresa! Inscrevi-me nas listas por insistência do presidente da distrital, já nas últimas! Era o quinto por Bragança, imagine se alguém pode esperar alguma coisa nesta posição, com o que davam as sondagens. Mas esta maioria foi um jekpote! Na noite das eleições, na TV, comecei a ver os votos a cair, as barrinhas dos gráficos a subir, e os deputados do partido a saltar como castanhas...”
O outro aquiescia, também esperava vitória mas nunca tão expressiva...
Eram nove e vinte e cinco, tinha de me pôr a andar, pedi a conta. Na mesa ao lado, o novel secretário de estado afadigava a faca de serrilha sobre o costeletão de vitela e, de garfo no ar, comparava:
“Não está mau, mas ao pé da posta mirandesa... Ainda tem de comer muita broa, muita broa.”
O companheiro concordava que, de facto, alguma broa devia ser reposta...
“E uma noite – até estava sentado a ver a novela com a minha esposa, estive para não atender – toca o telefone, era o novo Ministro...”
O outro arrepiou-se com a possibilidade:
“Caramba...”
O escolhido olhou em volta, inclinou-se sobre a mesa, confidenciou:
“Até àquela data eu só tinha trabalhado na Segurança Social, percebe? E um bocadito naquele programa do Desenvolvimento Rural... Na Saúde é que nunca, nada... Mas foi o que me calhou!”
O outro acenava com a cabeça, admitindo que há milagres assim.
Eram 21:32 quando cruzei a porta do restaurante. Atravessei a rua a correr, desviando-me do carro de vidros fumados que, estacionado sobre a passadeira, esperava.

© Fotografias de Pedro Serrano: (1) Barcelona, 2012; (2) Viseu, 2013.

20 julho 2013

UM CALOR DE ANANASES

Lisboa, Verão 2013: excessivo calor faz derreter materiais insuspeitos. 
© Foto de Pedro Serrano 

18 julho 2013

VOU-TE CONTAR: 59. NATUREZA QUASE-MORTA


Quando era pequeno e, neste caso, o pequeno refere-se a idade abaixo dos onze anos, tinha um medo tremendo do vitral aqui ao lado, finalmente fotografado num Sábado recente em Viseu.
Sempre que íamos à cidade, tão seguro como visitarmos a minha tia Céu ou irmos à missa na Sé, havia um momento da tarde reservado ao lanche na Confeitaria Horta, uma pastelaria onde parava a alta sociedade de Viseu e as senhoras bebiam disfarçadamente, a acompanhar empadas de lombo de porco, vinho branco do Dão por chávenas de chá...
Alheio a tudo isso, até ao frisson de Aquilino Ribeiro poder estar sentado a uma das mesas com a sua neta Marianinha, as minhas mãos começavam a humedecer-se mal entrava na confeitaria, pois, mais tarde ou mais cedo, o meu olhar não resistiria a levantar-se para a vítrea imagem que vibrava na parede do fundo. E, depois de olhado, era certo e sabido que nessa noite, nas seguintes, paralisado como uma múmia na minha cama de Queirã, seria assaltado por visões de horror, catalisadas pela natureza morta-viva daquele vitral. Mas qual a razão específica desse terror que não me atrevia a desabafar, pois ninguém o compreenderia e ao medo teria ainda que somar a humilhação do gozo?
“Tia, o Pedro tem medo do tatu...”
“Não é um tatu, é um rato-porco-assado!”
Pelo traço, o vitral denuncia a sua época Arte-nova e mostra a mesa de uma qualquer festa rica: o champagne, as taças, os ananases, as cascatas de fruta, o rico faisão. Nada de muito diferente da sala de jantar das festas em casa dos meus avós do Porto, quase se poderia escutar o bruá das conversas em torno da ceia...
Mas, para mim, havia algo de muito inquietante no vitral, algo que sobrava, algo que faltava: é que a cena representava uma sala já depois de terminada a festa (não há um único ser humano presente) e na qual, pela calada da noite, um inquietante e sobrenatural animal, uma espécie de tostado cruzamento entre rato e leitão assado, tenta chegar ao colorido faisão, derrubando, na tentativa, uma travessa cheia de frutos... Mas ninguém ouve o tremendo barulho da travessa estilhaçando-se no chão? Ninguém dava conta daquela violação, ignóbil e maléfica, da harmonia? Então ninguém acudia, expulsava o monstro e defendia a alegria de uma mesa festiva? Iam-no deixar ratar aquilo tudo? É que depois do faisão iam os doces; ia conspurcar as taças, mijar nos restos de espumante... Não, era evidente que não, não havia evolução ou alívio na cena e, de cada vez que voltávamos à Horta, lá estava tudo aquilo, paralisado como num pesadelo!
Somente já grande consegui olhar o painel com serenidade e apreender os seus pormenores, a beleza do seu desenho e concretização.

