29 dezembro 2010

Promete que não contas nada a ninguém

Quase quinze anos depois, as lágrimas ainda me tocam aos olhos! Olhei em volta, disfarçadamente, a controlar se alguém teria dado conta. Não, o café estava quase deserto e os raros clientes entretinham-se, como eu, a ler jornais ou a olhar o mar, sujo da invernia.
É um estado definitivo, ao que parece, este de ficarmos com uma certa labilidade emocional, sobretudo perante os assuntos de gente desta família onde não cessam de chegar novos elementos.
O que eu lia era um artigo do Público (‘A beleza dá-me força para lutar contra o cancro’, 29 Dezembro 2010) e, ocupando página quase inteira, a foto de uma senhora chamada Sara (cancro da mama, metástases cerebrais), bonita, farto cabelo castanho liso, que olha a câmara de uns grandes olhos onde luz tudo menos o desespero. Claro que aquele cabelo não é o dela, ela nunca mais terá o cabelo dela, pois a radiação do couro cabeludo (para queimar as metástases) destrói os folículos pilosos de forma definitiva. Ao contrário da quimioterapia que, umas semanas depois de cessarem os tratamentos, permite o brotar de um cabelo novo, macio, que nos faz emocionar perante o milagre daquele renascimento e do estado de inocência que parece ter sido aspergido sobre a nossa cabeça.
Mas não foi a Sara Melo, nem a sua fotografia, que me provocaram as lágrimas, naquele sem intervalo clássico entre causa e efeito, foi antes a descrição da ida ao cabeleireiro de outra rapariga (Fátima, 36 anos, cancro da mama, dona de longuíssimos cabelos negros) para rapar a cabeça, pois a quimioterapia iniciava a sua devastação capilar.
“Já tinha comigo a prótese, muito parecida com o meu cabelo natural, quando fui ao meu cabeleireiro rapar a cabeça. É um acto íntimo, doloroso, estávamos ambos muito emocionados.”
Foi aqui, nesta declaração de intimidade, nesta emoção que atingiu cliente e profissional, e que consegui imaginar como se o estivesse a ver, que as putas das lágrimas se escapuliram.
Não é  de imediato, ao começar um tratamento de quimio, que o cabelo cai e, durante um ou dois tratamentos, a gente até pensa que essa perda, de que o médico nos avisou, nos poupará, na nossa singularidade de membro único da raça humana. Até que uma manhã acordámos com a almofada escandalosamente pejada de cabelos e, um punhado de dias depois, descobrimos, horrorizados que, se puxarmos o cabelo entre dois dedos, ele se desprende, aos tufos, como um prego espetado em madeira podre.
E não pára nunca mais, esse descer de escadas, umas vezes degrau a degrau, outras aos empurrões, um lance inteiro de uma vez, os tornozelos da alma cheios de nódoas negras. Cabelo, sobrancelhas, pestanas – estas caem para dentro do globo ocular, temos de as andar sempre a pescar – cabelos de outras longitudes; unhas que lascam, músculos que tremem sozinhos, como se tivessem vontade própria. A sala de tratamentos da quimioterapia parece uma exposição permanente de Vermeers, de tal modo é povoada por seres de aparência diáfana com apêndices capilares rarefeitos. Há, até, uma certa beleza nessa estranha metamorfose, deixem que vos diga; mas é qualidade que só se deixa apanhar por quem é sócio, pois os outros, os seres normais, estão muito ocupados em não dar conta de nada, a evitar olhar-nos ou a fugir de ter uma conversa connosco. Sim, admito que não é confortável manter uma conversa sobre o tempo com alguém a quem o tempo parece escassear ou um diálogo de elevador em ascensor cujo destino parece ser a cave...
A Sara, a Fátima e a Teresa da notícia do jornal contam isso mesmo, o modo como se perde quase tudo o que era dado como adquirido: a auto-imagem, a auto-confiança, como ficámos despersonalizados, seres sem individualidade. E como se não bastasse a devastação interna, os outros, todos os outros, empurram-nos e mantêm-nos no canto sem abrigo dessa impessoalidade. Família, amores, amigos, conhecidos, estranhos – todos passam a fitar-nos com aquele olhar para emissário da morte em que nos tornámos... Infantilizados, também; de súbito passam a decidir sobre a nossa vida, a invadir o nosso espaço em nome do nosso bem; a doença permite esse à vontade de entrar sem bater à porta. Com excepção da angústia, nada nos é permitido de privado e não há quem entenda esse nosso novo estado de filigrana perecível; o único consolo vem de colegas de infortúnio, também esses perdidos nos recôncavos daquele mar alteroso, fincados a uma tábua como nós, no meio de surfistas, cabeludos e bronzeados, em pé na crista das ondas.
Por isso, a Sara, a Fátima e a Teresa insistem na importância de tentar manter uma aparência bonita como arma contra a doença e do bálsamo que é esta iniciativa da Liga Portuguesa Contra o Cancro (secção de Coimbra) que tem um cantinho onde se fornece às pessoas os acessórios e os cuidados necessários para manter uma imagem de espelho parecida com o que éramos antes de sermos atacados pelo inimigo. Sim, como é importante a aparência e, para uma mulher, penso que, talvez, ainda o seja mais. Sem mama(s), por vezes sem útero e sem ovários, sem cabelos, sem sobrancelhas, sem pestanas; a pele seca, escamada ou queimada... Quem quer estar numa pele destas? Precisamos de vestir uma armadura de aparência para enfrentar tudo isto e o mais que nos vai agredir a seguir, o que pode incluir os médicos e o marido! Todos sabemos que não é por mal que se faz este mal, mas o mal é feito, acrescentado.
Um fim de manhã gelado de Novembro, nu da cinta para cima, aguardava à porta da sala de tratamentos de radioterapia do Hospital de Santa Maria que o doente que estava lá dentro saísse, para entrar eu. A porta da sala onde está o acelerador linear é uma porta blindada, de caixa-forte, e enquanto o aparelho está a trabalhar ouve-se o ronco de uma sirene, como se estivéssemos perante um ataque aéreo. Lá dentro, sozinho, deitado numa mesa, à qual está mais ou menos amarrado para que as radiações incidam no local certo, estava o doente que respondeu à chamada antes de mim. A sirene tinha terminado o seu uivo rouco, eu esperava ao lado da porta, gelado por estar nu da cinta para cima, o meu peito e costas pintados com as tatuagens negras que indicavam as fronteiras dos locais a irradiar. A porta desdobrou-se, vi surgir da gruta um ser careca e nu da cinta para cima. Penso que o ser captou a surpresa do meu olhar, ao associar a sua figura actual à daquela senhora que costumava esperar vez, tão discretamente, tão elegantemente trajada, folheando uma revista na sala de espera... Ela avançou e, ao cruzar-se comigo, dirigiu-me um olhar de
“Promete que não contas a ninguém que me viste assim...”
ao qual eu, também usando apenas o olhar, respondi 
“Prometo, mas, sabes, estás bonita mesmo assim." 


