Há lareiras espalhadas na minha existência desde que me lembro. Essa presença veio pelo meu pai, foi ele que trouxe consigo essa noção do fogo e de quando toda a vida familiar girava em torno da pedra do lar, isto é, da lareira.
Na remodelação da casa dos meus avós paternos, edificada há mais de 150 anos nos arredores da serra do Caramulo, o meu pai fez construir uma nova lareira no topo da sala de jantar, no recanto que funciona como sala de estar, mas na construção primitiva havia um dispositivo de fogo que ainda hoje nos deixa boquiabertos. A cozinha morava então num edifício separado do corpo da habitação principal, ao qual se tinha acesso apenas pelo exterior da casa e cujas paredes pareciam ter como única função a de suportar uma chaminé! A área dessa cozinha é um espaço onde hoje caberia um apartamento... E todo esse espaço, de chão de lajes de granito, é dominado por essa imensa chaminé cuja boca, negra da fuligem de um século, tem o tamanho do chão de lajes. Aí, nesse chão, se desenrolava tudo: se fervia a água, se cozinhava, se comia, se passavam os serões e se mantinham conversas que tinham por pano de fundo o rubro e o negro de um fogo sempre aceso, por meditação a coluna de fumo que subia até à noite e por banda sonora o crepitar da madeira.
Na minha primeira casa no Porto, onde passei a infância e os primeiros anos da adolescência, não havia lareira nem seria fácil improvisar uma. Mas a noção de envolvência térmica era confortavelmente emulada por uma salamandra prateada com uma portinhola de vidro de mica através da qual se via a reverberação laranja de um fogo quase sem chama, originado na combustão de umas pedras de carvão muito atraentes à vista, ao odor e, até, à proibição absoluta de toque. Essas pedras pareciam conchas de amêijoa, um formato entre o rissol de camarão e o bolinho de bacalhau. Suponho que fosse carvão moldado para parecer assim, chamava-se coque e se o seu aspecto era marítimo, o seu odor lembrava comboios, estações de caminho de ferro. Acho, também, que ainda reconheceria, se o ouvisse, o ruído que produzia quando era despejado, de um balde de lata de pescoço alongado, na boca insaciável da salamandra. Que gabarito térmico aquilo encerrava! Ao fim de umas horas de carburação todo o ferro forjado do corpo cilíndrico da salamandra ficava em brasa, uma brasa que contagiava em cor laranja o primeiro metro do tubo da chaminé, tubo que trepava pelo interior da casa aproveitando as voltas do corrimão para se escapulir até à clarabóia e ao chapelito cónico que, já fora do telhado, precavia o retornar do fumo sob a ventania de inverno. Tanto quanto recordo, aquele tambor de ferro forjado e a sua chaminé de lata, pintados como papel de prata, aqueciam a casa toda, inclusive a flanela dos nossos pijamas que pairavam lá em cima, dispostos sobre o corrimão e envolvendo o cano como um cachecol, a tempo de estarem tépidos quando nos fossemos deitar e de fazerem parelha com a botija de água quente que esperava escondida em vale de lençóis.
© Fotografias de Pedro Serrano, Praia da Areia Branca: (1) 2010; (2) 2007.
Sem comentários:
Enviar um comentário