© Fotografia: Pedro Serrano, Porto, Outubro 2012.
28 outubro 2012
GATO PINGADO
© Fotografia: Pedro Serrano, Porto, Outubro 2012.
Classificação:
FOTOGRAFIAS
25 outubro 2012
22 outubro 2012
VOU-TE CONTAR: 51. RETRATO DE FAMÍLIA COM RISCO
Quem terá riscado esta fotografia, que
inconsciência terá produzido essa falta de respeito pelo passado? Parece seguro
que foi uma criança, na idade em que já sabe que um lápis serve para aplicar em
papel ou material que se pareça com papel, mas em que ainda não é capaz de
produzir contornos identificáveis como olha
um sol, olha o piu-piu, olha a mamã... Quem teria sido e por
onde andará hoje, disfarçada de adulto pelos corredores do mundo?
As crianças da foto, por seu lado,
estão todas mortas, o tempo delas passou há muito. O tio Alberto, por exemplo,
meu tio-avô, é a menina bochechuda que está sentada no colo da minha bisavó
Emília e o seu ensimesmamento social era famoso na família, toda a gente esperando
vê-lo aparecer apenas em dia de velório ou enterro... A esses, o tio Alberto e
a mulher – a tia Maria, com o passar dos anos reconvertida de cozinheira em
dona do galo velho – não falhavam.
Encostada ao ombro do pai (o meu
bisavô José Figueirinhas) está a tia Fernanda, que morreu de cancro da mama e
morava, com o tio Domingos, num renque de vivendas com trapeira perto da Arca
de Água. Nunca tiveram filhos e visitavam a casa dos meus pais, certos como
pêndulo de relógio, todas as semanas, à tarde. (Lembro ainda um presente,
laboriosamente construído pelo tio Domingos em cartolina forrada a papel de
lustro, que consistia numa complexa garagem, para arrumar os meus carrinhos,
com vários andares e rampa de acesso).
Quanto ao meu bisavô materno, pai da
minha avó Zaida, ainda corre na família a lenda da sua generosidade como
médico, generosidade cheia de consultas grátis a quem menos podia e que deitava
por fora no dinheiro deixado para remédios (que ele mesmo receitava) debaixo da
almofada dos doentes pobres. Para além disso, o meu bisavô Zé falava como um
carroceiro, o que só o torna mais simpático quando agora me fixo nas suas
barbas de patriarca.
A minha avó Zaida é a menina bonita de
laçarote na cabeça e a caminho de um meio sorriso... No seu recorte de olhos
consigo rever o reflexo da minha mãe e da minha sobrinha Ana. Repare-se só ao
nível que ela traz o cordão que lhe aperta o vestido! E ainda falam das calças
de ganga de fundilhos descaídos que usam os rapers
e skaters caseiros do século XXI!
Quando ela morreu, andava pelos meus dezasseis ou dezassete anos, tive um
imenso desgosto, tão ranhoso e destilado que passei o dia do funeral enterrado
nos óculos-escuros que o meu futuro cunhado me emprestou. Nesse dia chorava por
ela e por mim: nunca mais teria a quem vender as agendas de papel-costaneira
cosidas com linha de costura; quem mais voltaria a comprar as mesinhas
desniveladas que eu e os meus primos carpinteirávamos e que ela, ao fim de
tempo razoável, nos devolvia para que lhas vendêssemos de novo? Mas olhem para
ela aqui ao lado, olhando a eternidade com confiança, na tenra idade em que, de
bom-grado sairia da foto e se juntaria aos netos para colorir um desenho que, à
tardinha, recém-saídos do banho e de risca bem vincada, iríamos oferecer a ela
própria.
© Pedro Serrano, Porto, fotógrafo desconhecido.
Classificação:
VOU-TE CONTAR
20 outubro 2012
03:10
Tinha bebido em demasia ao jantar –
vinho branco – não sabia bem o que a acordara, se a boca seca ou a bexiga pesada. Sentada
na borda da cama, enfiou as pantufas e, logo que se viu no espelho em frente,
desviou o olhar para o despertador na mesinha de cabeceira: 03:10, os dois
pontos que separavam as horas dos minutos piscavam como um batimento cardíaco.
Sentada na sanita, suportou a cabeça
entre as mãos escoradas pelos cotovelos nos joelhos. Depois estendeu o braço
esquerdo e acendeu a torneira do bidé: a água jorrou no silêncio com um ruído
consolador. Pensava em transferir o peso das ancas para a porcelana branca
quando a gata surgiu na porta da casa de banho e avançou rapidamente. Preferia,
acima de tudo, beber água corrente e, apesar de lha mudar todos os dias, sempre
que podia deixava intacta a tigela de água na cozinha.