A Confeitaria Horta, fundada em 1873 por um pasteleiro do Porto radicado em Viseu, famosa pelas castanhas de ovos, pelos pastelinhos de feijão, fechou há uns anos para grande desgosto dos viseenses e de quem mais se lembrava dela. Agora voltou a abrir, mas a remodelação deu cabo do espaço e continua sem os cliente que levaram ao seu fecho... As mesas de madeira, os bancos acolchoados, os espelhos na parede, a intimidade ar um pouco escura, tudo foi varrido pela alvura de uma decoração século XXI, por um tom demasiado branco e cru de paredes e tecto, lancinante ao olhar e avesso ao resguardo do cliente. Vá lá que mantiveram o painel, mas agora, única mancha de cor e sofisticação em toda aquela modernidade em série, parece um fresco melancólico que desbota na sua tristeza de exilado.   

Fotografia que antecede o texto: © Pedro Serrano, Viseu 2013.





11 julho 2013

A NOÇÃO DOS BLUES


Aquilo era um jantar festivo, comemorativo de um empreendimento que terminara bem e o local, (Kintal da Música, restaurante com música ao vivo, em Cabo Verde) propício a estados felizes.
Sentado entre o Mário (da Guiné Bissau) e a Luz (de Cabo Verde) dei por mim surpreso ao reparar que, no alheamento de quem ouve música, o olhar deles, assim como o do Nicolau (outro da Guiné, sentado em frente) era infinitamente triste, de uma tristeza que sobrenadava mal eles  esqueciam a exaltação conveniente a comemorações.
Depois, até o comentei com o Paulo que, atento como é, se dera conta do fenómeno com igual espanto. Pois não são os pretos – os de gema ou os descendentes dos exportados à força – os reis da efusividade, da alegria, da animação contagiante que transparece em algumas das suas manifestações musicais? Sim... mas há o reverso da medalha: os blues americanos, uma expressão musical que deixa escapar – além das fronteiras das contrariedades humanas – a tristeza essencial do ser, de algo que se perdeu mesmo que nunca se tenha tido... Ou, já que ali estávamos no Kintal, o à beira das lágrimas das mornas cabo-verdianas, essa suprema forma de melancolia sonora, exactamente do tom que sobrava nos olhos virados para dentro do Mário, da Luz e do Nicolau. E como raio, espelho meu, estaria o olhar que me dizia respeito?
Pois, caros ouvintes, vem o extenso prólogo a propósito de um nome que vos aconselho a fixar e procurar ouvir: Gisela João, Gisa para os íntimos em Barcelos, onde nasceu.
Gisela tem vinte e nove anos e deu por si a cantar fado de um forma irreprimível quando tinha nove e lavava a louça numa banca mais alta do que ela. Ouvi falar no nome numa entrevista do Público e, mesmo sem a ouvir cantar uma nota, gostei do entusiasmo do repórter e, sobretudo, das respostas inteligentes que ela dava às perguntas. Como se pode ficar indiferente a alguém que percebeu o que são os blues e os tenta relacionar com o padrão do fado, quem chegou ao entendimento do que há de especial no cantar de Billie Holiday, de Frank Sinatra ou de Ella Fitzgerald?

Procurei o primeiro disco dela – acabado de sair – no Corte Inglés, mas ainda não tinham recebido. Desci ao Chiado num fim de tarde esbaforido de calor e encontrei-o na Fnac. A produção gráfica do CD (da Valentim de Carvalho) é tenebrosa e a parte técnica deixa a desejar, pois a voz é mal captada sempre que a cantora sussurra. É Portugal no seu melhor, ao desleixar um momento que devia tratar com o cuidado que merece o aparecimento de uma cantora muito, mas muito especial. Não estamos perante mais uma menina que aprendeu os tiques e a pose do fado: esta senhora canta no registo que nos faz arrepiar a pele da alma. Gisela João, registem, alguém que aos nove anos de idade deu por si a preferir e a cantar o “Que Deus Me Perdoe” enquanto tomava conta dos irmãos mais novos e que, sobre isso, nos diz:
“Eu estava sempre a rir, e tinha de estar bem-disposta por causa dos meus irmãos, era eu que tomava conta deles, mas sentia aquela coisa cá dentro, triste...”

Fotografia de cima: Kintal da Música, © Pedro Serrano, Santiago (Cabo Verde), Março 2011.