Depois dessa hecatombe o cemitério recebera apenas mais dois defuntos: um guarda, fulminado por apoplexia no acto de revistar o porta-bagagens de um automóvel estrangeiro e, mais recentemente, uns cinco anos – se não erro – um civil, que atravessara a fronteira a pé e morreu, inesperadamente, no mictório do posto fronteiriço. Era homem magro, ainda novo e vestia um fato azul-claro, claro e leve em demasia para o gélido inverno desse ano.
O que levaria um tipo a vestir-se assim em Janeiro? Será que não possuía outro fato? Nunca se soube, pois transitava sem bagagem. Será que teria sido obrigado a abandonar à pressa alguma cidade? Ninguém reclamou o cadáver e chegou a pensar-se serem falsos os seus documentos, suposição alicerçada no facto de o defunto ser desconhecido na sua freguesia de residência.
Sem dinheiro, com má-fama, o cadáver acabou por ser enterrado sem caixão, ou sequer um lençol, e nada de humano ficou a assinalar o ponto exacto onde jazia. Apenas a Natureza se encarregou de diferençar aquele solo, diverso de todos os outros: no sinistro canteiro o solo aluiu e fixou uma depressão rectangular com um palmo de profundidade.
II
Agosto. É meio-dia. Está de ananases.
Não há turista que se aventure pelos caminhos de Penaformosa. Para uma tal excitação das glândulas sudoríparas, o Sahara é mais mundano. Os guardas bateram as portas, fecharam janelas e suam em volta de uma mesa posta com salada, azeitonas, vinho e pão. Lá de fora ninguém quer saber o que se passa, voltaram as costas àquele bafo maligno.
O guarda noviço pergunta:
“E se aparece alguém?”
“Que se fodam. Se quiserem alguma coisa podem sempre bater à porta, explicou Bento Riacho, responsável pela fronteira de Penaformosa.
Lá fora os ciprestes recolheram o verde, encolhem-se como se fosse noite. O sol faz estalar as ripas de madeira que formam o muro do cemitério, racha a continuidade do saibro em veios fundos, transformando cada um dos montículos de terra das campas num pão ressesso, às fatias.
Na cova do desconhecido do fato azul, uma fenda, grossa como a lombada de uma enciclopédia, acaba de se produzir a todo o comprimento da sepultura. Uma aranha corre, louca de pressa, para o rebordo exterior da campa. Grãos de terra rolam, lentos, para dentro do novo espaço e uma poeira lenta eleva-se do buraco, ocultando ao menos atento uma mão e depois o começo de um braço que ensaiam libertar-se do abrigo, como se não se importassem com o calor imenso que faz cá fora.
III
Gabriel Leitão, caixeiro-viajante, agarrava-se, perplexo, ao volante da sua carrinha diesel de assentos reconvertidos.
Mal acreditando em tanta sorte, desligou o motor, abriu a barreira e empurrou o carro pelo declive suave. Menos uma apreensão, menos um suborno, pensou ao enfiar-se de supetão no automóvel, menos uma badalada na úlcera nervosa. Ligou a ignição uns trezentos metros mais abaixo e respirou fundo. Sorriu, apesar do calor de Agosto: “Que sorte! Ouro sobre azul! Mil e duzentos contos, livres de impostos, em anéis, relógios, vestidos de senhora e tabaco”. O calor era seu aliado, ia ser preciso começar a incluí-lo nos planos.
De repente a úlcera disparou: na berma da estrada, enfiado num fato azul, um homem, sem bagagem, pedia boleia. Já estaria ali há muito tempo? Poderia ter topado alguma coisa? O melhor era tentar sabê-lo. Parou o carro, abriu a janela do lado da berma.
“Para onde é, chefe?”
“Qualquer sítio com transportes está bem para mim...”
Gabriel Leitão abriu a porta, tranquilizado com o sorriso gaiato do desconhecido.
“Olhe que ficou mal fechada, advertiu Gabriel Leitão enquanto mirava de soslaio a estrada pelo retrovisor. Dois ou três km depois atacou:
“Vem de longe?”
“Estive a trabalhar em Espanha, cinco anos, voltei para casar. Apanhei boleia até uma terriola próxima da fronteira espanhola e como não passava ninguém vim andando.”
“Podia ter ficado à espera no posto da fronteira portuguesa, continuou Gabriel Leitão, sempre estaria mais fresco...”
“A fronteira estava fechada quando lá cheguei, e não sou gajo para me incomodar muito com a falta de carimbos no passaporte.”
Gabriel Leitão desatou a rir.
“É isso mesmo, amigo. Eu cá também não morro de amores por aqueles merdosos da alfândega, sempre a meterem-se na vida alheia. Vai um cigarro?”
Gabriel Leitão gostou da pinta de Valério, acabou por decidir levá-lo mais longe do que inicialmente previra.
