25 dezembro 2015

O FIEL AMIGO

Depois que deixei a casa dos dos meus pais para morar longe, costumava receber, por Dezembro, um telefonema do meu pai a informar:
“Passou aqui o teu amigo Fernando a deixar uma encomenda para ti.”
Quando chegava ao Porto, lá estava, na cave, equilibrado a um canto da despensa, um grande embrulho, atado por corda e com formato de espantalho, e um jerrycan, de cinco ou dez litros, onde, através da opacidade do plástico, se conseguia adivinhar um líquido grosso, lento ao movimento, esverdeado.
Era a lembrança de Natal do Fernando, consistia num bacalhau (inteiro e teso no seu leito de sal como uma ministra das finanças) e num garrafão de azeite. Tudo quanto era preciso para assegurar uma boa consoada para além das intenções. As batatas, as couves, eu que as arranjasse que um amigo não pode fazer tudo!
Sempre um pouco surpreso – quem mais fazia uma coisa daquelas numa época daquelas? – telefonava a agradecer o presente, a dizer “Fernando, és maluco, para que estiveste...”. E, do lado de lá do fio, ele quase se desculpava, embaraçado pela generosidade que eu punha a nu naquele momento.
O meu pai morreu, a casa foi fechada e por mais uns pares de anos era uma das minhas irmãs que, já pesava Dezembro, telefonava a comunicar “passou aqui aquele teu amigo, a deixar uma encomenda. Onde queres que a ponha? O embrulho cheira um bocado…”
“Eu sei, é bacalhau...”, respondia, pois ele telefonara-me previamente, a saber onde havia de entregar o presente nesse ano. “Arruma aí onde puderes, que eu passo a buscar mal possa...”
Este ano, não recebi o usual telefonema a desejar bom Natal do Fernando. Apesar do grande esforço, das campanhas a oferecer telemóveis desbloqueados e pacotes de chamadas grátis, as companhias telefónicas ainda não conseguiram que os cemitérios aderissem ao seu esforço para por todos os portugueses em contacto na quadra natalícia. Fiquei às escuras, e não me restou alternativa à de pegar no telefone e ligar a saber como ia tudo lá por cima, junto da família que ele deixou em Setembro, quando decidiu mudar-se para paragens onde o bacalhau é sempre espiritual.
© Fotografia de Pedro Serrano, Aveiro, Novembro 2015.


03 dezembro 2015

NOI

Noi é supervisora nos restaurantes do hotel, o que não a resguarda de a encontrarmos transportando pesadas bandejas de comida e bebida para a  piscina. Há sempre quem prefira fazer as refeições por ali, há até aqueles que ordenam as bebidas de dentro de água para que as suas férias correspondam ao sonho que viram na TV, para que possam tirar uma fotografia que, mais tarde, desencadeie nos amigos um revirar de olhos e um suspirado “deve ser paradisíaco!” ao ver o copo da piña colada pousada no rebordo da piscina.
Noi - o nome significa pequeno em tailandês, é de uma pequena cidade a escassos quilómetros da fronteira com o Laos e veio para o sul atrás de um emprego; deixou toda a família no norte, apenas trouxe com ela a pequena Pitchie que, agora com três anos, era na altura ainda um bebé de mama. Mais tarde, Pitchie ficou com a avó materna e Noi regressou sozinha ao resort onde ainda trabalha, mas todos se deram mal com a distância e as saudades e agora a avó de Pitchie reside também em Samui, toma conta da neta enquanto a mãe trabalha.
Noi trabalha no hotel nove horas por dia, às vezes dez horas por dia. Quando comentamos que é muito (o salário por aqui ronda os 190 euros mensais), ela não concorda, diz até que quando faz o regime de 10 horas diárias tem direito ao fim de semana de folga. Noi está explicitamente muito contente com o trabalho que conseguiu arranjar e manter, e fala dos patrões com respeito e reconhecimento: quando estão de serviço os empregados comem no hotel e têm acesso até quatro refeições por dia, pequeno-almoço, almoço, jantar e “como se diz quando se come tarde, à noite?”
Para além da ceia – Noi refere a distinção seguinte quase em voz sussurrada – pode gozar 6 dias de férias por ano. Noi, uma rapariga grácil, inteligente e atenta ao mundo à sua volta, tem consciência de que é uma privilegiada, que teve sorte na vida:
“Na Índia e na China não é nada disto; até aqui, na Tailândia, isto não acontece em todo o lado. Há quem trabalhe doze horas e não tenha direito a refeições, a folgas ou a férias.”

