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01 julho 2022

LE PLAT PAYS


      De ti

       De quem presenças várias poderia recordar

       Ficou-me deveras e sem que se explique

       A travessia de uma rua...

       Éramos três os que caminhavam,

       Alinhados nos passos e na oportunidade

       E terias chegado há pouco à cidade

       Era sempre então essa 

       A sensação de estar ao teu lado

       A de que acabaras de chegar e contigo novidades

       Embora as novidades pudessem ser somente tu

       Apenas isso, mas que só por si nos animava

       Animava a própria cidade e os olhos

       De a vermos, vestirmos, desbravarmos

       Como se de igual modo acabássemos de desembarcar

       Nas suas ruas, avenidas, vielas e janelas.

       No atravessar que os três aguardava

       Tu, eu e mais alguém que não descortino,

       Excepto por nenhum de nós ter ainda vinte anos,

       Nessa travessia nos vamos agora

       Como se uma maré concedesse trégua vasa

       E o tráfico se empatasse num espanto raso

       Eu, tu e não sei quem outro

       Agora já na outra margem, sob a janela larga

       Idealizada como um tríptico para que um dia

       Pudesse aspirar a tornar-se o par de um trio,

       Espreitando a chegada 

       Como o cais de um porto seguro.

       Os três boiando num aproximadamente sorriso 

       Por ser manhã, por termos chegado ou somente 

       Porque é diverso o como se vê deste lado da rua

       Cabeças atentas, mãos nos bolsos, uma madeixa brilhante

       Afastada à testa e logo voltada a tombar

       O quase sorriso surripiando-se à nossa gravitas comum

       Ascendendo dos trilhos amarelos dos eléctricos até ao

       Firmamento, por entre tropeços, telhados e nuvens esfuziadas

       Na alegria leve que só em nós não se demorava, pois 

       A vida é breve, grave, assim achamos e nada sabemos

       Sob todo esse peso do mundo

       No chilreio citadino do findar dessa manhã

       Onde um dos três não quer ser o primeiro a dizer: 

       E agora...? 

       Agora, 

       Deixam cair na caixa de esmolas da minha ignorância,

       Garantem-me que foste de viagem pelas repetentes

       Quelhas, ruas e avenidas do esquecimento

       Lugar cendrado e triste onde chove sempre um pouco,

       Aí andarias, sem dares notícia ou alguém que as recolha.

       Talvez então, pela noitinha ou num final de manhã

       Nos encontremos por aí numa rua ou numa ombreira

       (plof do guarda-chuva que enrolado me acompanha,

       bicando o chão como se picasse folhas-mortas)

       E te ofereça resguardo

       Sob a repentina copa da cor madura do melão

       Visto que ambos seguimos na mesma direcção

 



 (a Mané Valente, in memoriam)

       Imagem: pintura de Felix Casorati.

       Fotografia, da esquerda para a direita: Manel e Mané, circa 1972, Porto, fotógrafo desconhecido.

 



26 abril 2022

VAI E DIZ


As jovens que sem pensar muito nisso

Nos deram à luz, são já mortas

São já mortas as jovens que 

Nos soltaram à luz sem outro arrimo

 

Mãe, eis-me cativo neste ilhéu

Chamando-te sem que chame por ti

E agora, que desanimei de o tentar

Sigo a chamar quem daqui avisto

 

Mas, azafamado em fazer-se ouvir 

Por quem chamo não me escuta

De suas ilhas chamam por ti ou por

Quem te corresponda e lhes responda

 

Mas há escritos nos vidros das janelas



Imagem: Donne in Barca, Felice Casorati (1933).

24 agosto 2021

CONTRAFACÇÃO

  


                         Como mencionaste as nuvens
                         De uma tarde que anoitece

                         Enviei-te o retrato exacto

                         De uma noite que amanhece

 

                         Não deste pela diferença

                         Já que nuvens por lá estão

                         Quanto ao resto, pouco importa

                         Se não passou de ilusão

 

                         Falavas da fímbria rosada

                         De um sol que, indo, se demora

                         Ora uma tal tonalidade

                         Tinge também o nascer da aurora

 

                         Não deste pela diferença

                         Nem viste a contrafacção

                         Não é pela senda da verdade

                         Que palmilha o coração


© foto: pedro serrano, bico do muranzel, julho 2021.

28 julho 2021

UMA OUTRA PRAIA

 


        Custou-te assim tanto?

          quis ele saber, sentados à mesa de um café.