“Em Fragalhinha você tem mais escolha de transportes, mais movimento. Olhe, vou-lhe dizer: vamos por aqui abaixo nas calmas, chegamos a Fragalhinha ao fim da tarde, jantamos, eu sigo e você fica e vai à sua vida. Que tal?”
Valério achou bem. Quanto maior fosse o sítio onde ficasse menor seria a probabilidade de lhe pedirem os documentos. Além disso, não tinha um tostão no bolso.
Em Fragalhinha jantaram numa esplanada à beira do cais, vingando-se com cerveja gelada do calor da tarde. Gabriel Leitão retratava o dia:
“Pois amigo Valério, estou satisfeito de o ter arrancado àquela torreira do inferno.”
Valério sorria, olhando as gaivotas que picavam o crepúsculo, sacudindo, discretamente, restos de terra da bainha das calças. Também a ele o dia correra bem. Chegou a hora de se despedirem. Gabriel Leitão chamou pela conta, pediu a Valério que o acompanhasse à carrinha.
“Tenho uma coisa para lhe dar. Ia ser um suborno, mas é com prazer que a vejo transformada num presente de casamento”, disse abrindo o porta-luvas.
Tirou de sob um mapa um objecto resguardado em papel celofane branco, que estendeu a Valério.
“Quartzo, os ponteiros são projecções electrónicas. Calculadora, calendário perpétuo, fases da lua, cronómetro, waterproof; tecnologia do futuro. Vale, bem à vontade, os seus sessenta contos...”
“Sessenta contos!”, espantou-se Valério.
Abraçaram-se. Gabriel Leitão desejou mil felicidades a Valério, este afirmou-lhe que Olga, a noiva, iria ter pena de não o ter conhecido.
Ficou a vê-lo afastar-se pela estrada fora. Atravessou a rua sopesando o relógio, decidiu que não ficaria na pensão ranhosa à beira da estação dos comboios. Ao chegar ao Hotel Parlamento, Valério parou, tirou do bolso um cartão plastificado que estudou à luz de uma montra. Não estava muito parecido, o outro era mais velho, mas era melhor que nada, concluiu Gabriel Leitão, caixeiro-viajante, entrando no hotel.
IV
As dúvidas de Valério, acerca do reencontro com Olga ao fim de cinco anos mudos, confirmaram-se da pior maneira, pois foi recebido muito friamente pela noiva, pela família dela, pelos vizinhos.
Olga estava noiva, mas não dele. O casamento estava marcado para dali a dois meses (fins de Setembro) e segundo todos demonstrava muito mau gosto, quiçá cinismo, ele ter voltado. E que quase chegara a sentir remorsos por ter vendido o relógio sem o ter mostrado a Olga!
Deambulou uns dias por ali, desorientado, aparecendo em casa dela nos piores momentos, incluindo o dia da primeira prova do vestido para a grande cerimónia, irritando o susceptível noivo. Sem saber muito bem que rumo dar à vida, na última visita Valério sacou da casa de Olga tudo o que pudesse render umas notas, meteu-se num comboio para a capital. Diluir-se o mais possível, forçar uma nova identidade, e depois se veria.
V
António Gonçalves, torneiro mecânico, entrou na agência de viagens como quem engole uma pastilha a seco.
Estava, na verdade, pouco à vontade, mas, pensou, para estas ocasiões o que importa é o estilo e achava que o mais apropriado seria pôr-se na pele do gajo do anúncio da TV que vai ao balcão do banco investir em arte, ou seja, transaccionar umas moedas de cunhagem limitada, apaladar umas faianças artísticas rubricadas pelo autor e, no fim, aceitar com desenvoltura o bacalhau do gerente.
Sentia-se extremamente orgulhoso: a direcção do sindicato indicara o seu nome para a visita de dez dias a organizações congéneres da Bulgária. Não que tivesse muito interesse pelo que faziam, para além de beber vodka, os gajos dos sindicatos búlgaros, mas ia andar de avião (nunca o fizera), laurear a pevide.., ia ter o primeiro passaporte!
O gajo do balcão mandou-o preencher uns papeis e apontou-lhe uma mesinha de pernas curtas, com umas poltronas à volta. Sentando numa delas, António Gonçalves hesitou, esferográfica no ar, no preenchimento daqueles quadradinhos onde só cabia um número à vez. Tinha que se pôr um zero antes, quando só havia um número. Por exemplo, um gajo nascido em Julho tinha de pôr no mês um “07”. Tudo do género, uma confusão... Desanimou, levantou a cabeça do impresso.
Na poltrona em frente estava sentado um tipo de fato azul, a ler uma revista. Ao sentir-se olhado, o desconhecido baixou uns milímetros a revista e acenou uma saudação que não era nada. António Gonçalves, torneiro mecânico, sorriu-lhe:
“Desculpe lá, ó mestre, você não me daria aqui uma mãozinha?”
O desconhecido foi simpático. Preencheu-lhe os papeis, não quis aceitar nada e voltou à sua leitura. Levantou-se, entregou a papelada e as fotografias no balcão e perguntou:
“Quando posso vir levantá-lo?”