A satisfação rasga-lhe os olhos e os lábios quando, como uma abelha mestra, ciranda incansavelmente entre mesas ou recebe as pessoas à entrada da Sala Thai, o requintado restaurante tailandês do hotel onde a reencontramos todas as noites, juntando as mãos e elevando-as num gesto de prece, uma saudação que, por estas bandas, significa “curvo-me perante ti”. 
Sairá daqui às dez ou onze da noite e, ao chegar a casa, encontrará a pequena Pitchie já a dormir. Tem sorte, pois a menina honra o nome que lhe deram, o qual, na língua tai, é equivalente a “plácida”. Pitchie é alcunha, uma corruptela inglesa de “Peaceful”. É que, bem veem, Noi tem de falar e pensar em inglês a maior parte do seu dia.
© Fotografias de Pedro Serrano, Koh Samui (Tailândia), Dezembro 2015.

27 novembro 2015

CUIDADO AMBIENTAL

Mercado flutuante, arredores de Bangkok (Tailândia), © Fotografia de Pedro Serrano, Novembro 2015.

19 novembro 2015

SERÃO NUVENS, SERÁ NEVE?

Cordilheira dos Himalaias, © Fotografia de Pedro Serrano (dentro do avião), Novembro 2015.

17 novembro 2015

07 novembro 2015

OS 4 CANTOS DO ARROZ

Que pontas poderão ligar uma ilhota no Atlântico, um apartamento na zona velha de uma cidade, uma antiga casa judia na Índia, e o dorso de uma galinha? A resposta matraca-se em duas sílabas: arroz.
Quando em, 1977, saí de casa e comecei a trabalhar não sabia sequer cozer um ovo. Durante dois anos (tempo que morei em Guimarães) essa incapacidade resolveu-se por si própria: todos os dias comia fora e a cozinha das casas onde morei era uma peça pouco frequentada, de armários vazios. Mas, no terceiro ano, fui voluntariamente desterrado para uma pequena ilha dos Açores, Graciosa de seu nome. Aquilo era tão pequeno e pouco frequentado que não havia um restaurante, comia-se em casa de uma senhora, contratada para nos confeccionar as refeições. Todos os almoços, todas as santas noites, a dieta oscilava entre o peixe frito com arroz e a carne rija com arroz, coitada da D. Irene, era um desastre na cozinha e na imaginação. Desesperados – eu e o colega e amigo com quem morava – fomos postos perante o terrível facto: se queríamos comer melhor devíamos aprender a fazê-lo. Mas como? Como percorrer o longo caminho entre a galinha viva, que nos tinha oferecido um doente agradecido, e o fricassé de frango? Lembro-me de, numa cena nojenta, lhe serrilhar o pescoço com uma faca de mato romba e de a ver arfar enquanto esperava que me decidisse: a bicha era asmática! Matá-la foi, apesar de tudo, o mais fácil, mas quando chegou a hora de lhe despejar água a ferver em cima, para depois conseguir arrancar as penas... Meu Deus, o cheiro nauseabundo a autocarro cheio em dia de chuva e as milhares de penas que forram uma galinha! E ainda faltava abri-la, sacar as vísceras, parti-la em pedaços, etc. Acabou no lixo, semi-depenada e desonrada, a pobre, a milhas de ser comida como merecia...
Uma dessas noites de desespero, levantei o auscultador e, logo que ela apareceu do lado de lá, pedi à telefonista que me ligasse para casa dos meus pais.
“Mãe, como se faz arroz?”
Por entre estalidos transatlânticos a minha mãe começou a explicar o processo, mas aquilo pareceu-me demasiado moroso e chato para seguir os pormenores com atenção e o que resultou da primeira tentativa foi uma massa informe, aglutinada, ainda pior do que o arroz que a D. Irene nos cozia a todas as refeições, aquecendo para o jantar o que sobrava do almoço pelo método de o meter, dentro de um coador, num tacho com água a ferver!
Por esses dias recebi carta de casa, uma longa missiva onde a minha mãe, numa prosa poética que citava Jorge Amado para referir a cor que devia revestir a cebola num estrugido perfeito, passava a escrito as etapas de confeccionar um arroz, simples, seco. Aquilo tinha que se lhe dissesse e o principal segredo, revelava ela, era a relação entre a quantidade de grão usado e o volume de água em que seria cozido. Vital, aprendi, é o principal para se chegar a bom termo.
