Estranha, esta obsessão em assentar degraus
que vão apenas dar à água. No entanto, a leve perturbação, o tom quase mágico
que assume deparar com um pavimento que se torna fluido sem transição vem
talvez da ligação imediata que se estabelece entre os dois elementos: terra e água – deixar um para desaparecer no outro.
Não que na Europa isto não se veja,
mas aqui, na Índia, a presença de escadarias submersas surge com a regularidade,
a necessidade de paragens de autocarro...
Em Udaipur, cidade debruçada sobre um
lago, os ghats (nome dado a estas
escadas que se perdem na água) são muitos e basta cismar por uma hora ao pé de
um deles para se lhes perceber a importância na vida quotidiana dos indianos.
Estes tipos têm uma relação especial com a água que, como em qualquer outro
lado, possui uma qualidade purificadora, toda a gente está a par desta
psicologia básica. Acontece que o conceito ganha aqui uma intensidade e uma
prática que não se vê noutros cantos do mundo.
Todos os dias, do nascer ao pôr do
sol, os ghats, ou as suas redondezas,
são visitados por um corrupio de pessoas: gente que, com o alívio que suponho similar
ao de uma confissão bem esgalhada, se purifica esbanjando água sobre si ou
sobre a própria água do lago de onde acabou de a retirar; gente que se banha
simplesmente para se lavar; gente que lava a roupa; gente que concentra tudo
isto em actividade integrada.
Habitualmente, se delas falarmos, as mulheres
acocoram-se nos últimos degraus, pondo manchas de cor viva sobre o mármore
esbatido pelo uso, e começam por esvaziar os baldes que traziam à cabeça e onde
empilharam a roupa suja da família. Ensaboam-na conscienciosamente, estralejando-a
em seguida com vigor e ritmo contra as pedras molhadas, tal antigamente se via
fazer às lavadeiras em Portugal sobre o granito dos lavadouros ou a pedraria da
margem dos rios. Depois enxaguam-na, estrangulam-na sem remorso e estendem-na a secar um pouco nos balaústres em redor. Partirão
antes que fique seca.
Em igual número são os homens, mas esses
o que lavam é apenas a roupa que envergam, permanecendo em cuecas enquanto o
fazem e lavando-se depois a si, usando como gel de banho e shampoo o mesmíssimo
sabão azul e branco que usaram na roupa e, antes de deixar o local, vestindo, ainda
molhada, a roupa que estiveram a lavar, opção que, para além de única, não se
pode dizer seja de todo atoleimada ou desagradável sob um calor abrasador: ao
fim de uma hora tudo estará seco e limpo.
As mulheres, essas, são mais discretas
no processo de se banharem e não despem uma única peça de roupa, a não ser para
a substituírem por outra. Imergem-se na água ou vão regando o corpo com um
pucarinho de plástico, lavando-se a prestações e controlando com o olhar a
curiosidade em volta. Só as miúdas pequenas, teoricamente ainda a salvo do
desejo, esbracejam, espolinham e mergulham, felizes e quase desnudas, como se o
mundo ainda não se tivesse dividido em dois.
© Fotografias, de cima para baixo: (1), (2), (3) Pedro Serrano; (4) Ana Rodrigues. Udaipur, Índia, Setembro 2013.
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