          Invoquei o somatório de anos, uma vez que

          é sempre mais singelo o raciocínio do merceeiro

          E fiquei-me a olhar lá fora, onde

          na meia-distância, um bando de crianças

          se entretinha ordeiramente na areia

          Crianças de orfanato, crianças amestradas

          ou porventura tornadas solenes pelo areal e a vista de água.

          Mas a resposta dada não era moeda precisa do que me sucedera e

          o assunto restou suspenso em mim como uma bruma balnear.

          Talvez o maior custo, talvez,

          fosse o ter de me mover até um destino ainda informe

          os anos de errância...

          Um dia, mas como distingui-lo na distância?, fui capaz de olhar para trás,

          e distinguir o longe de onde viera, as ameias ruídas, o caminho

          que fora pisado em passos incertos e olhos no horizonte, reverentes

          como os das crianças que agora seguem em fila a caminho do mar


© Fotografia: pedro serrano, junho 2021.

28 junho 2021

TÁBUA RASA


     Talvez por saberem que vesti um dia a pele de médico

     Familiares, amigos, gente conhecida, dirigem-se-me

     Certos em tom de brincadeira, outros como se lhes fosse pormenor risível:

     Não haverá por aí umas vitaminas que ajudem a memória?!

     Alguns, ainda, empurram o assunto na sequência de um livro que, ainda há

     dias, os deleitou e de que não recordam o enredo; um nome, a meio da

     conversa, que não conseguiram reaver

     Aquele actor preferido, aquele que connosco andou no liceu, a que morava em

     frente... 

     Disponho respostas tamisadas, como se temperasse água gelada com água

     fervente,

     distribuo generalizações benevolentes: oh, à medida que se vai entrando nos

     anos...; conselho aquosos: umas injecções de beber, há quem diga que não

     fazem nada, mas pode ser que contigo....

     Escreves-me o nome?, de outro modo vou esquecer.

     Sim, sim, claro. Passava-te uma receita, mas não são comparticipadas.

     Ficámo-nos por aqui e os dias vão sucedendo. Por onde andei eu durante eles?

     Hoje a minha mãe não conheceu a minha irmã; viu-a no corredor e perguntou

     baixinho, como se tivesse medo de a poder ofender: quem é aquela mulher

     que está cá em casa?. É a Cristina, mãe, a sua filha; não está a ver!?

     Estaria a ver, mas algo se perdera entre a vista e o reconhecimento de algo

     tão íntimo como um corpo que saiu de outro. 

     Nem disse à Cristina, coitada! Achas que poderá ser demência, aquela coisa do

     Alzheimer?

     As palavras ferem como rochedos negros de água, surpreendidos durante a

     maré-vasa. 

     Que idade tem a tua mãe agora?, faço por sobrevoar, sem olhar para baixo,

     tempos em que primeiro vi essa mãe, bastante mais nova do que sou eu

     mesma.

     Espera aí, agora que perguntas... Se fosse vivo, o meu pai estaria a completar

     cento e um, ela é cinco anos mais nova... Tem noventa e cinco, vai fazer...

     Pois... Mesmo assim, é tempo.

     Será, mas, olha, o pai da Ângela, por exemplo: é dois anos mais velho e está

     lúcido como um pero, mais do que a filha!

     Bem, essa também nunca foi... Não é dos melhores exemplos.

     Cristina riu um pouco, o suficiente para poder continuar a explicar-se:

     Uma tarde destas esteve no lar o meu tio - filho dela, tem cinquenta e seis

     anos - e, quando saiu, ela comentou: está tão grande, o teu tio... Sabes, como

     quem duvida que ele pudesse ser ele, como se o estivesse a olhar criança e

     tivesse feito tábua-rasa do tempo que, entretanto, passou!"

     É bem possível...

     É bem possível, o quê? Mas, sabes, a questão é que nem sempre é assim! Há

     dias em que lembra perfeitamente a idade dele - a dela-, com quem ele é 

     casado; quem é cada um de nós, os nomes dos nossos filhos; quem lhe

     telefonou na véspera... Outros, confunde o neto com o marido, o filho com o

     pai.

     Pois, essas perdas da memória não são acontecimentos lineares... Têm

     oscilações, idas e vindas...

     Quem mandou que arrumássemos o tempo em pastas com fitas, capas de

     elásticos; gavetas e gavetinhas, escaninhos de secretária antiga? Chega um

     tempo e o tempo não se contém em compartimentos: extravasa, horizontal,

     enodoa...; ou evapora-se, como a traça depois de comida a lã.

     Então tudo pode vir a juntar-se, a encontrar-se num tempo único; lado a lado

     deitados na areia de uma mesma praia, sob um sol único e uma só nuvem,

     que fugiu para sul.