Um par de anos mais tarde, já eu me vangloriava de saber fazer arroz, propus-me fazê-lo para um jantar em casa de amigos recentes, amigos que moravam numa transversal de Mártires da Liberdade, uma rua velha, estreita, de telhados desirmanados e procurando beijar-se por sobre a linha do eléctrico, o adereço mais luminoso da rua. Comigo, na pequena cozinha do apartamento, estava a Alice, a dona da casa, cirandando pelos outros pormenores do jantar a vir. Às tantas, vendo-me pousar a tampa do tacho e reduzir o lume para o mínimo, comentou suavemente:
“Primeiro tens de o deixar levantar fervura e mexê-lo bem, só depois é que o pões no mínimo...”
Tenho a certeza, absoluta e seca como um gin, que a Alice não reteve esse instante mais do que ele foi – um instante – mas eu, ainda hoje, me lembro desse conselho quando espero, pensativamente virado para baixo, que a água, que já se tornou opaca pelo pó que se soltou do arroz, borbulhe, alegre e arrancada à modorra das águas paradas.
Passaram décadas, décadas, é noite e estou a ver a namorada do meu filho a cozinhar um jantar em minha casa, uma retribuição pelos dias a fio em que cozinhei para eles. Ye, é chinesa e quando lhe perguntei de onde, e não sendo a explicação nenhuma das clássicas Pequim, Xangai ou Hong-Kong, ela relembrou que o mapa da China tem a forma aproximada de uma galinha e que a cidade dela é bem no meio do dorso da galinha, na encruzilhada onde nascem as asas.
“Ah...”, digo, enquanto vamos falando dos modos de fazer arroz, eu muito atento, pois se há alguém que sabe fazê-lo como deve ser são os chineses e os indianos.
“A minha mãe...”, diz ela, e vai contando detalhes que nos são totalmente estranhos, mas me fazem aperceber o cuidado detalhado – entre o estético e o funcional – com que aquela gente concebe tudo. “E pronto”, continua ela, “agora não se pode mais abrir”, remata ao pousar a tampa sobre a enorme panela onde pôs a fazer arroz.
“Ai, é?”, pergunto, “vocês nunca mais abrem a tampa até estar pronto?”
“Não!”, retorquiu ela, quase indignada com a simples menção a essa possibilidade, “é o segredo de um bom arroz: manter o vapor sempre preso.”
“Ah”, digo eu.
E foi o que aprendi sobre a essência de fazer arroz, ao longo dos anos. É certo que houve pormenores que aprendi por observação própria e que dou por mim a transmitir a outros que estão mais ou menos na fase de o aprender a fazer e se interessam por isso. Por exemplo? Por exemplo: a quantidade de água (medida numa chávena – de preferência sempre a mesma – ou num copo – de preferência sempre o mesmo) deve ser o dobro da quantidade do arroz, mas esta regra só funciona bem para 1 medida. Se usarmos 2 chávenas de arroz, em vez de 1, a quantidade de água já não serão as 4 chávenas de água de um dobro, mas, mais ou menos, 3. E por aí fora. Isto é: à medida que a quantidade de arroz que necessitamos cozinhar aumenta, a proporção de água a juntar não cresce no dobro inicial, o acrescento em água medra mais lentamente.
E vou-me, deixo-vos com a receita de um arroz, simples, sem recheios ou acrescentos de espécie alguma, seco, pois ele poderá também ser produzido na versão solto ou malandro, como também se chama nalgumas zonas do país ao arroz que se esbarronda e escorrega no prato.
E a Índia? Qual Índia? A velha casa judia na Índia. Ah! Pois isso tem a ver com o sítio onde eu comi, provavelmente, o melhor arroz seco da minha vida; quem me dera ir lá hoje pedi-lo outra vez. Só que aquilo é longe como burro, mesmo em termos indianos. Foi em Cochim, no Sul, a uns 300 km de Goa, numa pequenina e velha terra onde morou o Vasco da Gama. A pouco mais de uma centena de metros da casa dele, agora um café, transformaram a velha mansão de um judeu num  hotel de meia-dúzia de quartos, e no menu do Menorah, o restaurante do hotel, constava uma coisa chamada “lemon rice”. O nome atraiu-me, e mandei vir, ó suprema inspiração! Serviram um arroz maravilhoso, sequinho, solto, levemente amarelado e recendendo uma fragrância de limão de perfume superior. Na Índia, aquilo a que chamam limões parece aquilo a que nós chamamos limas, são mais pequenos e mais verdes do que amarelos. E é com isso que temperam o arroz imediatamente após terminar a cozedura: passam-no, muito rapidamente, por uma frigideira sem gordura onde colocaram meio-limão. O resultado é um primor, deixo aqui o endereço para que possam vir a provar o que falo, pois não é prato que se consiga reproduzir sem ofensa: Koder House, Fort Kochi, Índia.