“Em cinco dias fica pronto e à disposição de V. Ex.ª”, disse o figurão estendendo a mão.
Volvidos cinco dias, às nove da manhã, um portador, por impossibilidade do próprio, procurou o passaporte de António Gonçalves, torneiro mecânico, nascido a 03 de Julho de 19.., na freguesia de Papagovas.
Pagou e saiu, metendo o passaporte num dos bolsos interiores do casaco azul.
VI
Ano terrível, aquele.
Não houve Primavera e quando Julho chegou desabou um verão insuportável. Com o Outono claro que as coisas amaciaram um bocado, mas Outubro e Novembro foram, mesmo assim, meses demasiado quentes.
Na capital, António Gonçalves experimentava os efeitos do calor tardio juntamente com mais um milhão de desnorteados. As pessoas não andavam nada bem e quem pode dizer que anda se ao chegar a casa da praia dá de caras, na televisão, com anúncios de Natal?
Tornou-se nostálgico. Fechou-se no quarto do quarto andar da residencial da Avenida António Augusto de Aguiar, onde morava, passou horas sem fim a fixar a iluminação das ruas, confundindo as luzes com barcos no mar, à noite. Por vezes saía, sufocado pelo silêncio espesso da madrugada, vagueava pelas avenidas da cidade a olhar as raras janelas iluminadas, uma ausência imprecisa fazendo tiragem no peito.
Em meados de Janeiro decidiu partir e pôs-se à espera. A espera desenrolou-se tranquila, até que o momento chegou. Examinou-o com prudência, constatou que o saco das alternativas estava roto e vazio, e partiu.
VII
Bento Riacho encarou, entre o espantado (não o vira aparecer) e o irritado, o desconhecido.
“É para Espanha?”, perguntou.
O desconhecido do fato azul fixou-o um momento antes de falar.
“Despediu o empregado?”
“Não era empregado, era tarefeiro”, rosnou Bento Riacho. “E que é que você tem a ver com isso?”
“Pensei... Vou para Espanha, à procura de trabalho, mas se o pudesse encontrar no meu país... Você, aqui, neste buraco, vai ver-se à rasca para descobrir alguém...”
O guarda olhou o desconhecido, desconfiado.
“Ora mostre-me o seu passaporte.”
Abriu-o cuidadosamente e pôs-se a mirar, página por página.
“Aqui nesta fotografia você estava mais gordo...”
“Perdi uns quilitos, a vida não tem sido fácil. E a fotografia já era bastante antiga..”
“Isso é proibido, amigo. As fotografias devem ser de há menos de um ano, vão ter que durar cinco no passaporte!”
Enquanto Bento Riacho casquinava de gozo pela demonstração, o desconhecido engatilhava a história preparada para a página seguinte.
“Diz aqui que você é casado. Onde deixou a mulher?”
“Foi ela que me deixou. Já faz tempo...”
Como se trunfasse uma jogada, Bento Riacho bateu o passaporte na mesa.
“Aqui trabalha-se. E não tens direito a férias, nem subsídios, nem o caralho. Percebido?”
O desconhecido apanhou o passaporte, meteu a mala debaixo do braço.
“Onde vou ficar?”
“Ficas onde eu quiser, e o tempo que eu quiser.”
António Gonçalves, torneiro mecânico, encolheu os ombros. Tanto se lhe dava, porcos ou semáforos. O destino designara Penaformosa como seu estábulo. O sítio era horrendo, as pessoas seriam, talvez, piores, mas ali tinha um quinhão de terra a que podia chamar seu e onde era pouco provável ir alguém incomodá-lo. Seguiu Bento Riacho.
VIII
A escassez de verbas, tal como outra porra qualquer, pode ser um instrumento do destino.
Bento Riacho cansara-se a pedir um reforço do orçamento bienal para que se construísse um anexo ao quarto do empregado auxiliar. Esse mesmo quarto era já, de si, um anexo acoplado ao pavilhão principal da alfândega por sugestão e insistência de Bento Riacho.
De facto, escrevia ele na sua proposta, “esta solução tem dupla vantagem: permite ao funcionário a utilização das instalações sanitárias do posto (basta que para isso se ligue o anexo, através de porta, ao corpo do edifício principal) e, ao mesmo tempo, que ele zele pela segurança do erário público durante a noite”.
No novo anexo pretendia Bento Riacho instalar uma cozinha e, assim, cortar de vez com a intromissão dos empregados na sua vida familiar. Se, por um lado, já conseguira que eles deixassem o seu sabonete pelo sabão comunitário do Estado, por outro ainda não conseguira evitar que lhe sujassem louça e lhe esvaziassem o galheteiro.
Deste modo, António Gonçalves, tarefeiro alfandegário, passou a partilhar as refeições da família Riacho, pois que "lamenta esta Direcção-Geral informar que se encontram, para o biénio, esgotadas as verbas destinadas a ampliação de património...".
