10 março 2023

VADE MECUM AGUIAR!



Meus Deus, que lhes terá dado? Ainda o país não tivera tempo para começar a arrefecer da indignação causada pelas atrocidades canoras do bispo de Beja sobre as vítimas deverem perdão aos seus agressores, e já bispos, arcebispos e cardeais se precipitavam para rádios, jornais e televisões vociferando que afinal os padres suspeitos iriam ser afastados, que seriam devidas indemnizações aos ultrajados e, claro está, que toda a Igreja andava em grande sofrimento com o sucedido. Um padre no activo, que em tempos disfrutou uma deliciosa noite numa tenda de campismo ladeado por uma rapariga de 11 anos e outra de 12, veio até confessar aos microfones da SIC que a gente, lá em casa, nem calcula o sofrimento que ainda o acomete, e já lá vão mais de dez anos sobre os tempos em que apalpava as mamas e o rabo às jovens católicas que lhe apareciam na sacristia. O homem, coitado, ainda passa horrores não inferiores às cinco santas chagas de Cristo; sofrem todos eles horrores, um horror que pode até ser retard e iniciar-se quase trinta ou quarenta anos mais tarde! É uma coisa crónica, devia ser classificada como profissão de risco.

Mas, a crer em D. Américo Aguiar (bispo auxiliar de Lisboa e da Pala), tudo o que se gerou na sequência das declarações da semana passada de bispos e cardeais não passou de uma grande infelicidade, grande parte da qual por responsabilidade directa do Vade Mecum.

Vade mecum, para os nossos leitores mais distraídos, significa literalmente "Vai Comigo", mas, na prática, refere um manual de procedimentos, uma espécie de livro de bolso com instruções de "faça você mesmo". Há Vade mecum para todas as áreas, existem em Medicina, em Direito, em Informática, até em Espiritismo, e, em última análise, pode exemplificar-se um livro de receitas de cozinha como um Vade Mecum culinário.

Pois o bispo da Pala foi o escolhido para nos vir informar que muita da culpa pelo imbróglio teve origem no Vade Mecum que eles usam lá na Igreja e de que seguem os artigos e as alíneas religiosamente, dado que o livrinho tem mais peso para eles do que, sei lá, a Vida dos Santos, a própria Bíblia. E o Vade mecum lá deles proíbe terminantemente que se use o termo "suspensão" para designar o afastamento de padres e outros incriminados do género: é que optando por usar o termo suspensão ter-se-á de, em conformidade, começar por abrir um inquérito, um processo, fazer investigações aprofundadas, mandar para o Vaticano, esperar a resposta do Vaticano, depois vai ao Ivo Rosa, ao Tribunal da Relação, ao Tribunal Constitucional, Belém, Jerusalém, uma fortuna em tradução e selos, um inferno de burocracia, prescrições, etc. Por isso aquela confusão de toda a gente ficar a pensar que a Igreja não ia afastar nenhum suspeito de agressão sexual a menores... É claro que vai, muitos, paletes deles se preciso for!

Tudo isto veio esclarecer D. Américo Aguiar, indigitado porta-voz por unanimidade e aclamação, tendo em conta o seu talento para anestesiar e manter em sentido jornalistas, o seu à vontade de mesa-redonda frente às câmaras e microfones, atributos que desenvolveu e exercitou na época em que trabalhou na Câmara, em Matosinhos, para o saudoso Narciso Miranda e para o PS.

"Voto em ti, Aguiar, tens o parlapié necessário para enfrentar a matilha...", teria dito, comovido, um dos prelados na noite da votação.

"Sim, já os vais conhecendo bem, lá da Pala e das Jornadas, tens à vontade e não te engrolas, como eu, em momentos infelizes...", terá alegadamente acrescentado D. Manuel Clemente.

"E não é só isso: dominas o Vade mecum do jargão político para se safar de um anzol: os mal-entendidos, o retirado do contexto, o não foi isso que eu disse, os não recordo ter dito isso, os não sabia de nada, os amigos jornalistas..."