ARROZ (os básicos. Para 3/4 pessoas)
Ingredientes
1 chávena de arroz
2 chávenas de água
½ cebola média
óleo de amendoim (até cobrir, em muito fina camada, o fundo do tacho)
sal (q.b.)
Confecção
1. Ponha um pouco de azeite ou óleo no fundo de um tacho (recomendo o óleo, pois invadirá menos o sabor do arroz do que o azeite e, dentro dos óleos, o de amendoim, uma vez que é o que melhor resiste ao aquecimento) e acrescente a cebola, picada, ou em pequenos pedaços muito finos, quando o óleo já estiver a aquecer.
2. Deixe alourar a cebola e, ao falar em alourar, quero dizer deixá-la atingir uma cor amarela, não muito carregada (dourada, de mel de rosmaninho), o que se consegue um pouco antes de a cebola começar a encarquilhar no tacho e a queixar-se cheirando. Deixá-la frigir mais do que isso tornará o sabor do arroz mais intenso – mais próximo do que lhe poderão servir numa roulotte de bifanas – e fará aparecer à superfície do mesmo uns destroços esturricados. Terá de ir mexendo e vigiando a mistura permanentemente, não é conveniente ir fazer outra tarefa durante esta fase, pois o ponto óptimo de cozimento da cebola atinge-se rapidamente.
3. Quanto ao arroz, pode deitá-lo directamente dentro do tacho, sem o demolhar previamente. Prefiro, aliás, esta modalidade de ir misturando (em lume médio) o grão com a cebola e o azeite, fritando-o muito ao de leve, mais um braseamento – que amolecerá a superfície dura e polida, preparando-a para a penetração da água, – do que uma fritura.
4. Um ou dois minutos depois deite a água, de uma vez só, e mexa sempre até que o arroz esteja completamente solto no seio da água, como se se tivesse dissolvido. Quando levantar fervura deixe que ela cante, forte, e, só então, tape e ponha o lume no mínimo. Estará pronto quando toda a água se tiver evaporado.
5. Quanto ao sal: pouco, muito pouco, para além do mais faz mal à saúde. Os indianos, os chineses, os japoneses, não usam geralmente sal nenhum e o arroz que põe à mesa é maravilhosamente insípido: o que sobressai ao paladar é, apenas, o sabor suave e requintado do arroz.


© Fotografias, de cima para baixo: (1) Pedro Serrano, Cochim (Índia) 2012; (2) Rui Dessa, Graciosa (Açores) 1979; (3) Pedro Serrano, Ribeira de Pena 1982; (4) (5) Pedro Serrano, Cochim (Índia) 2012.

04 novembro 2015

22 outubro 2015

O PROVADOR-MOR

Ei, Passos Coelho! Ei, António Costa! Levantam, por um momento, os olhos da papelada e observem o fenómeno que se mostra às vossas janelas. Porra! Já passou; ei-lo que sobrevoa os céus sobre Vila Franca de Xira, ajustando a visão de raios-X às chaminés que vomitam os seus fumos cinzentos no azul. Registou e continua, não tem tempo a perder, o seu rumo é determinado por um único fito: Portugal à Frente! Vai, a caminho do norte inclemente, restituir a confiança, abalada naquele canto do país pelas consequências de acontecimentos funestos, porém reparáveis.
Há dias, um perigoso surto de botulismo (uma doença neurológica, prima agravada do Botox, e gerada por conservas mal produzidas) afectou as alheiras de Mirandela, pôs uma meia-dúzia de portugueses entre a vida-e-a-morte e, sobretudo, abalou a confiança naquele produto regional certificado (verifique sempre o brinco de chumbo que atesta a origem), um ex-libris da zona e do país. Não, a coisa não podia ficar assim e ver aquelas quebras de 80 % nas vendas era de partir o coração, sobretudo com um ministro da Economia demissionário, ou quase. Era preciso agir. Murmurou entredentes Portugal à Frente/Recuperar a Confiança! e dizendo à secretária “vou sair em serviço”, mas sem precisar o destino, desceu à cabine telefónica na qual costuma fazer a  mudança de traje e onde guarda as Super-capas. Esta manhã escolheu a de Provador Oficial e aí vai ele, esticando o braço e fechando o punho, para ganhar impulso na descolagem, e já fazendo uma graciosa curva em seta no céu alaranjado da enclítica manhã: é que tem de estar no Palácio dos Távoras ao meio-dia-e-meia, foi essa a hora combinada, para degustar a Simbólica Alheira perante as câmaras, as Municipais e as Outras.
Um jornalista, infeliz na alegoria, comparou o feito à iniciativa anterior de um ministro da Agricultura, que ingerira uma perigosa mioleira em tempo de vacas-loucas. O Provador Oficial não gostou da comparação: “esse risco não era zero, mas o da alheira é nulo.” Nada como a segurança de um risco nulo para se ser herói sem perigo, mas, arriscaríamos inferir que, face a tal coragem e temperamento – ao contrário do obscuro e esquecido ministro – o nosso Super-Heroi poderia também, sem a surpresa de mudança, ter ingerido sem perigo a tal mioleira assanhada. São os desta fibra que se vão do decreto-lei da morte libertando.  
E enquanto nos perdemos aqui em considerações palavrosas, estéreis  e supérfluas, eis que já se fita o céu em Trás-os-Montes, já se apertam os botões dos casacos e se endireitam as gravatas: é ele que chega a tornar a alheira saudável.

