19 novembro 2010

Como lhe estava a dizer

Falávamos do Natal, a chamada foi abaixo e acabei por não lhe contar:
No ano passado fui para cima a 22 de Dezembro, fiquei no meu hotel da avenida da Boavista. Embora seja do Porto, embora quase toda a minha família more por lá, deixei de aí ter casa desde a morte do meu pai, um Novembro há três anos... Releio com apreensão a frase que acabei de escrever, pois, sendo verdadeira, não é exacta. De facto já não tenho casa minha no Porto desde 1977, ano em que deixei a casa dos meus pais para ir trabalhar e residir em casa própria, uma moradia assombrada na rua das Trinas, em Guimarães. Por outro lado, continuo a ter casas no Porto onde ficar, meu Deus, a boa vontade e o afecto das minhas irmãs, tios, primos, cruxificar-me-iam se insinuasse que poderia ter de dormir ao relento. Mas, salvaguardadas estas nuances, a casa dos meus pais, embora o edifício lá continue, desapareceu e com ela o meu poiso natural nas idas ao Porto. Agora, o lugar das minhas prendas de Natal é a mala do meu carro.  
Na noite de 23 fui a Braga, ter com o meu primo Manel e a minha prima Gabriela, mulher dele. O Manel cresceu comigo desde que me lembro, de modo que funciona mais como irmão do que propriamente como primo e até mais do que talvez um irmão, pois a confortável distância que permite uma relação primal possibilitou que misturássemos a partilha familiar com a cumplicidade de melhores amigos. Por tudo isto, aquele núcleo integra o conjunto de prendas que, todos os anos, acumulo em sacos de plástico como presentes de primeira instância. E ao fim da tarde de 23, sob chuva torrencial e noite cerrada, arranquei para Braga, para fazermos a nossa parcial e primeira ceia de Natal, pois voltámos depois a encontrar-nos em jantar natalício mais alargado no dia 24 de Dezembro. 



A árvore de Natal dos meus primos está riquíssima, especialmente lotada de enfeites, não há ali espaço, da estrela do topo aos ramos que roçam os presentes acumulados na base, para pendurar mais um anjinho, estrela, lua, serpentina de luzes, bola colorida.
“Compraste mais enfeites?” perguntei à minha prima, uma vez que a árvore é sempre a mesma.
“Não”, explicou, “foi o António que fez a decoração e como achou que só se vê este lado da árvore...”
O António tem sete ou oito anos, é obcecado pelo pormenor e pela sua aplicação rigorosa, e como a árvore é sempre montada encostada a uma das portas-janelas que dá para o quintal, achou que não valia a pena perder tempo com a metade do todo que não é acessível aos olhos da gente da casa. Para além do mais, o Natal é sempre à noite e de noite as persianas estão fechadas, não deve andar ninguém pelas ruas numa noite de Natal! E quem andar, vendedoras de fósforos e outras almas que batem leve, levemente, deve ser rapidamente arrancada ao exterior e milagrizada. Sendo tal, o António tem razão, não nos devemos preocupar com o exterior e basta a árvore estar enfeitada de um só lado.   
Depois, nessa noite, fomos jantar, ao Maia, no cimo do monte do Sameiro. A estrada serpenteia por ali acima, por entre árvores e curvas apertadas, numa certa sensação de perigo e de ambiente de floresta negra de conto infantil. É com alívio e surpresa que se chega ao cimo, se encontra à nossa espera um local acolhedor, de lareira acesa e apainelados de madeira e onde se come divinamente. Imperturbáveis aos olhares alheios, as nossas almas esfregam as mãos quando, passado o corta-vento da porta, deparamos com o branco imaculado das toalhas de mesa e vemos avançar na nossa direcção o largo sorriso de laço preto e de boas-vindas do sr. Matos, o nosso duende de estimação, o nosso ente protector.
No Maia, para além de se comer divinamente, não se paga! Quer dizer, nós não pagamos, que os outros pagam e aquilo não é barato. Mas acontece que o meu primo Manel é médico da D. Mariazinha, a dona daquilo tudo, e ela não permite, nem sequer quer que a ideia lhe seja apresentada, que o seu clínico preferido pague. E nessas investidas ao Maia somos sempre cinco: o Manel e a Gabriela, os sorridentes filhos do casal (Terezinha e Manelzinho) e, claro, a entidade gentil que lhe narra esta história.


Faz parte da tradição que, ao decidir o sítio onde vamos jantar e antes de arrancarmos, a Gabriela exteriorize os seus remorsos e o indecente que é irmos, mais uma vez, abusar da D. Mariazinha.
“É muito chato, já se sabe que ela não nos vai deixar pagar; não sei o que me parece...”
Mas a todos nós acaba por nos parecer que é ali que nos sentimos mesmo bem naquela ceia de Natal e a ideia dos croquetes de vitela que podem estar no cimo do monte e da invernia à nossa espera acaba por nos empurrar porta fora, já a salivar de antecipação. E a minha prima, apesar dos remorsos que lhe ficam tão bem, acaba a atacar os croquetes com paixão.
Olhe que só no ano passado tomei consciência plena de que o jantar no Maia se tinha tornado tradição natalícia. A tradição vai acontecendo sem a gente se dar conta e que riqueza a gente ter oportunidade de se dar conta, porque, às vezes, só damos conta disso ao constatar a perda! Não acha?
Cá em baixo, no regresso, a lareira ainda continuava a ronronar, foi só dar-lhe uma cavaca nova para que ela a lambesse em cor de laranja.
“E se abríssemos as prendas?”, perguntou a Terezinha, morta por poder extasiar-se com os presentes a que, com aplicação, tinha descolado a fita-cola durante a tarde para uma primeira espreitadela.
“A tua casa está muito bonita”, dei por mim a dizer à minha prima quando lhe dei o beijo de despedida, antes de me meter no carro e na noite gelada de regresso ao Porto.




© Fotos: Pedro Serrano, de cima para baixo: (1) Braga, 2009; (2) Braga, 2010; (3) Braga, 2009.

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