© Pedro Serrano, entre o primeiro e o segundo tratamento de quimioterapia. Fotografia de Maria João Costa, Verão de 1996. 

26 dezembro 2010

BRAGA REVISITED

O António lembra vagamente um anjo constipado, com os seus olhos azuis-acinzentados, que espreitam por trás de umas pálpebras sonolentas, levemente descaídas, e a sua cabeleira fofa e loura talhada à pajem, na proximidade da qual é impossível evitar mergulhar os dedos, numa tentação macia de forro de ninho de ave.
Ele tem dez anos, é especialista em árvores de Natal sintéticas com ramos, e, por contiguidade, foi mesmo obrigado a desenvolver uma subespecialização em iluminações natalícias, o que implica todos os tipos de lâmpadas e de chamas, casquilhos, fichas-triplas, extensões e programadores de efeitos luminosos. No ano passado, ganhou o prémio Thomas Edison Lojas dos Trezentos, entregue pessoalmente pelo presidente da comunidade chinesa na Península Ibérica, o senhor Ping Peng, que se deslocou propositadamente de Barcelona ao Porto para presidir à cerimónia.
Tendo em conta todo este currículo, a minha prima Gabi contrata todos os anos os serviços do António para que lhe programe a árvore de Natal com ramos que possui e, ouvi dizer, que o senhor Feliciano, vizinho dos meus primos em Braga, vai requisitar a sua perícia para as Festas de 2011.


Sou admirador do conhecimento, rigor técnico e veia artística do António, já por aqui falei dele (Como lhe estava a dizer ) e este ano tive o prazer de, quando no dia 23 de Dezembro cheguei a Braga para o tradicional jantar nos Maias, o encontrar pessoalmente, no final da sua missão de rematar os enfeites da Gabi. Logo que acabámos de nos cumprimentar, ele quis saber todos os pormenores sobre o presépio e a árvore de Natal, também com ramos, que deixara montados em minha casa e, afortunadamente, tinha algumas fotos na memória do meu telemóvel, o que me permitiu mostrar-lhe com imagens a dança de cores das minhas iluminações, pois estava a ser difícil, com recurso somente a palavras, explicar o ciclo da sequência de cores: o azul-vermelho pálido inicial, o verde-azul frio que se segue e a frenética apoteose final de todas as lâmpadas piscando em simultâneo num disparate feliz de cores.
Depois fomos jantar ao Maia onde, no engolir tracejado de umas dúzias de croquetes, ficámos a par de mais alguns pormenores sobre a  complexa família do Sr. Matos, o empregado que parece um duende benfazejo e que, não tendo ainda 40 anos, tem sobrinhos com 70 anos e um irmão com 82! Prodígios quase de Natal que ligaram excelentemente com a calda dos sonhos e obrigaram o António a esconder a cara entre os dedos para não deixar derramar o riso na alva toalha de mesa.
No dia 24, ao princípio da tarde, a Gabi e a Teresinha saíram para umas desesperadas últimas compras e o Manel foi à clínica passar uma tranquilizante visita de Natal pelos doentes internados. Por seu lado, entre after-shaves e colónias, o Manelzinho preparava-se para sair para o Bananeiro, uma estranha tradição natalícia bracarense em que, em plena rua, multidões bebem vinho e comem bananas!
“Tens a certeza que ficas bem com ele?”, perguntou a Gabi perante a hipótese do António ficar sozinho comigo em casa, “não achas que ele pode chatear-te um bocadito?”
Assegurei-lhe que não, que íamos ficar lindamente. Sentado, à lareira, fui lendo, pausadamente, um conto da Flannery O’Connor, enquanto o António cirandava por ali, dando os últimos retoques nas iluminações ou, mais simplesmente, observando de perto o conjunto árvore-de-Natal-embrulhos-de-prendas-aos-seus-pés. De vez em quando, eu levantava-me para aconchegar a lareira e ele aproximava-se, perguntava sobre detalhes do que eu fazia. Expliquei-lhe com todo o pormenor as etapas e os segredos práticos de se manter uma lareira em bom funcionamento. Nestas coisas, todo o cuidado é pouco: é possível que um dia ele me recorde por isso. Depois propus-lhe:
“E se acendêssemos uma vela a sério, com fósforos?”
Ele gostou da ideia, mas, como bom engenheiro electrotécnico, preocupou-se com a tomada da decisão:
“Achas que a tia Gabi não ia ficar chateada?”
“Acho que não, afinal é Natal – que melhor altura para se acenderem velas?”
Acendemos a vela grossa, uma que está na mesinha ao lado do sofá em frente à lareira, e ficámos ali um pouco a ver a chama impor-se ao pavio. Voltei à leitura do conto e o António desapareceu por trás do sofá. O silêncio jorrou manso, só interrompido pelo crepitar da lareira.
“Há aqui outra vela”, ouvi, passado um pouco, a voz do António revelar, “até são três velas numa só... Achas que dava para a acender?”
Virei-me para trás, depois levantei-me e fui ter com ele que, no fundo da sala, de joelhos sobre o outro sofá, examinava cuidadosamente uma enorme vela rectangular, de tom amarelo-castanha-de-ovos, com três pavios distintos.
“Vamos acender isso...”, decidi, pois era impossível resistir a uma vela porta-aviões daquelas.
“Achas que a tia Gabi não se ia importar...?”, quis ele assegurar.
“Não”, dei de barato, “esta vela está para aqui há anos sem servir para nada!”
Risquei um fósforo, ofereci-lhe o privilégio:
“Queres acender tu?”
“Não, é melhor seres tu”, recusou com delicadeza.
“Tens medo de te queimar?”
Ele hesitou um pouco na resposta, penso que numa mistura de receio pelo atrevimento, mais pelas consequências sobre os dedos do evoluir da chama ao longo do palito do fósforo numa viagem por três pavios.
“É melhor seres tu...”
Acendi a vela, voltei ao meu sofá, repeguei o livro. Passados uns parágrafos, virei o pescoço, olhei para trás. Ele estava sentado no sofá, inclinado sobre o apoio, observando hipnotizadamente a trilogia luminosa.
Quando os meus primos chegaram, eu lia tranquilamente e, sentado no tapete, no meio de um estaleiro de Legos, o António construía uma árvore de Natal com ramos e sem curvas. A lareira ronronava, convidativa, e pelas colunas fluía a música de um concerto para trompa.
“É a banda sonora do Brideshead?”, perguntou o Manel?
“Parece, não é?”, respondi, “mas não, é Mozart...”
“Estiveram bem?”, perguntou a Gabi, sempre ansiosa, “ele deixou-te um bocadinho em paz?”
“Estivemos lindamente, em paz é o termo preciso. Mas acendemos-te duas velas", acrescentei. 