08 outubro 2015

BACK IN THE U.S.S.R. (you don't know how lucky you are boy)

Dos russos, diz-nos a caricatura que são excessivos. Excessivos nas emoções, no dramatismo dos gestos, na avidez pelas pelas bebidas destiladas...
T. chegou ao encontro um pouco atrasado ao nosso encontro, explicou o motivo:
“Sou médico do embaixador da Rússia e ontem o gajo meteu-se nas comidas picantes, bebeu demais, está com uma crise tremenda de hemorroidal... O desgraçado nem se consegue sentar, não tem posição, não dormiu a noite inteira!”
“E tu que lhe receitaste?”, interessei-me, já a pensar em lhe fornecer a minha solução milagrosa para aquilo, caso ele não a conhecesse.
T. receitara-lhe as pomadas e os comprimidos do costume, solução muito demorada para quem está sobre chamas. Hemorroidas assanhadas ou encravadas podem ser um inferno na terra pela dor, comichão, falta de posição, completa captura do pensamento e da vontade! É coisa para se desejar ao pior inimigo!
“Não conheces o método da luva?”, perguntei então. Ele não conhecia.
“Pegas numa luva cirúrgica, de borracha, enches de água e dás um nó no sítio do punho, para vedar aquilo. Depois pões a congelar, com o cuidado de que um único dedo fique esticado e os outros dobrados...”
Em seguida, em tom chocarreiro, sugeri que o dedo a escolher deveria ser o indicador ou o médio, pois o mindinho era muito curto e o polegar muito grosso... T. riu; já tinha antecipado o restante procedimento, mas quis saber detalhes. Forneci-lhos com gosto:
“Depois mandas o gajo deitar-se e enfiar aquilo entre as nádegas – é o segredo do dedo, de que outro modo conseguirias tu levar gelo ao olho do cu, lá tão ao fundo da estreita ravina?. Ele que encoste ao esfíncter a ponta do dedo, devagarinho, e deixe estar o tempo que aguentar. E vai repetindo o procedimento, até aquilo estar resolvido...”
T. estava entusiasmado com a ideia, dizia:
“Vou já telefonar ao homem... mandar à embaixada uma enfermeira que o ajude a fazer aquilo.”
Igualmente entusiasmado, eu discorria sobre as razões que tornavam aquele método tão democraticamente acessível e eficaz:
“O gelo é um analgésico imediato, incomparável: mal o dedo gelado toca no cu, deixas de sentir a zona. E, para além disso, tem um efeito anti-inflamatório poderoso, reduz o tamanho daquilo rapidamente, faz com que tudo possa voltar para dentro... E o facto de o frio queimar um pouco aquela pele é igualmente positivo: faz com que ela descame e seja substituída por uma nova...
Mas T. já estava ao telefone a falar com o russo, com a mão aberta pedia que me calasse um pouco, para entender o outro melhor, poder concentrar a atenção nas perguntas do diplomata, feitas num português matrioskónico.
Na manhã seguinte, T. apareceu, sorridente, a dar novidades sobre a evolução das coisas no bloco Leste:
“Eh, pá, o gajo está mesmo agradecido, parece outro. Estava tão estafado do sofrimento que adormeceu como um bebé e dormiu a noite inteira! Diz que já não lhe dói nada, está um pouco dorido mas está como novo...
Recostei-me na cadeira, satisfeito por ter levado paz à alma russa, por ter contribuído – a modesta escala, é certo – para o estreitamento das relações entre os nossos três países. 
Fotografia de cima: © Pedro Serrano, Bissau (Guiné), Outubro 2015.

Nota: "Back in the U.S.S.R." é uma canção de Lennon/McCartney, 1968, do álbum The Beatles.

