Dado que os sonhos de uns são os
pesadelos de outros, a Índia fará os horrores de qualquer zeloso vigilante de Prevenção
Rodoviária e as delícias de qualquer um fabricante de motorizadas.
Por aqui, a motorizada preenche o
lugar que o automóvel ocupa no ocidente. Claro que também há automóveis, e
muitos, mas não se comparam com o número de motorizadas que, suponho, terão alcançado
aqui a supremacia por serem bastante mais baratas e o país ainda pobre.
Sair para andar como peão pelas ruas
de Udaipur (apesar de tudo cidade bastante sossegada e com apenas meio milhão
de habitantes), é ter de adoptar de imediato a clássica regra da fila indiana. É
impossível andar aos pares ou lado a lado pelas ruas, sendo forçoso caminhar em
permanência colado à berma para evitar o risco de se ser atropelado por uma
mota ou um rickshaw motorizado! Em abono da verdade, deve ser afirmado que os
condutores desses velocípedes conduzem em permanente estado de alerta e apitam,
a cada dez metros percorridos, para avisar da sua presença, o que tem como
efeito secundário tornar as ruas num emaranhado ruidoso.
No princípio isto pode ser algo
perturbador para o turista, mas, depois, a gente habitua-se à realidade local e
a seguir as suas regras. Se até as vacas, sagradas e tudo, o fazem e se acostumaram
a tocar a sua pachorrência ao longo das bermas!
Imaginemos então o nosso vigilante
rodoviário, em férias mas sem conseguir abstrair-se da queda para a normatização
do mundo, resgatado após ter escapado a ser atropelado na Lal Gate (uma das ruas
mais movimentadas de Udaipur), sentado numa tranquila esplanada. Agora que pode
observar o trânsito em sossego, não tarda a reparar, horrorizado, não haver um
único condutor de velocípede de duas rodas que use o devido, o obrigatório,
capacete protector! Um único, nem sequer a criancinha que segue sentada no
depósito de combustível da motorizada, alegremente agarrada ao guiador e
observando o trânsito de uma posição privilegiada! Mas!... eis que o nosso
vigilante vizinho de mesa se dá conta que naquela motorizada, aquela outra que
acabou de passar, seguiam três
pessoas: mais uma das tais criancinhas escarrapachadas à frente do condutor e,
na parte de trás, sentada à amazona, com o sari perigosamente esvoaçante – e em
risco de se enrodilhar – sobre os raios da roda posterior, a putativa mãe da
dita criancinha, com as mãos em repouso no colo, sem sequer se tentar agarrar
às costas do provável marido!
Nervoso, surdo às invectivas da esposa
que lhe relembra não estar ele em Bruxelas e, portanto, fora de jurisdição
sobre o que se passa no Rajastão, o nosso comissário gesticula ao empregado e
pede um chá de gengibre, mais do que por sentir sede para manter as mãos, de
que entretanto começou a roer as extremidades, ocupadas. Uns minutos mais
tarde, quando, sentindo-se melhor, levanta os olhos da chávena, vê passar uma
desenfreada moto não com três, mas com quatro
pessoas!: a) Nenhuma delas usando capacete, b) duas delas sem idade legal para
andar em tal tipo de veículo e, c) nenhuma delas sentadas na parte de trás do...
Ainda o sol não se pôs sobre as águas e
já o honorável funcionário antecipou o regresso ao seu hotel não sem antes poder
ter evitado ver desfilar perante os olhos um velocípede de duas rodas
transportando cinco pessoas, aparentemente
um inconsciente núcleo familiar a caminho de qualquer exótica celebração.
© Fotografias de Pedro Serrano, Udaipur (Índia), Setembro 2013.