O agregado de Bento Riacho era constituído por ele próprio, que presidia, pela mulher, que cozinhava, e por uma filha, Ângela Riacho, que andava em dezoito anos.
IX
António Gonçalves começou, desde logo, a não apreciar as refeições em casa de Bento Riacho. Sobretudo os jantares. Nada ali era agradável. Bento Riacho resmungava, da sopa à fruta, da pouca sorte que o pusera em Penaformosa (na realidade um caso de luvas noutra fronteira melhor situada) e a mulher cozinhava de um modo insultuoso para o paladar, desgraça que se agravava com o passar das horas e a ingestão progressiva de maduro-branco. Ângela Riacho também não ajudava nada. Tinha a cara cheia de borbulhas, estava com a cabeça em permanência enfiada no prato e nunca falava, a não ser para chicotear o pai com interpelações hediondas.
António Gonçalves sentia-se um intruso, envergonhava-se por ter de assistir a tantos episódios íntimos. Tentava ser simpático com cada um deles, mas isso não lhe trazia espécie alguma de benefício. Ângela julgava que ele defendia o pai e amuava. Bento Riacho enfurecia-se porque ele interferia com a dinâmica familiar ao abrir a boca, e a cozinheira olhava-o, inexpressiva e muda, da sua fronteira de névoa.
Bem que ensaiou novas estratégias para a mesa, mas não teve melhor sorte. Dorido, emudeceu, aqueles almoços e jantares degeneraram num espinho na sua alma. E a primavera, o sol, que nunca mais chegavam...
"Já não há primaveras como dantes", suspirou ao entrar no anexo, "que terá mudado em mim?"
X
Cuivis potest accidere, quod cuiquam potest
Um dia, à hora do almoço, António Gonçalves foi sacudido do bacalhau-confiscado com macarrão por um incidente a que os outros se conservaram indiferentes, ou porque não se dessem conta ou porque o dessem e não o encontrassem digno de interesse.
Ângela Riacho inclinara-se na cadeira para pegar na jarra do vinho e uma generosa madeixa castanha deslizou-lhe da cabeça para a testa e depois por sobre um olho. A luz da uma da tarde, subitamente liberta de um rancho de nuvens de Abril, bateu no vidro da janela e incendiou o castanho-avelã do olho esquerdo de Ângela Riacho, olho que António Gonçalves conseguia vislumbrar através de um postigo aberto no meio dos cabelos desgarrados. Quando a cabeça voltou à sua posição primitiva, o olho camuflado fixou, por um segundo ou menos, António Gonçalves, tarefeiro alfandegário. Finalmente, uma sacudidela do pescoço reconduziu a madeixa ao seio da cabeleira castanha.
"Cuivis potest accidere, quod cuiquam potest"*, pensou António Gonçalves, pegando por sua vez na jarra do vinho.
Foi a partir deste momento que ele, com a aflição de quem chega atrasado, passou a apreciar e elogiar a desastrosa vocação culinária de D. Fernanda Riacho, mãe de Ângela Riacho. Mas a obnubilada senhora não deu por nada.
_________
* Do latim: Ninguém diga desta água não beberei.
XI
Parva scintilla excitavit magnum incendium
Maio correu, as oportunidades de ver Ângela Riacho eram muitas. Mas em Junho o tempo mudou e se as oportunidades de a ver continuavam a ser as mesmas, a certeza de ser visto com olhos semelhantes era... desconhecida.
A partir daqui António Gonçalves perdeu o sentido da realidade. De tal modo ela ocupava o seu espírito que chegou julgar vê-la onde ela não estava, de tanto procurar presságios em todas as coisas chegou a julgar tê-la quando ela não estava.
Os almoços de festa, os jantares de gala, repassaram-se de ansiedade. Que desdobramentos! Evitar as agressões de Bento Riacho, vigiar a velha, que se tornara desconfiada, e ter ainda a capacidade de implorar a Ângela Riacho alguns olhares, de captar meia-dúzia de indícios.
Como consequência deste jogo, ou talvez porque a vida é assim mesmo, ele próprio se desbaralhou em diversos figurinos, confrontando Ângela Riacho com sucessivos personagens, ou seja, apalpando o terreno. E o tino, sob esta pressão constante, vai-se desagregando em fantasias e o que ontem era mero desejo vai funcionar amanhã como pedra de alicerce.
António Gonçalves assustou-se com a doença, mas, após uns minutos de apressada reflexão, concluiu que não havia maneira de voltar atrás. E se não podemos, qualquer seja a circunstância ou o motivo, retroceder, então o mais sensato é ir em frente.
“Parva scintilla excitavit magnum incendium!”*, constatou numa breve centelha de lucidez.
De imediato se pôs a examinar a decisão.
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Do latim: Uma pequena faísca produziu um grande incêndio.
XII
António Gonçalves varria o chão com aplicação.