03 outubro 2015

UM MUNDO MELHOR

A sede da Ordem dos Médicos funciona provisoriamente em instalações cedidas pela farmácia Rama.
As instalações, sala e pequeno anexo, são, respectivamente, a antiga marquise e cozinha de uma velha moradia colonial, uma daquelas alegres casinhas que os portugueses de classe média construíam nos trópicos, um novo lar, a relembrar na traça e arrebiques as casas que tinham deixado, mas adaptando-se já ao exílio no telhado prolongado em alpendre – a defender os habitantes do sol impiedoso – ou nas paredes perfuradas para promover toda a ventilação possível.
A entrada, couraçada por uma espessa porta de metal e um grosso cadeado, deita para um pátio em que ainda se reconhece o coradouro e os arrumos, e onde agora uma família de pai, mãe e filho fazem a extensa parcela ao ar livre da sua vida. Há também um altivo garnisé macho e respectiva franga. Curiosa, como todas as do seu sexo, esta aparece às vezes na ombreira da porta a espreitar as reuniões, enquanto o companheiro, indignado, obriga a pausas nos trabalhos até que o seu canto estridente deixe de se sobrepor aos diálogos.
Já passa das quatro da tarde e enquanto espero que cheguem os outros, sento-me num banco de madeira que existe no pátio, vizinho da esteira onde o locatário e filhito dormem a sesta e um dos rapazes que apoia o funcionamento da Ordem, às devidas horas e depois de lavar os pés com a água de uma garrafa, se ajoelha de empréstimo, virado a leste, para dirigir a Alá as suas preces.
Olho noutra direcção, a resguardar a sua intimidade: do lado de lá da rua é o hospital principal do país e entre mim e ele, a um metro do muro, na berma da rua sem passeio, amontoa-se, a céu aberto, o lixo das redondezas. Com excepção dos resíduos de tipo IV (radioactivo, quimioterapia e outros venenos classificados), todo o restante lixo hospitalar vem parar a lixeiras destas, onde se entrelaça ao lixo doméstico, pelo que é possível ver restos humanos, como tripas, dedos,  ou pernas amputadas, a serem violentamente negociados entre os cães e os abutres que vasculham o lixo da cidade.
“Hoje está um calor do caraças...”, desabafo a T., que chegou agora, como se ontem ou anteontem tivesse estado fresco.
“Yá, é das chuvas... Viste o que choveu ontem à noite? A água cai no chão, encharca, depois evapora com o calor, cai mais água de cima e nós no meio a levar com aquilo tudo, sem ter para onde fugir!”
T. é muçulmano e, por isso ou até por isso, um tanto fatalista, embora essa característica não o impeça de esbracejar por um mundo melhor para o país dele. Sabe que é difícil, por vezes encolhe os ombros como se fosse impossível e o olhar cansa-se-lhe, entristece-se, a raiar a desistência. Mas não há volta a dar e estão a chegar outros para a reunião. Dentro da sala a luz é vermelha, tem a ver com a toalha encarnada sobre a comprida mesa de plástico que ocupa todo o espaço, com as cortinas que cobrem as janelas que separam a marquise do logradouro, onde o miúdo encheu e transporta um balde de água mais pesado do que ele, enquanto a mãe recolhe a roupa da corda e o pai atira grãos de arroz às galinhas.
Na sala, separada da farmácia por portas de madeira tristemente imóveis, cheira a remédio e uma solitária ventoinha espadana do tecto um abençoado ventinho, ameaçando fazer voar da mesa o papel solto no qual o miúdo dos vizinhos fez os trabalhos de casa da escola. 