Precisa, a gata empoleirou-se no bidé,
as patas de trás apoiadas na borda, as dianteiras dentro da bacia, recolhidas
de modo a evitar a orla da toalha de água que atapetava o fundo e se ia sumindo
pelo ralo. Ficou a escutar o som que o bicho produzia ao lamber o líquido, a reparar
na oscilação satisfeita da ponta da cauda. Quando deu a tarefa por terminada, a
gata saltou para o chão e ficou a olhar para ela, um olhar fixo de uma
inexpressividade quase intimidante. Ficaram naquele braço de ferro uns
momentos, até que desistiu de pensar em usar o bidé e optou pela solução medrosa
do papel higiénico. Ao ouvir o tumulto do autoclismo, a gata como que saiu do
seu transe e encaminhou-se para a porta, onde parou e olhou para trás. De
passagem, adivinhou o que a outra pretendia, vestiu o roupão e seguiu-a pelo
corredor. Abriu a porta, a gata passou aos seus pés num trote leve e empoleirou-se no varandim
da entrada onde se ficou a estudar a névoa alaranjada que orvalhava o quintal.
© Fotografia de Pedro Serrano, 2011.
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CONTOS
12 outubro 2012
VOU-TE CONTAR: 50. CALDO VERDE
“Manuela, está um caldo!”
O meu pai, um rigoroso adepto da
prevenção do choque térmico, fazia a sua abordagem ao mar de forma gradual.
Progredia, calmamente, até a água lhe
dar pelo meio da coxa e aí se quedava por uns minutos, a mão direita em concha
vertendo, como num auto-baptismo, progressivas colheradas de mar sobre os
ombros que depois, tal como se estivesse a espalhar um creme bronzeador,
distribuía pela pele dos braços, do peito, pelas zonas descobertas da careca.
Finalmente, quando se sentia
termicamente apto, rodava sobre si mesmo de forma a encarar o areal e
comunicava:
“Manuela, vem, a água está um
caldo...”
Sentada sobre uma toalha, à sombra de
um toldo, as mãos abraçando os joelhos flectidos, a minha mãe, algo envergonhada
pelo entusiasmo sonoro do marido, erguia discretamente um indicador que abanava
em negativa. Ela mantinha uma relação complicada com as águas de veraneio e,
mesmo no tépido mar do Algarve, seria uma vitória conseguir convencê-la a
aventurar-se, para além da cintura, às águas mais do que duas vezes por época
balnear. E quando, pressionada pelos lamentos de toda a família, acedia a
fazê-lo era vê-la mirando a benevolente piscina como se enfrentasse o cabo das
Tormentas, olhando alarmada para o nível das águas que lhe davam pelo tornozelo
como se a qualquer momento elas pudessem ganhar as profundezas da fossa do
Mindanau, enquanto trinta metros mais à frente, com água pelo umbigo, o meu pai
lhe assegurava:
“Há pé, há pé!”
Mas ela, malgrado os incentivos, a teia
de conhecidos que flutuava na sua órbita, progredia num paralisado receio, os
ombros tensos e os braços esticados ao longo do corpo, as palmas das mãos
viradas para baixo como se pretendesse suster a suave ondulação, evitar os
salpicos provocados pelas marradinhas da água contra a rebentação dos seus
joelhos.
Agora, no meio do verde cintilante das
águas, o meu pai desistiu e, com um mergulho satisfeito, entrega-se às águas,
solitário. Deitado na areia, a uns metros da mala térmica que marca a fronteira
da nossa zona no areal, penso se hei-de levantar-me e ir-lhe fazer companhia
quando chega até mim o ruído surdo da ponta de metal de um guarda-sol ao ser
espetado na areia e reparo nuns pés que, ao nível dos meus olhos, sacodem umas
chinelas de praia. A família que chegou vem ainda vestida e uma rapariga desfralda
à frente de uma outra uma toalha para que ela possa transmutar-se, resguardada,
num biquíni. Rapidamente rolo sobre mim próprio, encaixo os quadris na areia
quente, apoio o queixo sobre os braços cruzados e, camuflado atrás de uns olhos
falsamente semicerrados, ajusto as miras telescópicas das minhas pupilas, esquecendo
o pai na água, os leves remorsos por o deixar a sós com o oceano dissolvendo-se
no ar da manhã, arrastados para longe enlaçados ao pregão do homem que se afasta
anunciando batatas fritas.
