Ia ao King Triplex, ali numa
transversal da avenida de Roma, ver uma fita e, por comodidade, escolhi ir
jantar a um restaurante em que, de algumas das mesas, se vê a bilheteira do
cinema.
Sentei-me, pedi secretos de porco com
salada (eles servem uma salada de alface com coentros, combinação muito feliz)
e fiquei-me a responder a uns SMS atrasados.
Estava nisto quando senti perto de mim
o raspar de cadeiras a ser afastadas. Olhei: na mesa ao lado estavam a
sentar-se dois tipos, ambos engravatados e com aquela palidez acinzentada de
quem passa os dias em gabinete equipado com janelas anti-suicídio. Um deles –
o que exalava o ar mais importante, a estourar num fato novo como sapatos
apertados – relanceou em volta um olhar onde se misturava a importância da figura
que espera ser reconhecida com a paranoia do poder estar a ser escutado.
Abstraí-me no ecrã do Nokia e passado o tempo conveniente voltei a espiolhar,
pois estavam entretidos nas ementas. Eu bem me parecia que conhecia uma
daquelas caras! Era um dos novos secretários de estado da Saúde, um parceiro
vindo directamente do Norte profundo onde, tinha uma ideia vaga, estava ligado
ao turismo rural ou assim... Quanto ao outro, percebia-se pela pose, pelo modo
como segurava com contenção o menu na vertical aguardando que Sua Exc.
decidisse, estava ali para servir de espelho meu e, à sobremesa, se tivesse encarnado
o ouvinte perfeito, beneficiar de espaço para poder apresentar o seu empenho, pagar
o jantar.
Antes mesmo de Sua Exc. mover o pescoço
e lançar um novo olhar paranoico sobre a sala, já eu fixava a montra do
restaurante e olhava o exterior com o ar desalentado de quem vê chuva cair.
“Que é que o Senhor Doutor vai querer
beber?”, interessou-se o subalterno, enquanto o empregado esperava, paciente e ciente
de que aqueles tinham uma aura de Jornal da 1.
“Vinho, claro, comemoremos...”
“Branco, tinto...?”
“Prefiro tinto e, já agora, de
preferência lá de cima...”, incitou o outro num acesso emocionado,
recém-chegado à capital mas já atolado nas saudades de vacas pastando
livremente.
Olhei o relógio, pedi um café. Eram nove
e dez, ainda era cedo e queria reter-me por ali até ao limite, pois – graças ao
laminado de presunto e ao Duas Quintas
– os meus vizinhos descuravam o tom abafado de comunicação e banhavam-se agora
no sentimento dourado de quem está bem-na-vida e ainda espera vir a ficar
melhor.
“Ó, homem, confesso que para mim foi de
surpresa em surpresa! Inscrevi-me nas listas por insistência do presidente da
distrital, já nas últimas! Era o quinto por Bragança, imagine se alguém pode
esperar alguma coisa nesta posição, com o que davam as sondagens. Mas esta
maioria foi um jekpote! Na noite das eleições, na TV, comecei a ver os votos a
cair, as barrinhas dos gráficos a subir, e os deputados do partido a saltar
como castanhas...”
O outro aquiescia, também esperava
vitória mas nunca tão expressiva...
Eram nove e vinte e cinco, tinha de me
pôr a andar, pedi a conta. Na mesa ao lado, o novel secretário de estado
afadigava a faca de serrilha sobre o costeletão de vitela e, de garfo no ar,
comparava:
“Não está mau, mas ao pé da posta
mirandesa... Ainda tem de comer muita broa, muita broa.”
O companheiro concordava que, de
facto, alguma broa devia ser reposta...
“E uma noite – até estava sentado a
ver a novela com a minha esposa, estive para não atender – toca o telefone, era
o novo Ministro...”
O outro arrepiou-se com a
possibilidade:
“Caramba...”
O escolhido olhou em volta,
inclinou-se sobre a mesa, confidenciou:
“Até àquela data eu só tinha
trabalhado na Segurança Social, percebe? E um bocadito naquele programa do
Desenvolvimento Rural... Na Saúde é que nunca, nada... Mas foi o que me
calhou!”
O outro acenava com a cabeça, admitindo
que há milagres assim.
Eram 21:32 quando cruzei a porta do restaurante.
Atravessei a rua a correr, desviando-me do carro de vidros fumados que,
estacionado sobre a passadeira, esperava.
© Fotografias de Pedro Serrano: (1) Barcelona, 2012; (2) Viseu, 2013.