Quem terá riscado esta fotografia, que
inconsciência terá produzido essa falta de respeito pelo passado? Parece seguro
que foi uma criança, na idade em que já sabe que um lápis serve para aplicar em
papel ou material que se pareça com papel, mas em que ainda não é capaz de
produzir contornos identificáveis como olha
um sol, olha o piu-piu, olha a mamã... Quem teria sido e por
onde andará hoje, disfarçada de adulto pelos corredores do mundo?
As crianças da foto, por seu lado,
estão todas mortas, o tempo delas passou há muito. O tio Alberto, por exemplo,
meu tio-avô, é a menina bochechuda que está sentada no colo da minha bisavó
Emília e o seu ensimesmamento social era famoso na família, toda a gente esperando
vê-lo aparecer apenas em dia de velório ou enterro... A esses, o tio Alberto e
a mulher – a tia Maria, com o passar dos anos reconvertida de cozinheira em
dona do galo velho – não falhavam.
Encostada ao ombro do pai (o meu
bisavô José Figueirinhas) está a tia Fernanda, que morreu de cancro da mama e
morava, com o tio Domingos, num renque de vivendas com trapeira perto da Arca
de Água. Nunca tiveram filhos e visitavam a casa dos meus pais, certos como
pêndulo de relógio, todas as semanas, à tarde. (Lembro ainda um presente,
laboriosamente construído pelo tio Domingos em cartolina forrada a papel de
lustro, que consistia numa complexa garagem, para arrumar os meus carrinhos,
com vários andares e rampa de acesso).
Quanto ao meu bisavô materno, pai da
minha avó Zaida, ainda corre na família a lenda da sua generosidade como
médico, generosidade cheia de consultas grátis a quem menos podia e que deitava
por fora no dinheiro deixado para remédios (que ele mesmo receitava) debaixo da
almofada dos doentes pobres. Para além disso, o meu bisavô Zé falava como um
carroceiro, o que só o torna mais simpático quando agora me fixo nas suas
barbas de patriarca.
A minha avó Zaida é a menina bonita de
laçarote na cabeça e a caminho de um meio sorriso... No seu recorte de olhos
consigo rever o reflexo da minha mãe e da minha sobrinha Ana. Repare-se só ao
nível que ela traz o cordão que lhe aperta o vestido! E ainda falam das calças
de ganga de fundilhos descaídos que usam os rapers
e skaters caseiros do século XXI!
Quando ela morreu, andava pelos meus dezasseis ou dezassete anos, tive um
imenso desgosto, tão ranhoso e destilado que passei o dia do funeral enterrado
nos óculos-escuros que o meu futuro cunhado me emprestou. Nesse dia chorava por
ela e por mim: nunca mais teria a quem vender as agendas de papel-costaneira
cosidas com linha de costura; quem mais voltaria a comprar as mesinhas
desniveladas que eu e os meus primos carpinteirávamos e que ela, ao fim de
tempo razoável, nos devolvia para que lhas vendêssemos de novo? Mas olhem para
ela aqui ao lado, olhando a eternidade com confiança, na tenra idade em que, de
bom-grado sairia da foto e se juntaria aos netos para colorir um desenho que, à
tardinha, recém-saídos do banho e de risca bem vincada, iríamos oferecer a ela
própria.
© Pedro Serrano, Porto, fotógrafo desconhecido.
Cresci com esta fotografia por perto, primeiro na gaveta da cómoda dos chocolates da avó Zaida e depois na escrivaninha da minha mãe, mas juro que não fui eu que risquei a família...
ResponderEliminar@ Anónima, Ah ah, nunca jures nada, gulosa! Beijo (e não te denuncio...)
ResponderEliminarOs famosos Suchard de papel amarelo da cómoda da avó Zaida...
ResponderEliminar