© Fotografias de Pedro Serrano. De cima para baixo: (1) Braga, 2010; (2) Praia da Areia Branca, 2010; (3-5) Braga, 2010. 

18 dezembro 2010

ÁGUA DOCE


© Foto de Pedro Serrano, Havana (Cuba), 2004.

Não nascida do mar, mas de uma piscina
Salpicando a tijoleira em pegadas divinas
Musa, em verso chão deixa que remate
Essa excelsa visão, à borda da piscina,
Mordiscando batatas fritas com ketchup

12 dezembro 2010

Quase leve, levemente

Maria, a comida vai prá mesa
Chama-me a Ana e a Teresa
Deixaram a lareira acesa
E na sala, não está ninguém! 
Não chores, pequenininho,
Que a tua mamã já lá vem
Olha a vaca e o burrinho
A aquecerem o menino
Na casinha de Belém

© Foto de Pedro Serrano, Natal 2009.

01 dezembro 2010

E ESSE SONO QUE NÃO DESCE

Passava qualquer coisa da uma da manhã.
Andara mais de uma semana por fora, acabara de chegar há escassas horas da Madeira, de modo que encontrei a casa gelada. Desfiz as malas e resolvi ir deitar-me, pois ainda me pareceu a forma mais expedita de aquecer.
Enfiei-me na cama e durante mais de meia-hora debati-me com a recepção virginal, enregelada e tesa, dos lençóis. Depois, lá me atrevi a aventurar, prudentemente, uma perna pelo Polo Sul dos confins da cama.
Amornado e desenrolado o corpo, estiquei um dedo no ar glaciar e apaguei o candeeiro. Iria agora concentrar-me na mente e começar o longo exercício de a alisar, de a pacificar, para possibilitar que o sono se aproximasse. Fechei a porta aos acontecimentos previstos para o dia seguinte e resisti a espreitar pela janela do que sucedera nesse dia, na véspera. Queria chegar a essa terra de ninguém onde, no meio da bruma, num chão de ansiolíticos, o sono se passeia incógnito. Acho que sim, parece que vejo alguém a aproximar-se lá ao fundo, não lhe vejo a face, mas usa um sobretudo de algodão cinzento névoa... Será o próprio sono ou antes um sósia, um daqueles hipnóticos de trazer por casa? A dúvida começou a esbater-se na minha consciência que, ela própria, começou a amolecer como uma madalena mergulhada em chá de tília.
O telemóvel retiniu na mesinha de cabeceira, a minha mente emitiu um “no!” com a entoação precisa do Homer Simpson. Acendi a luz, olhei o visor, vi quem era, reparei na hora:
Passava qualquer coisa da uma da manhã.
“Já estavas a dormir? Não te acordei, pois não?”
“Não”, respondi, lacónico, sentindo alguma dificuldade em rechear com frases os balões do diálogo.
“Estás com uma voz esquisita, o que se passa?”
“Não se passa nada, estou a atender-te deitado, tenho as cordas vocais desniveladas...”
“Ah, então, se calhar, acordei-te, Desculpa lá!”
“Não faz mal”, respondi, desejando que o assunto me fosse exposto. Devia haver um assunto, não? É que se íamos ficar só por aquele tipo de diálogo, estava a encontrar um travo a Bugs Bunny, travestido de Samuel Beckett,  nisso de me telefonarem à uma da manhã para me perguntarem “o que se passa, doutor!?”

