Rezam os actuais itinerários da
internet que Ribeira de Pena, um concelho do distrito de Vila Real ainda
encostado ao Minho, dista do Porto 106 km e que esses km se percorrem em uma
hora e seis minutos.
Pois em 1980, ano em que fui viver por
lá, Ribeira de Pena, um lugarejo perdido no nordeste, distava cerca de 130 km
do Porto e em dias simpáticos um automóvel demorava duas horas e meia a chegar, tal as curvas serpenteavam do Porto até lá. Nessa altura, Ribeira de Pena era,
literalmente, um beco sem saída: entrados na vila e querendo continuar para
outras paragens era forçoso dar a meia volta e regressar à estrada por onde
tínhamos chegado. Dali, a não ser penantes, não se podia furar noutra direcção
e Vila Real, a capital do distrito, nos seus cinquenta km de distância, ficava a
uma hora de nós.
No final de Outubro de 1980 Ribeira de
Pena inaugurou um Centro de Saúde novinho em folha, pago na sua totalidade por coroas
norueguesas. Apesar da bandeja, as peripécias que rondaram a construção, o
equipamento e a abertura deste serviço de saúde (feito a pensar numa população
que nada tinha) davam para escrever um livro, tendo-se as atribulações passeado
pela falência e fuga do empreiteiro, pela construção de estufas de
esterilização de material médico feita por fabricantes de fogões de cozinha
reconvertidos e, claro está, o todo temperado pelo ingrediente clássico da
panela lusitana: a pasmada ineficiência das autoridades de saúde do nível
distrital.
Quer pelo isolamento nas serranias, quer
pela distância a outros estabelecimentos de saúde mais sofisticados (Vila Real
e, sobretudo, o Porto) foi decidido que o Centro de Saúde disporia de um
pequeno internamento, o qual incluiria uma sala de partos e respectivas acomodações.
Tendo o Centro de Saúde sido
inaugurado à pressa, sob a pressão política do costume, ainda sem o equipamento
de que necessitava (abrimos ao público, por exemplo, sem um único medicamento
no serviço que ostentava uma tabuleta iluminada a dizer URGÊNCIA), ficou
acordado entre mim (o jovem director da coisa), o patronato distrital e os
sensatos noruegueses, supervisores do andamento do projecto, que a maternidade
só seria aberta uma meia dúzia de meses depois, dando tempo a que se terminassem
as obras ainda em curso no sector do internamento, a que o equipamento em falta
chegasse e as restantes valências prioritárias (consultas, seguimento de
grávidas e crianças, vacinação, urgência) estivessem estabilizadas e a rolar a
velocidade de cruzeiro.
Ao povo da Noruega, Ribeira de Pena agradecida 25.10.1980 |
Numa dessas manhãs geladas, em que percorríamos
os corredores batendo os pés para os manter minimamente quentes, a Graça, a
nossa energética e competente enfermeira-parteira, sapateou da consulta de
Saúde Materna até ao meu gabinete, que franqueou afogueada:
“Doutor Pedro, temos uma mulher em
trabalho de parto na consulta...”
Saltei da cadeira, fui dizendo,
enquanto corria ao lado dela:
“Temos de dizer ao Albano para ligar
aos bombeiras: chamar uma ambulância, mandá-la já para Vila Real...”
“Não vai dar tempo, está em dilatação
máxima, é expulsão para menos de meia-hora...”
“Mas por que é que ela não apareceu
antes!?”, dirigi toda a minha raiva sobre a cliente, “não andava a ser seguida
na consulta?”
Ela abanou a cabeça:
“É um prematuro, pelas minhas contas à
volta de sete meses e pouco. A mãe não fez uma única consulta de seguimento,
não está sequer vacinada, nada!”
“Então parece que só nos resta
inaugurar a maternidade, Graça...”
Num ambiente gelado, na sala sombria e
quase nua, a marquesa foi preparada à pressa e o menino (era um rapaz) caiu-nos
nos braços quase em silêncio, sem o choro que
num momento destes é bom de ouvir. Sim, era um prematuro e pesava 1.600 gramas,
um kg abaixo do que deveria pesar um recém-nascido normal! E estava roxo de
frio, calado de entupimentos, evidenciando sinais nítidos de quem não se ia
safar sem cuidados especiais, um dos quais seria ser enfiado de imediato numa
incubadora que o aquecesse, arejasse e resguardasse do mundo exterior. Incubadora
que não tínhamos, pois todo o nosso equipamento a vir estava pensado para
gravidezes e partos normais. Olha a porra!
“Eu sei, Graça, mas como vamos remeter
o embrulho até ao Porto?!”
Não sei se foi a palavra embrulho que despoletou o caminho a
tomar, o certo é que a Graça era uma profissional prática e eu um tipo com
imaginação. Foi por aí que o nosso olhar caiu sobre a mesinha de cabeceira ao
lado da cama onde gemia a parturiente, ainda dorida de um esforço prestes a
volver-se inútil.
E assim construímos a nossa
incubadora: mandámos o pessoal da cozinha ferver água, encher duas botijas; e
que nos trouxessem um rolo de papel de alumínio, daquele de embrulhar a comida
que vai ao forno. Depois entalámos as botijas na gaveta, uma daquelas gavetas
de metal de mesinha de cabeceira de hospital, e atulhámo-la com rolos de
algodão, de modo a parecer-se com um ninho. Finalmente, enrolámos o presente em
papel de alumínio, só os olhos e o nariz ficaram de fora, e enfiámo-lo na
gaveta com a nossa bênção. A ambulância já ronronava à porta da urgência, as
traseiras muito encostadas de molde a diminuir a distância a percorrer pelo
bebé sob o gélido ar exterior. A Graça também saltou lá para dentro, para fazer
uma entrega mais esclarecida da encomenda aos atónitos olhos do pessoal da Neonatalogia
do Hospital de Santo António.
Uns meses volvidos, já a primavera ia adiantada,
a Graça e eu fomos padrinhos de baptismo do menino e tudo acabou em bem. Mau
padrinho como sou, nunca mais soube nada dele, mas calculo que ainda circule
por aí – deve andar pelos seus 35 anos, agora. Nem ele imagina a boa horinha
que teve quando aterrou neste mundo.
Graça Tavares, Pedro Serrano e o embrulho, 1981. |
© Fotografias, de cima para baixo: (1) Pedro Serrano, Ribeira de Pena, 1983; (2) Per Hjortdahl, Ribeira de Pena, 2008; (3) e (4) fotógrafos desconhecidos, Ribeira de Pena, 1981.