E todos no conclave concordaram que era uma grande coisa o ter-se passado por uma experiência política prévia para enfrentar momentos de aperto, ainda que eclesiásticos.

"Uma mão lava a outra...", resumiu um dos presentes.

"Safa", desabafou um outro à saída da cripta onde tivera lugar a reunião, "que foi por um triz! Se não fora esta ideia do Aguiar de se apostar tudo na retórica, de jogar com a semântica, ainda nos encalacrávamos todos! Pois se até um prelado já Santificado, como o João Paulo II, não escapou à devassa!"

"Tempos de inclemência...", murmurou um terceiro.

"O Clemente?", interpretou um prelado pondo a mão em concha sobre o Sonotone, "esse e o Ornelas é que deram origem a toda esta avalanche, raios os partam!"

"Colega, olhe a outra face..."

 

 

  

08 março 2023

OS QUE FICAM À PORTA

Uma a uma, as ratazanas esticam o focinho fora da toca para, num discurso concatenado à pressa entre elas e empoado pelo makeup da hipocrisia piedosa, virem confirmar publicamente a sua vocação de encobridores. Cerram fileiras. Primeiro veio José Ornelas (bispo do eixo Leiria-Fátima), em seguida o inefável Manuel Clemente (cardeal-patriarca de Lisboa), quase em simultâneo com o muito convencido de si, Manuel Linda (que actualmente vexa o bispado do Porto, habituado a homens de outra fibra). Apareceu também à luz, embora um tanto cosida com as paredes, uma ratazana que responde pelo nome de Manuel Felício (bispo da Guarda) e, mesmo ontem, foi-nos servido, à hora dos telejornais, o vomitado de João Marcos, bispo de Beja. 

Todos vieram descartar a hipótese de afastamento preventivo dos padres acusados e suspeitos de abusos sexuais sobre menores, a que foram acrescentando joias da sua lavra, tal o sibilino José Clemente, que em vozinha adocicada e olhos revirados de "não falemos sequer dessas coisas", considera as indemnizações às vítimas como algo que, só de ser enunciado, poderia ser considerado insultuoso por elas, vítimas...  

Mas, o mais espectacular argumento de todos, veio do bispo de Beja (um dos que - e agora percebe-se a razão - se negou a participar nos trabalhos da Comissão Independente que investigou tudo isto), prelado que afirmou, entufado de piedade pelos predadores seus colegas de profissão, que em tudo isto está em falta o perdão, isto é: as vítimas devem perdoar os seus agressores, uma vez que eles se mostrem arrependidos. O perdão, acha o tipo, é o melhor tira-nódoas e apaga todas as marcas e manchas, torna praticamente desnecessária a justiça terrena (à atenção do Ministério da Justiça e dos tribunais entupidos). 

Deste modo, meu filho, se te entupiram a garganta, se o cu te ficou a arder ou se sangraste por ele, se a tua vida adulta ficou irremediavelmente abalada e tolhida pelo que te aconteceu quando andavas na catequese ou te ajoelhavas no confessionário, problema teu. Só te resta perdoar, pois os agressores estão muito arrependidos de se terem cevado em ti, uma e outra vez. Perdoa e engole.

Neste cortejo de horrores, a que os mais altos responsáveis pela Igreja Católica têm sujeitado os ouvidos da opinião pública, apetece perguntar se o Vaticano (e o Papa Francisco) estarão a par do reles espectáculo em cartaz neste canto da Península, estrelado pelos seus retalhistas e intermediários na condução da Fé. Será que o homem, lá em Roma, estará a acompanhar devidamente tudo isto? Será que alguém com a proximidade e os pergaminhos do nosso conterrâneo José Tolentino Mendonça (cardeal, assessor do Papa, cronista no mais lido jornal da terrinha) se tem debruçado e acarinhado esta causa? Ou será que vai ser forçoso esperar por Agosto e pelas Jornadas Mundiais da Juventude, para ir em procissão à Pala, manifestar ao Papa a indignação pelo que se passa por estas bandas e implorar-lhe que acerte uma vassourada nestes seus associados, que nada têm feito senão ignorar o que ele aconselhou? 