“Estou a ligar-te por causa do João, estou um bocado preocupada. Queria que me dissesses se achas se o devo levar ou não ao hospital?”
“Agora?”, tentei precisar a primeira das cordilheiras de coordenadas que pressentia aquela conversa ter de atravessar e esclarecer.
“Sim, não dorme e está com uma respiração esquisita?”
“Esquisita, como?”
“Crepitante...”
“O que entendes por crepitante?”, perguntei, para ajustar conceitos e entendimentos, uma vez que não estava a ver nem a ouvir a respiração da criança, apenas ouvia, em pano de fundo, o tagarelar de uma criança divertida por estar acordada até tão tarde.
“Sei lá, sabes, aquele barulho quando se respira...?” (E imitou mais ou menos o ruído pelo qual ensinámos às crianças as onomatopeias das vozes animais. “Como faz o porquinho, como faz? Rró-rró”). E acrescentou:
“Não é muito percebes, até já esteve pior... O que me preocupa é que não dorme...”
“Já esteve pior, como? Há quanto tempo é que está assim, quando é que isto tudo começou O que é que ele tem, afinal?”
“Infecção respiratória. Há uns três ou quatro dias. Estava com um bocadito de febre e este crepitar. A médica auscultou-o, disse que tinha alguns roncos, receitou um antibiótico... Disse para lhe dar Atrovent se a tosse piorasse muito.”
“E ele tem febre agora?”
“Não, não tem febre nenhuma. Já não tem febre há dois dias.”
“E a tosse, como é que tem evoluído?”
“Ah, agora está praticamente sem tosse nenhuma...”
“Então qual era a tua ideia de o levares ao hospital a esta hora, com este frio? Sabes quantos graus estão lá fora? Cinco, cinco graus!”
“Era mais porque ele não dorme, não consigo que ele adormeça, tenho medo que alguma coisa piore...”
“E por que raio havia de piorar? Teve um princípio de infecção respiratória, está a tomar antibiótico, a febre desapareceu, não tem tosse...”
“Mas tinha aquele crepitar, faz-me impressão estar aqui ao lado dele e ouvir aquilo... Agora, que estou a falar contigo, já estou mais calma, nem me parece ter muito sentido levá-lo ao hospital. Mas ele não dorme, é uma da manhã e ele não dorme...”
“Tens-lhe dado de beber o suficiente? Resume lá tudo o que ele está a tomar neste momento...”
“Está a tomar antibiótico (Clamoxyl), dei-lhe Brufen para a febre e também lhe dei  Atrovent...”
“Atrovent, para quê?”
“A pediatra disse-me para lhe dar se a tosse piorasse...”
“Mas disseste-me que ele estava muito melhor da tosse, que praticamente já não tem tosse...”
“Pois, mas como ele estava com este barulho, tive medo que piorasse...”
“Quantas vezes lhe deste o Atrovent hoje?”
“.... Duas, a última delas há cerca de três horas...”
“Sabias que o Atrovent funciona um pouco como um excitante?”
“Não! Disseram-me que até fazia sono...”
“Ah, claro, há até quem o use para dormir! Ora lê aí no papel os efeitos secundários sobre o sistema cardiovascular...”
Do lado de cá do fio ouvi o único crepitar dessa noite, o de um papel a ser desdobrado. Depois ela começou a ler alto:
“Sistema cardiovascular, sistema cardiovascular... Ah, está aqui: taquicardia, arritmia, fibrilação auricular...”
Interrompi-a, para evitar que se embebesse na espiral dos efeitos secundários e começasse a induzir sintomas nela própria e, depois, na insone criança.
“Sabes o que é uma taquicardia?”
“Sim, é quando o coração começa a bater depressa de mais.”
“Pois, e achas que isso acalma ou excita?”
“Excita, claro!”
“E achas que estar excitado é bom para uma criança adormecer?”
“Não...”
“Agora imagina o desgraçado do puto: tem a mãe em cima dele, no quarto, as luzes acesas, ela a espreitar constantemente: a ver se crepita, se está roxo, se tem febre, se está suado, se respira, e, pior do que tudo, a dar-lhe – sem necessidade nenhuma e só para ela própria se acalmar – um medicamente que faz agitar o coração do rapaz. COMO É QUE QUERES QUE ELE DURMA? E agora, ainda por cima, queres sair com ele a esta hora e levá-lo para o meio de uma noite gelada, que é para o matares, à força, com uma pneumonia! Esse rapaz não vai chegar aos quatro anos, a mãe vai matá-lo antes!”
Do lado de lá, a minha loura maluca, desatou a rir. Depois disse:
“Tás a ver? É por isso que eu gosto de falar contigo: acalmas-me. Eu achava que era um bocado um disparate levá-lo ao hospital, mas agora tenho a certeza e sinto-me muito melhor...”
“Pois... Deixa o gajo em paz, porra, apaga-lhe a luz e vai dormir, deixa-o dormir!”
“Ah, ah, ah”, ela continuava a rir e muito divertida. Rematou:
“Sabes, eu, de tudo o que estás a dizer, só aproveito mesmo o que é importante, o resto não te ligo. Vá, agora vai dormir”
Desliguei, apaguei a luz e recomecei tudo do zero.


MILAGRIZAR

© Pedro Serrano, Cascais, Natal 2009.


Deseja-se um frio todo sobrenatural
Ao abrigo de paredes de pedra e cal
Acalanta-se o pavio de uma luz especial
Sobre a tábua-extra da mesa de Natal

21 novembro 2010

HIGH SE CAI, AI SKY


Olha, a nuvem engoliu o avião
Sim, e o que é que isso tem?
Já viste, tão alto que vão?
Ai! Oxalá cheguem bem...

Olha, entrámos no nevoeiro
Sim, e o que é que isso tem?
Oxalá o avião chegue inteiro!
Achas que eles ficaram bem?

Olha, vês aquele pontinho além?
Sim, e o que é que isso tem?
Se o vemos, eles veem-nos também!


Olha, saímos do nevoeiro
Sim, e o que é que isso tem?
Lá em baixo já não se vê ninguém!








© Fotos de Pedro Serrano: (1) Golfo da Guiné, 2010; (2) Mar da China, 2002.

Efeitos secundários [excerto de entrevista]

ML (jornalista): Pode-nos falar um pouco mais sobre a sua experiência com os doentes de lepra?
PS (entrevistado): Como sabe, um dos efeitos secundários do 25 de Abril foi a liberdade. Uma das facetas do exercício em prol desse desiderato passou por abrir as portas anteriormente fechadas, devolver à comunidade todos os seus filhos… Isso começou com os presos políticos, continuou pelos loucos e acabou nos leprosos.



