Não conheço emoção mais próxima à de
nos ser permitido entrar dentro de um pisa-papéis, uma daquelas bolas, pesadas,
de vidro espesso, que resguardam do tempo no seu interior um cenário
tridimensional precioso: a casa com telhado de colmo onde morámos em sonhos e
que se cobre de neve cada vez que movemos a esfera; uma rosa perfeita, de que
só nos é negado o perfume; um cavalinho de pau, com crina de corda e patas de
trenó, igual ao da nossa infância, o eco do seu relinchar perdido no esconso de
um sótão inatingível. E outros tesouros, que cada um tem os seus; todas essas
coisas aprisionadas em nós, que dançam na luz dourada da memória e se cobrem
dos flocos de neve da nostalgia de cada vez que as evocámos.
Panjim, a capital de Goa, é banhada
por um rio chamado Mandovi. Ora este rio, ao chegar perto da foz, espraia-se, preguicento,
por margens distantes, tão ou mais amplas do que as do Tejo sob a ponte Vasco
da Gama, margens que, furando através de canais, lambem a cidade e nela se
insinuam como dedos numa cabeleira. A cor das águas do Mandovi espelham o azul do
céu e, por isso, percebemos não estarmos no sul da China, onde as águas dos
rios são também frouxas mas se enlameiam de amarelo.
Numa das margens está atracado um
paquete cujo casco nunca roçou o hálito dos crocodilos que habitam a montante,
é um barco imóvel, apesar das chaminés imponentes, semelhantes à dos navios de
roda que outrora subiam o Mississípi e, no seu interior, a única roda que se
move é a da roleta do conhecido Casino Pride.
Fronteiro, do outro lado da rua, na avenida marginal de Panjim, eleva-se o Mandovi, um hotel cuja construção foi
concluída em 1952, rodava eu, astronauta chupando o polegar, na barriga da
minha mãe.
Entrei pela primeira vez naquele hotel
vai para uma década, num Natal algo solitário passado na Índia com o Zé João, o
meu filho, então com treze anos, a conselho da Madalena C., uma amante de tudo
quanto é retro e, Ganesh seja Louvado,
ainda mais de tudo quanto é kitsch:
“Se fores a Goa não deixes de ir ao Longuinhos, em Margão, e, absolutamente,
vai almoçar ao RioRico, no primeiro
andar do Hotel Mandovi.”
Num fim de manhã de Dezembro, o Zé
João e eu, subimos as escadas do Mandovi e, empurrada a porta do restaurante, nenhum
de nós queria acreditar no que via. Numa sala de jantar mergulhada na penumbra,
lá ao fundo, em cima de um palco baixo, por trás de uma rede de pesca pendurada
e ornada com conchas do mar, um tipo de chapéu à cowboy acompanhava-se à
guitarra eléctrica enquanto cantava êxitos dos anos 50 numa voz plangente.
Essa recordação descrevi-a eu, dez
anos passados, ao Sr. Pinto, o chefe dos empregados de mesa, que muito surpreso
ficou por eu me lembrar de tudo com tanta nitidez.
“Havia um concurso gastronómico, de
frutos do mar...”, esclareceu ele a razão da actuação do guitarrista se fazer
por trás de uma rede de pesca.
Dez anos depois, o mesmo guitarrista,
com a mesma voz plangente, continua, com o mesmo chapéu, a cantar as mesmas
canções no mesmo palco. Hoje, não está tapado por nenhuma rede, entre ele e nós
apenas uma longa mesa de apoio, o tampo revestido por cetim azul, estendido franzidamente,
talvez a imitar ondas e onde, muito facilmente, um par de talheres, um
pimenteiro em prata, se afogaria.
Nada mudou no RioRico e até a clientela parece estar ali, pregada nas cadeiras
estofadas, desde 1952, as senhoras, embora seja só hora de almoço, ataviadas e estucadas
em rouge e batom como se estivessem a jantar fora e todos os olhos de Goa as
pudessem julgar.
Não passara muito tempo desde que nos
sentáramos, lendo atentamente o extenso menu, no qual, a cada passo, se tropeça
em “caldo verde”, “canja de galinha”, “bacalhau albardado”, quando um empregado
se acercou de nós, quis saber a nossa nacionalidade. Mal foi revelada, o tipo
mostrou os dentes estragados num sorriso tipo “eu vi logo” e desatou a falar em
português, um português perro, tacteante, de quem o foi deixando escorregar
para além do céu da boca por falta de prática.
“O meu nome também é português”,
disse, apontando para a lapela onde se lia PINTO num crachá dourado. E o Sr.
Pinto não mais nos largou, indicando uma mesa, ao fundo, que “também são
portugueses” e, por contiguidade territorial, uma outra onde se sentavam dois
casais de espanhóis, trejeitando em direção ao palco e remexendo-se nas
cadeiras em sinal de reconhecimento, pois o guitarrista cantava agora o “Viva
la España”, a primeira canção de uma espetada latina onde enfileirou de seguida
o “Besame Mucho” e o “Quizás, Quizás, Quizás”, o todo entoado no mesmo registo
plangente de onde esvoaçavam traças.
Para começar, pedi uma canja de
galinha e a Ana um caldo verde, sopas que nos chegaram à mesa muito apuradas e
saborosas. É certo que o caldo verde não era feito com couve galega, que não há
couve dessa em Goa, mas o modelo de esfarrapamento
do vegetal substituto era idêntico, e a cor o mais aproximada possível.
Pousei a colher da canja, olhei em
volta e brotou em mim a mesmíssima emoção que me assaltou a primeira vez que me
sentei naquele restaurante e que, na altura, não conseguiu trepar a barreira da
consciência. Que curioso! Porquê, por trás da incredulidade divertida das
primeiras impressões, aquela quase vontade de chorar, aquela iminência de
lágrimas mansas, sem tristeza amarga, com que o sítio me contagia? Como se o
local desse substância ao conceito de saudade, como se o preço da entrada para
o recinto interior de um pisa papéis fosse pago à custa de uma nostalgia tão
aguda como a dolência da voz do cantor... Sim, aquilo era como estar num mundo
que já não existia, mas que nos era permitido revisitar em silêncio e devoção,
pois qualquer gesto brusco, qualquer gargalhada, poderia volver em pó todo o
cenário, tal um fresco antigo que, aprisionado no interior de uma cave soterrada,
se esbate e apaga até à cor uniforme das paredes quando a porta para a luz do
dia se escancara...
“Sobremesa...?”, o Sr. Pinto surgiu do
nada, contente por poder usar mais uma palavra portuguesa.
O meu pudim de caramelo fora moldado
numa forminha perfeita e vinha coroado por uma cereja cuja idade devia remontar
à fundação do hotel, de um vermelho de brilho gémeo do batom nos lábios da dama
sentada na mesa em frente. Uma pequena folha de hortelã, encostada com mestria
à base da cereja, ressuscitava-a, no entanto, para o mundo vegetal onde um dia
distante deveria ter pertencido.
© Fotografias: Pedro Serrano, Panjim (Goa), Janeiro 2012.