A alguns metros, quatro talvez, Ângela Riacho lia uns papeis. Estava a substituir o pai, na eventualidade remota de surgir algum viajante. Tinha enfiado o vestido desmazelado, os pés descalços em cima da secretária, e uma madeixa de cabelo castanho, espiando a leitura, sobre o olho esquerdo.
António Gonçalves aproximou-se até a uns prudentes dois metros, agachou-se e pôs-se a apanhar uns papeis amarrotados que outonavam o soalho. O cesto dos papeis ficava por trás da secretária, do lado direito da cadeira, a menos de um metro de Ângela Riacho. António Gonçalves, tarefeiro alfandegário, caminhou lentamente, encostou a vassoura à mesa, e inclinou-se sobre o cesto, nas mãos um bouquet de bolas de papel.
Ao pegar de novo na vassoura estendeu a Ângela Riacho um papel verde, recentemente desamarrotado.
“Suponho que este é para si, disse. Deve ter ido parar ao lixo por engano.”
Ângela Riacho alisou o papel sobre a mesa, pegou-lhe com ambas as mãos e começou a ler. Era um triplicado do impresso do seguro automóvel e por cima dos caracteres, desbotados graças a um papel químico de fraca qualidade, alguém escrevera:
Primeiro - se puder guarde segredo disto
Segundo - não fique muito admirada, pois não vale a pena
Terceiro - acho que estou apaixonado por si.
Ângela Riacho riu-se, amarfanhou o papel e deitou-o no cesto do lixo. Depois olhou António Gonçalves e disse:
“Isso passa.”
O tarefeiro alfandegário afastou-se rapidamente com a vassoura, sem coragem sequer para balbuciar:
“E enquanto não passa?”
XIII
Se um amante da comemoração dos pormenores triviais, dos tempos mortos do dia-a-dia, residisse nas imediações de Penaformosa, diria com toda a razoável certeza:
“Faz amanhã um ano que Gabriel Leitão, caixeiro-viajante, atravessou a fronteira, vindo de Espanha, sem carimbo no passaporte.”
Mas o único jardineiro de detalhes de Penaformosa andava entretido noutras áreas do conhecimento...
Recuperou o triplicado verde do impresso automóvel, releu-o, treleu-o, como se não fosse o autor. O que haveria ali que pudesse mover uma gargalhada e um “isso passa” tão cruéis?
Segurou-se uns séculos numa anestesia forçada, precavendo-se de ver e olhar Ângela Riacho, achando-se perturbado e quase irritado de cada vez que ela cruzava a sua insípida convalescença. Foi sol de pouca dura. Desanimou, emudeceu, desapareceu e, ao quarto dia, voltou ao local do agravo.
Ângela Riacho estava diferente, parecia-lhe. Seria porque partilhavam um segredo? Porque ficara, no fundo, sensibilizada com a declaração? Quereria experimentar-lhe o alcance das intenções? Não o sabia, mas era verdade que se mostrava mais compassiva, mais próxima. Os olhares eram mais prolongados e menos vazios, achava. Algumas ocasiões procurou-o espontaneamente, sem motivo aparente.
Uma manhã, ao entrar no quarto do anexo, encontrou a latinha de salsichas, onde costumava descansar a esferográfica, cheia de água e uma rosa de milagre a tomar banho. Propôs-lhe um encontro, às escondidas.
“Se me deres um bom motivo...”, avisou-o ela.
Deu-lhe o primeiro de que se lembrou, sem se importar muito com a escolha, pois qualquer um seria satélite da sua paixão.
“Está bem”, disse ela, continuando a esfregar roupa na pedra do tanque. “Vai ter comigo uma noite destas, depois da meia-noite, ao meu quarto. Combinamos a maneira mais logo.”
António Gonçalves, tarefeiro por necessidade, perdeu-se imediatamente na sua floresta de Esperanças, tanto as flores tinham medrado.
XIV
António Gonçalves, atarefado alfandegário, caminhava descalço pelo saibro fora.
“Isto é uma loucura desamarrada”, pensava, “se o velho dá conta mata-me!”.
A porta da habitação de Bento Riacho encontrava-se entreaberta, como ajustado. Subiu os dois degraus da soleira e tentou perscrutar o silêncio no meio do escoucinhar desenfreado do coração. “Tudo em paz... ou será que a armadilha espera no topo das escadas?”
“O terceiro, sétimo, e nono degraus estalam”, prevenira-o Ângela Riacho. “Pisa o terceiro no meio e o sétimo à direita. No nono pousa primeiro o pé esquerdo”. Decorara o bilhete e fizera bem. Para já nenhum ruído.
“No fundo do corredor há uma porta ao fundo, é a sanita – não entres nessa – e outra à direita, que é o meu quarto. Deixo uma luz acesa, deves vê-la pela frincha no chão da porta.”
Tinha agora a frincha iluminada ao nível dos olhos. Parou um pouco, apoiado ao corrimão, a humedecer o céu-da-boca e os lábios com a saliva que lhe restava.