Do ponto de vista técnico, este relaxe era bastante viável, pois, no que aos malucos dizia respeito, o arsenal terapêutico dos anos 70/80 permitia manter os doentes mentais, mesmo os mais assanhados, numa contenção compatível com a vida ao ar livre. Quanto aos leprosos, a sua libertação era igualmente possível: o seu número já era, em Portugal e mau-grado a ditadura, muito diminuto, sabe-se que o contágio é difícil e lento, e as drogas usadas no tratamento da doença são muito eficazes, mesmo em ambiente fascista.
Quem, curiosamente, não achou muita graça a todo este jorrar de liberdade foi a dita comunidade que, posta em sossego e sem ter sido preparada, lhe viu ser devolvida, num repente, antigas dores de cabeça e antiquíssimos horrores.
ML: Sim, mas voltando aos leprosos…
PS: Como sabe, a Revolução dos Cravos foi em 1974 e uma escassa meia-dúzia de anos depois arranquei eu para Trás-os-Montes, com a incumbência de dirigir o Centro de Saúde de Regato da Mágoa, o primeiro dos cinco Centros de Saúde de um projecto Luso-Norueguês no âmbito da Saúde. A Noruega, depois de anos a apoiar os movimentos de libertação africanos, sentia-se, agora que Portugal  abraçara a senda democrática, de consciência pesada e resolveu investir no nosso atrasado país. E, como se faz com qualquer país subdesenvolvido de gema, fê-lo investindo numa área geográfica onde a mortalidade infantil rondava as 7 mortes por cada 100 crianças com menos de um ano de idade, onde havia tétano em recém-nascidos, surtos de febre tifóide, o sarampo matava que se fartava. Abundava o alcoolismo e a subnutrição infantil, em cada 100 crianças em idade escolar 75 abrigavam parasitas na barriga, havia tuberculose de escarro sangrento e, ah!, lepra.
ML: Pois… Mas se pudesse focar-se nos leprosos, no tal Sr. António Veiga de que me falou ao telefone.
PS: Como sabe, a responsabilidade tecnico-hierárquica pela doença de Hansen (outro nome para este flagelo) competia, como ainda compete, à Direcção-Geral da Saúde. Havia, até, um programa vertical de combate a esta micobacteriose tão indesejável. Assim, mal aterrei em Trás-os-Montes (Outono de 1980, os castanheiros chamejavam a paisagem e os seus frutos sado-masoch, revestidos a couro e pico, pejavam os solos) recebi um contacto dos Serviços Lisboetas, a indagarem da minha disponibilidade para ser responsável pelos 10 leprosos registados no concelho. É que queriam passar a pasta...
ML: A pasta?!
PS: Sim. Como sabe, até pouco tempo antes todos os leprosos do país estavam confinados numa instituição orientada para o efeito, uma quinta ali para os lados de Cantanhede, conhecida pela Tocha (o nome da localidade mais próxima). Todos os leprosos do país se achavam ali internados, numa espécie de turismo rural prolongado. Famílias inteiras, a lepra – devido ao seu modo de contágio lento e íntimo – é uma doença de grande incidência familiar, hospedadas e tomando a sua medicação em regime muito confortável para quem trata (podia-se controlar uma toma observada da medicação) e para a sociedade, que podia andar descansada pelas ruas do país sem risco de se cruzar com esses descartáveis ambulantes, que já nem campainha ao pescoço eram obrigados a usar, como acontecia nos previdentes tempos da Idade Média!
Com o 25 de Abril toda essa malta foi devolvida à comunidade, até porque já eram poucos e tudo aquilo ficava muito caro, não sei, até, se já não começava a tilintar a ideia de fazer da Tocha um hotel de charme, albergando um celebrativo e nostálgico bar chamado Under My Skin.
A comunidade, como sabe e como lhe dizia no princípio desta agradável troca de impressões, não achou graça a esta devolução e, o que é mais curioso, os leprosos também não! Por um lado, eles imaginavam bem como iam ser recebidos por parentes e vizinhos, por outro, alguns dos doentes mais novos não tinham conhecido na vida outro lugar a não ser a quinta da Tocha, onde chegou a haver escola e tudo. Era, para todos os efeitos, o seu (quero dizer: deles) lar.
Foi isto que herdei, como, calculo, outros colegas terão herdado semelhante no resto do país. Dez leprosos, mais os medicamentos para os tratar; a responsabilidade de os manter controlados, a obrigação de comunicar o surgimento de novos casos, o evoluir dessas duas mãos cheia de doentes, passe a imagem, para uma cura ou para a morte.
Nada disso se revelou muito difícil. Todos eles, convidados a deixar a Tocha há relativo pouco tempo, estavam mais do que interessados em continuar o tratamento e os medicamentos não se vendiam nas farmácias, era o Centro de Saúde que guardava o stock e o distribuía de acordo com as necessidades. Alguns dos doentes surgiram no Centro de Saúde por iniciativa própria, a outros escrevi pedindo que aparecessem, a um ou outro, mais tímido, foi a equipa do centro de saúde procurar.
Os que apareceram espontaneamente foram recebidos, quase ao modo iraniano da pedrada, pelo pessoal da secretaria. A primeira vez que isso aconteceu, envergonhado e logo que discorri a motivação daquele alarido, fui procurar o indesejado em causa ao jardim, convidei-a para entrar, recebi-o no meu gabinete de director.
Quem tinha sentado à minha frente era um senhor delicado, com um cabelo branco-de-neve cortado à escovinha e uma face onde luziam uns olhos azuis inteligentes, um deles algo riscado pelo tom clara-cozida de uma catarata. Chamava-se António Veiga, tinha uns bem conservados 81 anos e, enquanto falava com ele, eu tentava, disfarçadamente, encontrar no seu corpo alguns dos psichés que associamos à lepra, talvez ver cair-me à frente dos olhos o seu nariz. Nada, o que mais impressionava naquela figura era o ar arguto, o pensamento claro, a pose aristocrática; a camisa de colarinhos engomados e tesos, própria para ir à vila. Depois... Bem, olhando com atenção, o Sr. Veiga tinha as sobrancelhas um tanto rarefeitas, a arcada supraorbital era um nada reforçada, o que lhe conferia um fácies remotamente leonino; talvez lhe faltassem duas ou três pontas dos dedos (já não me lembro) nas mãos que se exprimiam tão condizentemente com o discurso.