Fotografia: Praia de Faro, 1969, fotógrafo desconhecido.
Classificação:
VOU-TE CONTAR
05 outubro 2012
O BOLINHA VAI À PRAIA
Durante o último ano, o meu filho
esteve a estudar no nordeste da Alemanha, numa cidade encantadora onde,
no Inverno, as temperaturas atingem os vinte graus negativos e respirar se
torna doloroso como um ataque de tosse.
Assim, pode imaginar-se o gosto com
que, chegados os fins de Julho, desceu por aí abaixo para vir rever amigos e
família, a comida, o sol e o azul português, a Praia onde sempre morou e que
este ano, graças às agruras do país, esteve repleta de animação e abençoada por
dias sem vento e por neblinas transitórias.
Durante o mês que esteve por casa,
antes de regressar por dois anos à Alemanha, decidiu fazer uma revisão profunda
às coisas que guardava no quarto e no quase-apartamento por cima da garagem,
posses que se foram acumulando nas últimas duas décadas e fazem o desespero da
Carlota, a empregada que vela pelo pó e arrumações da família praticamente
desde que ele nasceu.
“Um dia deito tudo isto ao lixo!”,
dizia-me ela sazonalmente, à beira de um ataque de nervos, enquanto eu lhe pedia
paciência, pois havia de chegar um dia em que ele, já grande, rearranjaria o
seu mundo numa outra hierarquia.
Este Verão, dos bens que pôs de parte,
por já não lhe interessar ou por a sua utilidade se ter tornado distante, alguns
deu, outros vendeu na feira de velharias, outros (poucos) tiveram como destino
os diversos contentores do lixo. E todos os dias me aparecia com um qualquer
objecto, perguntando:
“Pai, queres isto para alguma coisa?”
Numa das últimas tardes em que aqui
esteve, já eu antecipava o silêncio que em breve se ia instalar na casa, surgiu
com uma pilha de livros, explicou:
“Olha, são livros de quando eu era
pequeno... Alguns gostava de guardar, outros podem-se dar ou ficar por aí, pode
ser que alguém os queira ler um dia...”
“Claro, guardam-se no cimo da estante
do quartinho do meio, já lá estão os meus, de quando era pequeno, alguns até os
leste também...”
Depois foi-se, exactamente na primeira
manhã de chuva deste Outono, eu, desambientado como um patego, do lado de cá
dos vidros da gate do aeroporto de Pedras Rubras, guarda-chuva enrolado nas
mãos, vendo-o dissolver-se no meio da multidão.
Cá em baixo, no sul onde moro, a tal resma
de livros antigos continuava empilhada em cima do piano. Um fim de tarde, ao ir
fechar as portadas do quarto dele, pus-me a inspecioná-la, cada capa que
desfilava sob os meus olhos trazendo à memória o momento em que aquele livro
fora comprado, ou quem o oferecera, a fase da vida dele em que fora manuseado...
Iluminei-me num sorriso ao topar, agrupados
no meio da pilha, com quatro livros das aventuras do Bolinha, livros que eram
uma preferência dele entre os três e os quatro anos de idade. O Bolinha é um
cachorrinho cor de areia-tisnada-pelo-sol, distinguido com umas manchas
castanhas arredondadas no lombo e no rabo, espetado e curioso. Os desenhos são
nítidos e de cores felizes, o diálogo é mínimo – como se quer num livro para
crianças que estão ainda longe das letras – o herói move-se num mundo seguro,
em que os pequenos sustos e surpresas são amparados pela presença do pai e da
mãe Bolinha.
E em quase cada uma das páginas de
cartolina do livro existe um bónus: a porta azul do quarto pode mesmo abrir-se;
no desenho do guarda-vestidos verde as portas coladas podem ser escancaradas
pelo leitor entre dois dedos; a cesta de vime tem uma tampa de cartolina que se
deixa levantar e revelar um Bolinha escondido e de que toda a gente andava à
procura desde o princípio do livro... Que pormenores tão bem concebidos! Aquele
acrescento táctil em cada página fazia a felicidade, ingénua e suspensa, mil
vezes repetida, do meu filho há vinte anos atrás, pois a infância não se cansa
de experimentar se a mesma causa precede o mesmo efeito ou se, pelo contrário,
o mundo se pode fragmentar em mil direcções e, debaixo da tampa da cesta de
vime, já nada mais aguarda do que o silêncio um pouco bafiento da ausência.
Classificação:
RUMINAÇÕES
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