24 julho 2013

EM ROMA, SÊ ROMANO


Ia ao King Triplex, ali numa transversal da avenida de Roma, ver uma fita e, por comodidade, escolhi ir jantar a um restaurante em que, de algumas das mesas, se vê a bilheteira do cinema.
Sentei-me, pedi secretos de porco com salada (eles servem uma salada de alface com coentros, combinação muito feliz) e fiquei-me a responder a uns SMS atrasados.
Estava nisto quando senti perto de mim o raspar de cadeiras a ser afastadas. Olhei: na mesa ao lado estavam a sentar-se dois tipos, ambos engravatados e com aquela palidez acinzentada de quem passa os dias em gabinete equipado com janelas anti-suicídio. Um deles – o que exalava o ar mais importante, a estourar num fato novo como sapatos apertados – relanceou em volta um olhar onde se misturava a importância da figura que espera ser reconhecida com a paranoia do poder estar a ser escutado. Abstraí-me no ecrã do Nokia e passado o tempo conveniente voltei a espiolhar, pois estavam entretidos nas ementas. Eu bem me parecia que conhecia uma daquelas caras! Era um dos novos secretários de estado da Saúde, um parceiro vindo directamente do Norte profundo onde, tinha uma ideia vaga, estava ligado ao turismo rural ou assim... Quanto ao outro, percebia-se pela pose, pelo modo como segurava com contenção o menu na vertical aguardando que Sua Exc. decidisse, estava ali para servir de espelho meu e, à sobremesa, se tivesse encarnado o ouvinte perfeito, beneficiar de espaço para poder apresentar o seu empenho, pagar o jantar.
Antes mesmo de Sua Exc. mover o pescoço e lançar um novo olhar paranoico sobre a sala, já eu fixava a montra do restaurante e olhava o exterior com o ar desalentado de quem vê chuva cair.
“Que é que o Senhor Doutor vai querer beber?”, interessou-se o subalterno, enquanto o empregado esperava, paciente e ciente de que aqueles tinham uma aura de Jornal da 1.
“Vinho, claro, comemoremos...”
“Branco, tinto...?”
“Prefiro tinto e, já agora, de preferência lá de cima...”, incitou o outro num acesso emocionado, recém-chegado à capital mas já atolado nas saudades de vacas pastando livremente.
Olhei o relógio, pedi um café. Eram nove e dez, ainda era cedo e queria reter-me por ali até ao limite, pois – graças ao laminado de presunto e ao Duas Quintas – os meus vizinhos descuravam o tom abafado de comunicação e banhavam-se agora no sentimento dourado de quem está bem-na-vida e ainda espera vir a ficar melhor.
“Ó, homem, confesso que para mim foi de surpresa em surpresa! Inscrevi-me nas listas por insistência do presidente da distrital, já nas últimas! Era o quinto por Bragança, imagine se alguém pode esperar alguma coisa nesta posição, com o que davam as sondagens. Mas esta maioria foi um jekpote! Na noite das eleições, na TV, comecei a ver os votos a cair, as barrinhas dos gráficos a subir, e os deputados do partido a saltar como castanhas...”
O outro aquiescia, também esperava vitória mas nunca tão expressiva...
Eram nove e vinte e cinco, tinha de me pôr a andar, pedi a conta. Na mesa ao lado, o novel secretário de estado afadigava a faca de serrilha sobre o costeletão de vitela e, de garfo no ar, comparava:
“Não está mau, mas ao pé da posta mirandesa... Ainda tem de comer muita broa, muita broa.”
O companheiro concordava que, de facto, alguma broa devia ser reposta...
“E uma noite – até estava sentado a ver a novela com a minha esposa, estive para não atender – toca o telefone, era o novo Ministro...”
O outro arrepiou-se com a possibilidade:
“Caramba...”
O escolhido olhou em volta, inclinou-se sobre a mesa, confidenciou:
“Até àquela data eu só tinha trabalhado na Segurança Social, percebe? E um bocadito naquele programa do Desenvolvimento Rural... Na Saúde é que nunca, nada... Mas foi o que me calhou!”
O outro acenava com a cabeça, admitindo que há milagres assim.
Eram 21:32 quando cruzei a porta do restaurante. Atravessei a rua a correr, desviando-me do carro de vidros fumados que, estacionado sobre a passadeira, esperava.

© Fotografias de Pedro Serrano: (1) Barcelona, 2012; (2) Viseu, 2013.

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