19 novembro 2010

Como lhe estava a dizer

Falávamos do Natal, a chamada foi abaixo e acabei por não lhe contar:
No ano passado fui para cima a 22 de Dezembro, fiquei no meu hotel da avenida da Boavista. Embora seja do Porto, embora quase toda a minha família more por lá, deixei de aí ter casa desde a morte do meu pai, um Novembro há três anos... Releio com apreensão a frase que acabei de escrever, pois, sendo verdadeira, não é exacta. De facto já não tenho casa minha no Porto desde 1977, ano em que deixei a casa dos meus pais para ir trabalhar e residir em casa própria, uma moradia assombrada na rua das Trinas, em Guimarães. Por outro lado, continuo a ter casas no Porto onde ficar, meu Deus, a boa vontade e o afecto das minhas irmãs, tios, primos, cruxificar-me-iam se insinuasse que poderia ter de dormir ao relento. Mas, salvaguardadas estas nuances, a casa dos meus pais, embora o edifício lá continue, desapareceu e com ela o meu poiso natural nas idas ao Porto. Agora, o lugar das minhas prendas de Natal é a mala do meu carro.  
Na noite de 23 fui a Braga, ter com o meu primo Manel e a minha prima Gabriela, mulher dele. O Manel cresceu comigo desde que me lembro, de modo que funciona mais como irmão do que propriamente como primo e até mais do que talvez um irmão, pois a confortável distância que permite uma relação primal possibilitou que misturássemos a partilha familiar com a cumplicidade de melhores amigos. Por tudo isto, aquele núcleo integra o conjunto de prendas que, todos os anos, acumulo em sacos de plástico como presentes de primeira instância. E ao fim da tarde de 23, sob chuva torrencial e noite cerrada, arranquei para Braga, para fazermos a nossa parcial e primeira ceia de Natal, pois voltámos depois a encontrar-nos em jantar natalício mais alargado no dia 24 de Dezembro. 



A árvore de Natal dos meus primos está riquíssima, especialmente lotada de enfeites, não há ali espaço, da estrela do topo aos ramos que roçam os presentes acumulados na base, para pendurar mais um anjinho, estrela, lua, serpentina de luzes, bola colorida.
“Compraste mais enfeites?” perguntei à minha prima, uma vez que a árvore é sempre a mesma.
“Não”, explicou, “foi o António que fez a decoração e como achou que só se vê este lado da árvore...”
O António tem sete ou oito anos, é obcecado pelo pormenor e pela sua aplicação rigorosa, e como a árvore é sempre montada encostada a uma das portas-janelas que dá para o quintal, achou que não valia a pena perder tempo com a metade do todo que não é acessível aos olhos da gente da casa. Para além do mais, o Natal é sempre à noite e de noite as persianas estão fechadas, não deve andar ninguém pelas ruas numa noite de Natal! E quem andar, vendedoras de fósforos e outras almas que batem leve, levemente, deve ser rapidamente arrancada ao exterior e milagrizada. Sendo tal, o António tem razão, não nos devemos preocupar com o exterior e basta a árvore estar enfeitada de um só lado.   
Depois, nessa noite, fomos jantar, ao Maia, no cimo do monte do Sameiro. A estrada serpenteia por ali acima, por entre árvores e curvas apertadas, numa certa sensação de perigo e de ambiente de floresta negra de conto infantil. É com alívio e surpresa que se chega ao cimo, se encontra à nossa espera um local acolhedor, de lareira acesa e apainelados de madeira e onde se come divinamente. Imperturbáveis aos olhares alheios, as nossas almas esfregam as mãos quando, passado o corta-vento da porta, deparamos com o branco imaculado das toalhas de mesa e vemos avançar na nossa direcção o largo sorriso de laço preto e de boas-vindas do sr. Matos, o nosso duende de estimação, o nosso ente protector.
No Maia, para além de se comer divinamente, não se paga! Quer dizer, nós não pagamos, que os outros pagam e aquilo não é barato. Mas acontece que o meu primo Manel é médico da D. Mariazinha, a dona daquilo tudo, e ela não permite, nem sequer quer que a ideia lhe seja apresentada, que o seu clínico preferido pague. E nessas investidas ao Maia somos sempre cinco: o Manel e a Gabriela, os sorridentes filhos do casal (Terezinha e Manelzinho) e, claro, a entidade gentil que lhe narra esta história.


17 novembro 2010

The butter snail




   Riso, meu friso

   Liso, meu siso
   Derramo meu pranto
   Sobre o agapanto.

   Visco é meu cisco

   No olho da troncha
   Que decepa a Concha.

   Quem decepa a troncha
   É o olho da Concha

   Enquanto, liso e friso,
   Repolho de riso.






© Foto: Ricardo Ventura, Kyoto (Japão), 2006.

10 novembro 2010

Perigosa Cuba!