A reunião acabou, os convidados dispersaram, lá fora o crepúsculo não trouxe o alívio que se espera dele e um calor húmido agride-nos como uma toalha molhada.
“Vamos tomar alguma coisa?”, proponho?
A umas dezenas de metros, numa rua de terra batida pontuada de mangueiras, o Comandante está sentado à sua esplanada como um soba destingido pelo sol. Dirige da cadeira todo o movimento do restaurante, dos numerosos empregados ao que há-de ver-se no ecrã de plasma amarrado a uma coluna, até às saudações que vai atirando a quem passa na rua. É alentejano, monárquico, destemperado, remoto descendente de Giraldo Giraldes – o Sem Pavor – e, apesar de ter jazigo reservado em Évora, está em África há tanto tempo, conhece-a tão bem, que não passa sem ela, sem o seu mato, as suas rolas, as suas pescarias; diria que sem a sua gente, embora se exprima – para padrões ocidentais sentimentalmente correctos – como um bruto.
“Levaram-me ontem à sua antiga quinta...”, resumo-lhe o meu passeio de Domingo à tarde.
“Ah, nem me fale nisso, aquilo já não é meu...”, responde ele no seu sotaque alentejano pausado e interrogativo, “esses cabrões roubaram-ma... vinte e nove milhões de francos para o caralho”, diz, abrangendo no esses o meu impecável acompanhante, médico e deputado da Assembleia Popular Nacional. T. ri-se, dá uma palmada amigável no ombro do outro.
Vamos sentar-nos na minha mesa predilecta, lá ao fundo, sob uma ventoinha, alegrada por uma toalha azul com uma miríade de figurinhas pretas. T. fala do Comandante com admiração e amizade. Por aqui toda a gente lhe conhece as idiossincrasias, a mansa loucura que insidiosamente embebe quem vive sozinho e longe dos da sua raça, e respeita a determinação, a iniciativa, o contributo do homem para o progresso local. T. aprecia os resistentes, o Comandante é desses. 
Lá longe, esparramado na sua cadeira, impedido de reagir rapidamente pelo porte volumoso, imponente como o dos hipopótamos do sul de que fala com temor e fascínio, o Comandante acabou de atirar uma das bases de palha entrançada onde se pousam os pratos ao gatito que anda por ali.
“Inácio, apanha aquilo por favor: o filho da puta do gato andava a ver se me caçava uma das lagartixas, coitaditas...”
Sorridente, Inácio, atravessa vagaroso o espaço e entra no canteiro a recuperar a rodela de palha.
O Comandante tem profundo apego às osgas que serpenteiam pelas traves do tecto da esplanada, pelos camaleões, por um sapo que canta no meio dos canteiros, a que se refere como o meu sapo e a quem gaba a beleza e utilidade.
“Ainda hoje de manhã o vi atravessar aqui o terraço, todo contente. Sabe que estes filhos da puta aqui têm medo de camaleões, os cabrões?”
“Ai, sim”, admiro-me, sentado em frente a ele, pois, ao fim de uma semana de chegado, distinguiu-me com um convite para acampar na mesa reservada, onde mais ninguém se pode sentar, onde sempre reside e come, partilhando-a apenas com alguns outros convidados, criteriosamente seleccionados entre brancos, pretos e mestiços.
“Sim! Acham que é bicho com feitiço ou assim... Divirto-me imenso a gozar as velhas: pego num e penduro-o numa orelha, ele fica ali, e elas todas fodidas, a resmungar...” E batendo com as mãos nas portentosas coxas, ri-se até às lágrimas, chama um dos empregados mais atados:
“Diz aqui ao senhor doutor o que faço eu com os camaleões...”
O homem, com o ar de quem se está a invocar assunto grave, confirma a história do brinco que muda de cor pendurado na orelha; eu pergunto o que acha ele disso.
“É muito perigoso...”, responde com a gravidade de quem teme pela vida do Comandante e até da sua, por andar perto e assistir a tais atrevimentos.
É aí, no café-restaurante, que amiúde encontro T. quando ali chego, sistematicamente à mesa do Comandante que, vendo-me frequentemente em companhia dele, comenta-o:
“Tipo muito sério e homem inteligente, homem competente. É um fula, sabia? Os fulas são gente séria, não são como a outra cambada de vigaristas e filhos da puta que por aí andam; alguns portugueses incluídos” E, baixando a voz, com comiseração: “Sabe que, durante a guerra civil, os cabrões de merda lhe mataram mais de vinte familiares chegados?”
Por trás do balcão, Inácio sorri o sorriso abrangente e caloroso de um Cristo perante os que não sabem o que dizem e Emília olha-me sem modificar a expressão, mas com uns olhos onde brilha um: “É assim, o meu patrão, que é que se há-de fazer...?” e há uma certa resistência, consciente e resignada, no modo como arrasta as chinelas e o andar no cumprimento das permanentes directrizes e interpelações do outro. Emília é de etnia Balanta e por isso animista, uma gente que, religiosamente falando, venera pedras, plantas e animais, pois tudo são manifestações divinas.
“Eu já te disse aí umas quarenta mil vezes que a colher é para estar fora do açucareiro, no prato, por causa da humidade... Mas vocês parece que não aprendem! Irra!”