Ao chegar ao fundo do corredor uma frincha vertical, feita de luz, apareceu na porta à direita. “Sentiu-me”, espantou-se, convencido de ter sido absolutamente inaudível. Empurrou a porta de mansinho.
Ela estava recostada na cama, com o vestido desmazelado, descalça. Com a mão direita fazia-lhe sinal para que fechasse a porta, depois um sorriso e um dedo nos lábios a significar: “Com cuidado, sem ruído, que até aqui tudo certo.”
A luz da frincha, que no âmago das escadas lhe parecera ter a intensidade de uma espada flamejante, originava-se num tímido candeeirinho de mesa de cabeceira. O quarto estava pejado de sombras azuis-negras, pela janela aberta esfarrapava-se o luar e palpitava a noite de verão.
Baixou-se e fez deslizar um tapete de beira-de-cama até ao chão da porta. Desse modo se acabava a frincha e se precaviam as dúvidas de Bento Riacho quando, às três da manhã, em pleno pesadelo prostático, passasse para a casa de banho. Virou-se mansamente para a cama.
“Tu és o morto do cemitério, não és? Aquele que chegou vestido de azul e morreu a mijar...”, disse, sorrindo, parada em cima do lençol.
“Ângela, o que a leva a dizer tal...?”, ciciou quando já estava próximo.
“Agora não me podes chamar Ângela, já passa da meia-noite. Tens que me chamar de Alzira Mónica.”
António Gonçalves, tarefeiro alfandegário, sentou-se, perplexo e asténico, na borda da cama. Suores profusos coroavam-lhe a testa e temeu a aproximação de uma febre cerebral. Era uma da manhã.
XV
Hoc volo sic jubeo, sit pro ratione voluntas
“Tinha doze anos no dia em que chegaste, ninguém se lembra melhor do que eu. Ainda me parece estar a ver a tua cara, muito branca, ao lado de umas bolas de naftalina. Desconfiei logo ao ver-te aparecer aqui outra vez. Muitas noites fui espreitar à tua janela e tu nunca estavas na cama. Pensei logo, 'é ele e à noite vai dormir, ou lá o que é, no cemitério'.”
António Gonçalves olhava o chão, cabisbaixo, desarmado pela crueza e pela paixão.
“Afinal qual é o teu verdadeiro nome?! És António Gonçalves, Gabriel Leitão (descobri um bilhete de identidade no teu colchão), ou outra coisa?”
“O meu nome é Valério”, balbuciou António Gonçalves, tarefeiro alfandegário.
“Sempre é o mais bonito... E tu, gostas mais de Ângela ou de Alzira Mónica?”
Valério abriu a boca para responder, mas parou a tempo. Preferia a Ângela dos olhos luminosos, do meio-dia, mas conviria dizê-lo? Por certo que Alzira Mónica era o personagem mágico na ideia de Ângela Riacho. O sol ia demorar uma eternidade a aparecer, não o teria como aliado nessa noite. Obedeceu.
“Gosto mais de Alzira Mónica...”
“Eu também”, sorriu Alzira Mónica juntando as mãos. “A Ângela é fraca, tem que aturar o que os outros querem. Não tem liberdade nenhuma!”
Durante uns minutos permaneceu pensativa, a olhar o espelho da cómoda. O olhar de Valério procurou a janela, confuso. E agora? Como desbloquear o impasse? Não era aquilo que esperava, tudo suspenso, cristalizado... Não conhecia os maquinismos da noite.
“Afinal o que queria dizer aquele bilhete?”, perguntou de súbito Alzira Mónica.
“Apenas aquilo que lá estava escrito.”
“Já não me lembro bem... Estava tão cansada naquele dia; tive que registar todas as ENTRADAS.”
Valério fixou Alzira Mónica com angústia.
“Que estou apaixonado por si, se quer a história curta.”
A expressão dela tornou-se doce e cogitante. Semicerrou os olhos e esvaiu-se na cama, uns dedos distraídos a enrolar a madeixa castanha, um pé a coçar o peito do outro.
“Como é estar morto?”
Valério encarou o corpo abandonado, considerou o tempo perdido. Decidiu agir e mergulhar fundo naquele desatino em que estava atolado. Contou mentalmente até sete, inspirou fundo na ânsia de se libertar daquela angina pectoris*. Depois inclinou-se por sobre Alzira Mónica, torrou as retinas na proximidade daquelas pestanas negras e, murmurando "hoc volo sic jubeo, sit pro ratione voluntas"**, pousou os lábios nos dela.
Um violento safanão atirou-o para o fundo da cama. Ela sentara-se e, irada, fuzilava-o com os olhos.
“Estás louco ou quê?! Julgas que me vou deixar apalpar por um morto-vivo, um lobisomem, ou lá o que tu és?! Era só o que faltava! Pensas que me interessa muito a tua paixão? Estou-me marimbando, ouviste, ma-rim-ban-do.”