Se Havana está virada para os Estados Unidos e nas barbas de Miami, Trinidad é vizinha das ilhas Caymão e da Jamaica, das quais está separada por um braço do mar das Caraíbas. A distância entre as duas cidades cubanas ronda os 700 km e, ao percorrê-los por estrada, tínhamos como principal finalidade conhecer a mítica Casa da Música.
Face à expectativa, a primeira impressão foi fraca: a famosa Casa da Música de Trinidad não passa de um pátio, com as paredes que o enclausuram cobertas por trepadeiras, dotado de um pequeno estrado que funciona como palco, um barzito lá ao fundo e, como recinto da plateia, uma dezena e meia de mesas em ferro forjado branco, um tanto kitsch como as pouco confortáveis cadeiras a condizer.
Quando lá entrámos pela primeira vez, seriam umas 2 da tarde, já se ouvia música do lado de fora das paredes. De facto, as sessões começam ali cerca das 10 da manhã e prolongam-se, sem interrupção, até às duas ou três da madrugada! Cada banda em palco ocupa o espaço cerca de uma hora e, a seguir, vem outra e depois outra e outra e outra... Meu Deus, como pode uma cidade de 65.000 almas produzir tanta música e tanto quem a toque?!
Entrámos no recinto timidamente, fazendo o possível por atenuar o ruído produzido pelas  pesadas cadeiras ao serem arrastadas. Lentamente, fomo-nos ambientando e o Zé João tirou a máquina de filmar da bolsa, começou a filmar o palco discretamente.
“Zé, achas que ofereça uma bebida aos músicos que estão no palco?”, perguntei, umas duas horas depois, entusiasmado perante uma banda particularmente dotada, onde sobressaía um contrabaixo com os flancos atravessados por buracos de bala.
Ele encolheu os ombros, não disse palavra e, se dissesse, provavelmente eu não a teria ouvido tal era o volume de som circundante. Fiz um sinal à menina do bar, expliquei-lhe o que queria. Minutos depois vi-a subir ao palco com uma bandeja carregada de garrafas. Depois, os músicos olharam na nossa direcção, sem interromper o que fazia um deles segredou qualquer coisa à rapariga e, com a bandeja incólume, ela desceu do estrado, aproximou-se da nossa mesa e dispôs as garrafas no tampo. Logo a seguir, sempre sem deixar de tocar, os músicos foram saltando do palco e vieram sentar-se à nossa volta. Ali permaneceram, bebendo e tocando para nós, até se darem conta que tinham de ir jantar para continuarem a função da noite noutro local. Quanto a nós, sem programa definido, acabámos por ir jantar com um deles num restaurante clandestino a funcionar dentro de um quintal murado, onde fomos os únicos clientes, e que, por acaso, era pertença do marido de uma prima dele.

Trinidad (Cuba), Casa da Música, Setembro 2004
 Canção: "Hermosa Habana", bolero de Rolando Vergara.  
© Filme: José João Serrano.

05 novembro 2010

Contigo en la distancia

Ao contrário da Índia, onde, apesar da riqueza do país nessa arte, me vi aflito para a ouvir ao vivo, em Cuba acorda-se com música, vive-se imerso em música todo o dia, adormece-se ao som da música que, noite dentro, sobe até à janela do quarto do hotel.
O fenómeno é nacional (dizem eles, sobre si mesmo, que são dez milhões, dos quais cinco milhões são músicos), mas veja-se, por exemplo, o caso do Hotel Nacional, em Havana. Ali tropeça-se em música, não apenas a ao vivo, mas também nos ectoplasmas da que por ali andou. Nat King Cole esteve por lá nos anos 50, actuou no Tropicana com grande sucesso e, por ser negro, foi impedido de ficar na ala principal do Nacional, sendo empurrado para os aposentos, mais discretos, onde eram alojados conhecidos membros da Mafia. As suas fotografias, sorridente para a eternidade e indiferente a tais pormenores, enchem agora paredes nobres do hotel, em vizinhança com as de Frank Sinatra... E, ao passar entre corredores, podemos acariciar, com mão incrédula, as peles do gigantesco par de congas que Robert Plant, o lendário vocalista dos Led Zeppelin, ofereceu ao hotel quando por lá esteve.
Acabo de me sentar, ainda estremunhado pelas moléculas remanescentes do rum Havana Club (Añejo Reserva) da noite anterior, nas poltronas de palhinha das arcadas, com vista para o mar; pedi o pequeno almoço. Passa um pouco das onze e o Zé João ficou a dormir, os seus 15 anos também se ressentem do rum, que anda a beber em excesso para o meu gosto de pai. Mas um dia não são dias, apesar de esses dias serem noites.
Esqueci os óculos escuros no quarto e enfrento a luz forte de olhos semicerrados, embalado no crepitar incessante das folhas das palmeiras, que roçam entre si as agulhas verde-gafanhoto sob a brisa que sobe do Malecón, quando sinto uma presença no meu campo de visão. À minha frente perfilam-se quatro pessoas: uma rapariga leva aos lábios uma flauta transversal, um rapagão debruça-se amorosamente sobre um contrabaixo cujos reflexos envernizados são praticamente da cor do rum de ontem à noite; um veterano segura uma guitarra acústica junto ao pescoço e o quarto elemento do grupo, com semelhante quantidade de neve capilar, empunha umas maracas na minha direcção, prontas a disparar.
O líder do conjunto é o senhor da guitarra e, num sorriso obsequioso, pergunta se podem tocar para mim, se desejo ouvir algo em particular... Levanto-me sempre um pouco do cadeirão quando sou abordado por esta gente, sinto que sou alvo de uma deferência especial e já sei que, como acontece com todos eles, são músicos maravilhosamente competentes. Timidamente, pergunto se poderiam tocar-me o “Contigo En La Distancia”... Sorriem muito – é que a música é mesmo cubana, não mexicana, argentina ou porto-riquenha; conheço-a pela mão do Caetano Veloso e do álbum Fina Estampa, essa joia-prima. Àquela hora da manhã sou o único tipo sentado sob as arcadas, de modo que eles entretêm-se na minha companhia. A seguir, abusando do meu privilégio, peço o "La Luna En Tu Mirada” e, depois, a “Rumba Azul” e o “Mi Cocodrilo Verde”, estas duas também músicas cubanas. O som da flauta ondula, argentino, no ar e eu desejo que entre pelas venezianas do quarto e acorde aquele burro, que não sabe o que está a perder.
Consolado, pego na tosta mista e no sumo de piña, que não tive lata de consumir enquanto o grupo estava a tocar para mim, dividido entre a sensação de sacrilégio e o desejo de lhes perguntar se eram servidos.  Acabo de dar a primeira dentada e eis que sinto uma nova presença no meu campo visual... Desta vez são apenas três: duas guitarras e umas maracas, a perguntar se podem tocar para mim e o que desejaria eu ouvir. Acho que vou ter de ir trocar dólares mais cedo do que previa.