Sentado lá ao fundo, como um branco recém-chegado, mirando, distraído, as aves raras da cooperação internacional que por ali param – e cuja presença faz com que o Comandante seja mais reservado nos comentários – sorrio, divertido, deixando cair para baixo da mesa pedacinhos de frango à cafreal, para proveito e delícia do gatito e da mãe, que vivem no recinto de casa e pucarinho.
“Doutor, os cabrões dos gatos estão a incomodá-lo? Inácio, vai ali enxotar os gajos...”
“Deixe estar”, interrompo, “gosto dos seus gatos...”
“Dos meus gatos?! Porra, eles não são meus, andam por aí...”, resmunga ele.
T. chegou e o Comandante, embora finja não se interessar, pergunta-lhe novidades da situação política: o país está – outra vez – sem Governo, a situação arrasta-se há dois meses e os dois principais partidos continuam sem se entender. T. suspira; andam ainda em conversações mas a coisa não dá em nada. O país todo parado, as pessoas exasperadas, indignadas, falam abertamente do tema: apaixonadamente, intensamente, ainda não foram atingidas pela indiferença da política que atacou o Ocidente. T., sentado à mesa do Comandante, rilhando uns rissóis de camarão com arroz de tomate, vai contando o que sabe, vai comentando o país, depois voa e fala do assunto enquadrando-o num contexto regional, a seguir plana para uma visão africana global; finalmente, numa abordagem  geoestratégica, fala agora da II Guerra Mundial, dos russos, dos europeus, dos americanos.
“E os militares”, pergunta alguém, “o que dizem eles?”
“Estão à espera, a ver o que dá...”
“Doutor, o senhor vai ver que isto ainda vai dar merda...”, confidencia o Comandante quando ficamos sozinhos. “Foi sempre assim; vai ver que isto não vai lá sem porrada, sem matarem três ou quatro gajos... E logo, os seus olhos vivos adquirem um brilho irónico, provocador:
“Depois quero ver como vai jantar, com os gajos aos tiros aqui na rua...”
“Acho que nessa altura é melhor o senhor mandar servir o jantar debaixo da mesa...”, digo, levantando-me e despedindo-me: “Até logo, obrigado por me ter cedido uma fatia da sua melancia...”
“Minha melancia?! Ora essa, a melancia está aí para os clientes...”
“Não foi o que a Emília me disse: quando lhe pedi ela disse-me que estava reservada para o patrão, que para nós, comuns mortais, só havia papaia e maracujá...”
“Emília...”, chamou o Comandante.
Mas Emília, avaliando com olhar rápido a premência do assunto, não se move: está entretida ao portão da esplanada a receber uma rapariga, que segura na mão um balde de plástico preto.
“É a Edi”, informa o Comandante com uma cintilação terna nos olhos, e logo esquecendo o momento anterior: “É quem cuida do porco da casa ali em frente, vem aqui buscar a lavagem... Coitadinha, tem uma variz enorme numa das pernas. Acha normal naquela idade, pode ser perigoso?”
“Numa perna só? Que idade tem ela?”
“Não sei, é muito nova, para aí uns... Ó Edi”, berra o Comandante, “anda aqui mostrar a tua perna a este senhor, que é médico...”
Muito envergonhada, a rapariga vem até à nossa mesa e reconheço-a no cacho de cabelos que lhe emolduram a face: tirei-lhe, logo num dos primeiros dias, uma fotografia que ficou uma beleza; quase por acaso, à queima-roupa; a cor de chocolate dela contra o rosado de um muro, as flores da camisola a contrastar com um fundo de verde das plantas locais. Por insistência repetida do Comandante, Edi arregaçou uma das pernas das calças elásticas e mostra-me a pele: tem, de facto, uma tremenda variz, unilateral, do joelho para cima, da grossura de um dedo, mas, descubro que já foi diagnosticada em Portugal, vai ser operada para o ano em sítio aconselhado e seguro.
“Uma moça como deve ser”, louvou o Comandante quando Edi se foi, “e, para além de trabalhar, estuda, sabe, anda a estudar...”
“Ai, sim, e estuda o quê? Com vinte e um anos já deve ter terminado o liceu... Andará na Universidade?”
Mas o Comandante não sabe, só sabe que toma conta do porco da Dona Cármen - um ex-combatente do PAIGC e antiga Ministra da Saúde, que mora ali em frente -, que tem a variz e que anda a estudar.
Chega T., para me buscar, e à entrada cumprimenta Emília com um beijo e grande familiaridade. À saída, pergunto:
“Conhece-la bem?”
“Sim, é sobrinha de um primo meu.”
“Vocês, aqui, são todos primos uns dos outros!”, exclamo, suportado na frequência com que o vejo abraçar, beijar, parar para falar com gente em todo o lado, desde colegas de profissão a empregados de restaurante ou humildes serventes dos ministérios.
T. está parado no meio da rua e, como não tem carro próprio, faz sinal a um dos numerosos táxis azuis que circulam por Bissau. Depois, comenta:
“Sim, somos todos mais ou menos família...”
© Fotografias de Pedro Serrano, Bissau, Setembro/Outubro 2015.