Abençoada Comissão Independente, penso mais uma vez para com os meus botões, que, suponho, deve andar completamente horrorizada e incrédula ante as reacções que despertou o cumprimento da sua missão. Abençoada, no entanto, pois mesmo que o seu trabalho não sirva para mais nada, enxotou até à luz do dia toda esta rataria sebosa, aninhada, instalada. E se a suas excelências, bispos e cardeais, não lhes é suficiente a simples informação de um nome para afastar um padre abusador, ficamos pelo menos a conhecer o nome e a cara de quem é quem neste xadrez, dos que ficam a guardar a porta enquanto o outro, o simples e anónimo padre Albino, vai à horta colher os tenros rebentos. 

"Deixai vir a mim as criancinhas!" 

"Despache-se padre Albino, que eu não posso ficar aqui, a tomar conta, toda a vida e já me bastam as chatices que tenho tido com a Comissão Independente!"

04 março 2023

O PATRONO DOS ABUSADORES

 

Chegada a hora de se pronunciar sobre as conclusões da Comissão Independente de Acompanhamento dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja e de vir dizer ao povo o que se propõe fazer sobre tão sinistro assunto, propõe-se o quê a Igreja portuguesa? Nada, nadie, rien, nothing, nichts; um rotundo e espantoso nada!

Ficámos a saber que por iniciativa da Igreja (como organismo colectivo) nenhum dos padres abusadores será afastado de funções (a não ser se condenado em tribunal), nenhuma vítima será indemnizada (segundo a Igreja é uma responsabilidade do padre violador), mas farão o grande favor de providenciar apoio psicológico às vítimas, desde que estas o requeiram na diocese onde foram abusadas. Finalmente, como tinham de tirar algum gesto de amor ao próximo da mitra, irão promover a construção de um memorial às vítimas de abuso, como se estivessem a referir vítimas de guerra, de terremoto ou de um outro acontecimento inevitável ou de força maior. Se me é permitido contribuir com ideias para esse memorial, proponho uma pala, como aquela que se preparam para nos fazer pagar nas Jornadas da Juventude, e sob a qual vários dos abusadores ou encobridores se irão resguardar do sol inclemente de Agosto. Ou talvez uma calçadeira com setenta metros de altura, um metro por cada ano de abuso oculto, ou em alternativa, um confessionário à prova de som e com retrete incorporada.  

Quem veio comunicar tudo isto publicamente, num tom onde imperava uma agressividade rebarbativa, foi um cavalheiro chamado José Ornelas, que acumula o ser bispo de Leiria-Fátima com a presidência da Conferência Episcopal Portuguesa, um graduado que, não assim há tanto tempo, andou por aí semienrolado numa situação de alegado encobrimento dos abusos sobre os quais foi agora convidado a pronunciar-se. Lembram-se? O Presidente da República até lhe telefonou a avisar que o caldo estava a azedar para os lados dele... 

Para ser franco, não fico tão espantado assim com este desfecho-éclair, pois sempre tive a sensação de que todos estes senhores estavam a fingir e só se moviam por força do aguilhão da opinião pública e desse prego no sapato chamado Comissão, uma comissão que, embora criada por eles, teve a lata de se portar de forma independente! Na hora da verdade, a Igreja continua a tentar esconder-se sob as varetas do guarda-sol, sem se dar conta de que o pano está mais que roto, está em farrapos. Não há batina que lhes valha. 

Em tudo isto há uma só coisa bonita de se ver: o trabalho que a Comissão Independente executou e apresentou no prazo em que prometeu que o faria! Um trabalho aturado, cuidadoso, cauteloso, isento e muito inteligente no modo deu a conhecer as suas conclusões. Valha-nos isso, num país onde a Justiça, pelo visto incluindo a Divina, está moribunda e tresanda.