© Fotos de Pedro Serrano: Habana, Cuba (2004).


Notas: "Contigo En La Distancia" (César Portillo de La Luz), Cuba, 1952; "La Luna En Tu Mirada" (Luis Chanivecky); "Rumba Azul" (Armando Orefiche), Cuba, 1942; "Mi Cocodrilo Verde" (José Dolores Quiñones), Cuba, [?].  

04 novembro 2010

Sereias & outros moluscos

Habana (Cuba), 2004. © Filme: Pedro Serrano. 
Música: California Dreamin' (J. Phillips/M. Phillips), 
do álbum de George Benson: White Rabbit, 1971. 

31 outubro 2010

VOU-TE CONTAR: 28. Entrada Norte

Banqueiros do Porto (o meu avô é o primeiro sentado à esquerda).
O pai da minha mãe era director de um Banco, mas não é por esse lado que o recordo, nem acho que fosse assim que ele gostava, maioritariamente, de se ver ou de vir a ser recordado. 
Morreu num fim de tarde em que eu saía para ia marcar uma operação às amígdalas; tinha oito anos e não me deixaram assistir a nada relacionado com a sua morte. Lembro melhor a sua sala de jantar do que a ele, recordo com mais nitidez o seu escritório do que os seus gestos ou a sua voz.
O meu avô escrevia que se fartava, escreveu sobretudo comédias, mas também poesia e ainda arranjou espaço para traduzir para português o Stephen Zweig. Gostava particularmente de escrever para teatro e as suas peças tanto foram estreadas, para plateias cheias e rendidas, no Teatro Sá da Bandeira como no salão do bilhar da sua casa, as filhas, as noras e as sobrinhas a fazerem de actores, a mulher no guarda-roupa, naquele género de utilização da família que, muitos anos depois, se tornaram pedra de toque de tipos como Francis Ford Coppola ou Martin Scorsese... Europa do Sul, nativa ou exportada.
Uma das suas peças (A Costureirinha da Sé), escrita a meias com um amigo, uma opereta passada no Porto, fez tal sucesso que se transformou em filme, o primeiro filme português a cores (Manuel Guimarães, 1959).
Mas, como dizia, recordo mal o meu avô e o que tenho a riscar-me a memória são cenas fortuitas, como encontrá-lo no terreiro da sua enorme moradia a preparar-se para entrar num Peugeot 403 bicolor, castanho e preto e, ao ver-nos chegar pelos portões escancarados, tirar do bolso do sobretudo um par de sapatilhas, com que tinha a mania de nos presentear. Todo o acto a desenrolar-se sob o olhar atento da minha avó, que na sua estatura mignone, vestida de negro e com golas de pele, fazia lembrar o perfil da Giulietta Massina, a grande dama do cinema italiano e companheira amantíssima de Federico Fellini.
De raspão, antes de ser puxado para fora por poder estar a incomodar, tive também um vislumbre dos bastidores da feitura do Almanaque do Porto, um produto que ele imaginou e concebeu por mais de uma década, presença costumeira nos lares do Porto e minha companhia fiel nos tempos em que, sentado na retrete, mal chegava com os pés ao chão. Anedotas, charadas, palavras cruzadas, provérbios, fotos da nossa terra (que nesse tempo ia de Famalicão a Diu e de Monsaraz a Lourenço Marques), conselhos agrícolas, fases da lua, curiosidades científicas e do mundo do celulóide, um protótipo de banda desenhada, enfim – tudo quanto pode ambicionar uma leitura transgeracional light e variada.
Entrada Norte (anos 50 e, já aqui por cima, ano 2004) .



Eis o meu avô, de pé, por trás da sua escrivaninha de madeira cor de tabaco, empunhando um frasco de cola com uma embocadura que parecia um tetina de biberão, a colar, em folhas de papel almaço, recortes de notícias, quadriculados de palavras-cruzadas, fotos preto-e-branco. Foi o meu primeiro contacto com a edição e a surpresa de perceber que qualquer obra definitiva tivera os seus dias de andaimes. Nunca soube (aliás, nem ele nem eu), que nesses momentos fugazes me estava a passar as bases do entendimento da obra a vir e do valor da perseverança.
Lugares sagrados da minha infância, essa parte da casa dos meus avós onde ficava, entre vidros e dourados, a luxuosa sala do piano, o escritório do meu avô e, até, o lavabo contíguo à entrada Norte da casa, uma entrada que, embora fosse a principal da casa, raramente era usada por tão formal e pouco prática e em que o lavabo, por razões gémeas de diminuta utilização, mantinha um ténue, levíssimo, aéreo, aroma a esgoto. Mas, sabe-se da sensibilidade de olfactos praticamente virgens e como são arquivadas nas gavetas mágicas e definitivas dos sentidos os potentes produtos do gatilho da imaginação. Recordámos, eu e os meus primos, esse perfume sanitário com tal precisão que, agora que a casa foi vendida a terceiros e esse mundo se impediu de ser pisado, o conseguiremos reconhecer de imediato se, porventura, pelo facto de o mundo ser redondo, toparmos com ele noutra latitude.    

 © Imagens (de cima para baixo): (1) Porto, anos 40, fotógrafo desconhecido; (2) Convite para a peça de teatro O Filho Que Deus Me Deu, 1954; (3) Porto, anos 50, fotógrafo desconhecido; (4) Porto, Pedro Serrano, 2004.