Desmembrado pela dor, esquartejado pela desilusão, Valério deu um pulo felino e desapareceu pela janela na guinada da noite.
_________
Do latim: Angústia do peito.
Do latim: Quero-o, assim o ordeno, que a minha vontade substitua a razão.
XVI
Avatar que o pariu
Na sepultura Valério torcia-se de insónia.
Partira algumas unhas de tanto arranhar a terra, tinha a cara sarapintada pela liga macia nascida da comunhão entre as lágrimas e o saibro. Oh, desespero dos desesperos, para que voltara a Penaformosa? E a culpa era toda dele, o Outro bem que o avisara:
“Olha que te pode sair contrário aos propósitos...”
Seria manobra? Parou de esgravatar e abriu os olhos no escuro. Não, era impossível, ela não estava ali para isso... Ela era só ela.
“Será?”, pareceu-lhe ouvir soprado das paredes da cova.
Fosse como fosse, que interessava agora? Já era desumano aguentar a paixão inútil por Ângela Riacho, quanto mais partilhar-lhe os pormenores com o Outro!
“Que posso eu fazer? Que devo eu fazer?”, gemeu.
“Sustine et abstine”*, uma gargalhada zombeteira ecoou-lhe nos ouvidos, vinda das profundezas.
“Avatar que O pariu”, gritou Valério, insubordinado.
Acordou com o galo, mas deixou-se estar mais uns momentos a saborear a luz filtrada pelas fendas, a preparar-se para Ângela Riacho.
Encontra-la-ia só, o pai ia a Fragalhinha comprar uma almofada de tinta para os carimbos.
________
Do latim: Suporta e abstém-te.
XVII
Seria possível que você, algum dia, se viesse a apaixonar por mim?
Valério tremia. Ângela Riacho abanou a cabeça.
“Nem penses! Por muito que tentasses nunca me conseguirias embruxar, vou todos os anos à Cova da Iria. Para além disso que poderia eu fazer de um morto-vivo?”
“Faça ao menos um esforço. Procure ver-me como uma pessoa, como um ser que sofre... Esqueça a minha condição.”
“Não, é escusado.”
Os olhos de Valério, sem que desse por isso, encheram-se de lágrimas.
“Então vou ter de lhe pedir uma coisa...”
“Se for razoável...,” disse ela sem levantar a cara das unhas, que limpava com a tampa de uma esferográfica.
“Acabe comigo, destrua-me para sempre. Se me ajudar eu não volto nunca mais.”
“Estás louco!”, enfureceu-se Ângela Riacho.
Ao levantar a cabeça, para o enfrentar, cruzou os olhos molhados de Valério, pôs-se pensativa. Depois falou, uma voz mais suave:
“Eu não posso, mas talvez a Alzira Mónica...”
Valério encheu-se de esperança. Sorriu, esfregou os olhos, implorou:
“Você fala-lhe?”
“Prometo. Como seria...? Quer dizer, tem de ser especial, não tem? Dizem que vocês, os mortos-huumm, não morrem de qualquer maneira...”
“Eu trato de tudo. Ela só tem que dar uma martelada... Quero dizer, aqui...”
E apontou o peito.
“Só isso!?”
Ângela Riacho pareceu genuinamente admirada.
XVIII
Acta est fabula
Alzira Mónica bateu de leve na porta do anexo.
“Valério?”, chamou baixinho.
Esperou uns instantes e, como ninguém respondesse, empurrou o trinco. A porta cedeu e ela, mal se habituou à escuridão, entrou. O quarto estava vazio, mas a porta que comunicava com a alfândega encontrava-se aberta. Só uma das lâmpadas da casa de banho dos homens estava acesa e, mesmo essa, tinha um lenço de bolso a quebrar a luz.
Topou com Valério sentado na borda de um dos urinóis, a fumar um cigarro. Ao lado, no chão, viu um martelo enorme, daqueles que normalmente são utilizados para aparelhar pedra, e um pau (teria sido serrado de um cabo de enxada?) com um palmo de comprimento, aguçado numa das pontas.
“Olá”, disse Alzira Mónica.
Valério mirou-a com um sorriso estranho (estava tão pálido!) e falou, uma voz enrouquecida:
“Vamos a isto?”
Alzira Mónica desviou o olhar, fixou as bolas de naftalina que se acumulavam no fundo dos urinóis. Quando era pequena julgava que aquilo tombava do misterioso aparelho de mijar dos homens. Ganhou coragem, perguntou:
“Queres mesmo?”
“Há alguma esperança para mim? Se acha que sim...”
Alzira Mónica abanou a cabeça numa negativa desanimada.
“Não, ainda hoje lhe voltei a falar nisso. Até perguntei: ‘E se ele não fosse um morto-huumm, gostavas dele?’. Ela zangou-se e respondeu o que o pai dela diz quando a mãe dela lhe vem com 'ses': ‘Se, se.. Se a minha avó tivesse tomates seria o meu avô!’."
Valério levantou-se, desequilibrado. Atirou a beata do cigarro para o ninho de naftalina de um dos urinóis, desabotoou a camisa e deitou-se no chão.
“Encoste a ponta aguçada aqui (indicou um ponto abaixo do mamilo esquerdo) e bata com o martelo na outra ponta. Uma, duas, três, as vezes necessárias para que o pau desapareça na carne.”
Alzira Mónica acenava que sim, rolava o pau nas mãos suadas, não ousando enfrentar os aflitos olhos de Valério. Continuava a não poder afastar da mente as bolas de naftalina que pingavam silenciosas, uma a uma, do sexo dos homens...
“E, sobretudo, não pare a meio, nem tire o pau para fora depois de estar enfiado”, recomendou. “Nem que eu lho peça. Estou agora pronto.”
Alzira Mónica cavalgou Valério, apoiou a ponta aguçada no peito.
“Está bem aqui?”, perguntou.
Pegou no martelo, ergueu-o no ar e... hesitou. Valério fechara os olhos, as suas mãos, prostradas de cada lado do corpo, tremiam descontroladamente. Bolas de naftalina a rolar como berlindes, a derreter-se, encharcando o soalho.
“Tens a certeza absoluta que não vai ficar ferida nenhuma?”
Valério abriu uns olhos que a acariciavam com meiguice:
“Pode estar descansada, tranquilizou-a, vai ficar tudo como está agora.”
“Adeus Valério, esquece e descansa em paz”, despediu-se Alzira Mónica, desferindo a primeira marretada.
A primeira estocada pouco enterrou o pau, quase só serviu para afastar duas costelas teimosas. Mas Valério sentiu algo de muito especial a aproximar-se. Ia regressar ao inevitável fundo de si, desta vez de modo definitivo. E não queria, não podia, não queria acreditar na perda sem remédio dos olhos de Ângela Riacho iluminados pela luz do sol poente, tal como os tinha visto um fim de tarde quando ela apanhava peças de roupa no estendal das traseiras.
“Pare, pare; deixe-me viver...”
“Está quieto”, repreendeu-o Alzira Mónica. “Tu mesmo pediste que não parasse!”
E continuou a desferir a marrã sobre a metade do pau que ainda estava por enterrar, enquanto cantava hinos religiosos para não ser distraída pelos mansos uivos do agonizante e pela torrente de bolas de naftalina que se derramavam sobre ela.
A ponta do pau convenceu finalmente a teimosia do coração, a boca de Valério escancarou-se como se ele jazesse numa cadeira de dentista. Os olhos injectaram-se de vermelho e Alzira Mónica sentiu uma labareda lamber-lhe as entranhas.
A boca de Valério fechou-se com um rangido pavoroso de dentes a quebrar-se, voltou a abrir-se e uma ponta de língua esboçou o afago dos lábios despedaçados.
“Estava com todo o ar de quem queria falar”, contou, mais tarde, Alzira Mónica a Ângela Riacho.
“Acta est fabula”*.
Alzira Mónica sentiu-se parva! Por causa de uma estúpida golfada de sangue, que se vertera como uma cascata pelo pescoço de Valério, não percebeu as últimas palavras do morto!
Olhou o peito dele. Ao menos não mentira, ninguém poderia dizer que ali tinha sido enterrado um toco de enxada! Estava tudo intacto, a pele lisinha e virgem. Pôs-se de pé e estudou o cadáver de mãos na cintura. Era preciso abotoar-lhe a camisa, pousar-lhe a cabeça em cima do degrau do mictório. Assim ficaria como da primeira vez. Limpou o sangue, arrumou o martelo no anexo, apagou a luz e foi-se deitar.
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Do latim: Está representada a peça.
XIX
Epílogo
Ângela Riacho passou o dia do funeral de Valério um nada autista.
Ao crepúsculo animou, quando o pai lhe revelou que em breve a fronteira iria estar aberta também à noite e que, provavelmente, seria necessário que ela desse uma ajuda. Tarde, próximo da madrugada, acordou e teve uma espertina. Desceu à cozinha, trouxe uma fruta, umas bolachas, um copo de vinho fresco. Aproveitou a falta de sono para conversar com Alzira Mónica, que despertou com o ruído cavo das dentadas na maçã e, às tantas, toparam no assunto de Valério, o morto-morto.
“Custou-te muito?”, perguntou Ângela Riacho.
“Não... Bem, no fim, quando o vi ali esparramado, senti-me parva..”, confessou Alzira Mónica ausentando o olhar e sorvendo um gole de vinho.
“Deixa lá”, consolou-a Ângela, atirando o casquilho da maçã pela janela fora, “afinal ele era um chato.”
© Fotografias de Pedro Serrano. De cima para baixo: (1) Lisboa, 2010; (2) Mértola, 2008; (3) Praia da Areia Branca, 2010; (4) Torres Vedras, 2010.