     Antecipa-se, o esquecimento, e antes que nos deslembrem as pedras e as

     gavetas dos cemitérios, vamo-nos nós esquecendo de nós próprios, como o

     menino que, antes de regressar à carteira, deve apagar o quadro onde

     escreveu. 

     Para que ceda a vez a outro, a outro, e a outro ainda.


© Fotografia de pedro serrano, Torreira, maio 2021.

09 junho 2021

CALADA DA NOITE





© fotografia: pedro serrano (2021).















De súbito, a noite inquietou-se

Um cão ladrou perto, um rosnado persistiu entre latidos,

tal se fosse um eco ou este cão sussurrasse a outro cão,

E um silêncio desconfiado ficou a pairar

Deitado, fincado sobre os cotovelos, aguardei, atento,

Intensificando em mim atenções dos dias em que deambulei felino,

eternidades de hélices de ADN atrás,

Até que a espera se fatigou, os cotovelos cederam da posição de enxertia,

E a noite regressou fragilmente ao silêncio que fôra. 

 

 

 

 

25 abril 2021

25 ABRIL PLUG-IN



Na copa de uma azinheira

De que já não sabia a idade

Aterrou uma Senhora

Movida a electricidade

23 agosto 2020

ETERNIDADE #2




Não te preocupes
Não tarda pela demora
Haverá sempre mulheres lá fora
A falar em voz alta e preclara
As suas coisas pequenas e enormes
Acende a luz e dorme





















© Imagen: Paul Sérusier, Les Danaides (1897).

04 agosto 2020

DAR À LUZ




Sou aquilo que tu olhas
Sou aquilo que não vês
Não me despojes das folhas
Nem perguntes os porquês












© Imagem: Edouard Valloton (1865-1925), Box-Seats at the Theater.

12 junho 2020

SANTOS DA CASA

© Fotografia de pedro serrano, Ordem dos Médicos (Porto), Junho 2013.

26 maio 2020

30 abril 2020

18 abril 2020

ESPERA



© Fotografia de pedro serrano, Tessalónica, Grécia, 2018.

09 abril 2020

ELOGIO DA MÁSCARA

Máscara, ó máscara
Como és difícil de rimar!
Estou aqui cheio de ensaiar
Arranjar-te uma correspondência
Mas és árdua como a evidência
Que a Organização Mundial de Saúde 
Nos tarda tanto, tanto, em anunciar. 
Estou para aqui cheio de tentar!
Fosses, por exemplo, um par de luvas
E punha-te a calçar cinco pares de dedos
Um par por cada um dos segredos
Que (alegadamente) nos andam a ocultar.
Máscara, é que não há maneira,
Se ainda fosses, vá lá, uma viseira
Ficavas por aqui à minha beira
Paulatinamente a embaciar
Não te havia de largar.
Consertava-te o elástico,
Se começasse a afrouxar,
Ou soldava-te o acetato,
Com a ajuda dum agrafo,
Se começasse a derrapar.
Se fosses um respirador, 
Rolariam, de repente,
Um ror de rimas a repicar:
Corredor, andor, amor, vapor...
Agora, máscara?!
Ó eminências da ciência
Então para quando essa evidência
De que todos as devemos afivelar?
Ninguém a poderá apressar?
Ó Guterres, vê se dás aí dois berres
A essa Organização tão Mundial 
Olha que ninguém te vai levar a mal
Afinal, és tu que entra com o cabedal
Que aboleta ao Tedros o colchão,
O motorista, e o subsídio de refeição.
Máscara, máscara, quem tas cantara!
E eu, assim, numa camiseta de sete varas.
É que isto das palavras esdrúxulas... São irrimáveis
Não só são ridículas, como muito pouco amáveis.
Máscara, ó máscara
Chega! Feliz Páscoa. 


Nota razoavelmente técnica: máscaras, respiradores e viseiras integram aquilo que habitualmente se designa por EPI, ou seja: equipamento de protecção individual. No que se refere a máscaras (onde cabem as cirúrgicas - FFP1 -; e os respiradores - FFP2 e FFP3), gostam de nos dizer que não existe evidência científica para o seu uso, isto é que não existem suficientes artigos científicos publicados que fundamentem a vantagem inequívoca do seu uso. Sobre isto da evidência convirá esclarecer que uma ausência de evidência demonstrada não é sinónimo de não haver efeito, ou seja: que as máscaras e respiradores não nos protejem do coronavírus (e outros vírus e bactérias). Deste modo, manda o princípio da precaução em saúde e do bom-senso que, numa situação como a actual, as usemos sempre que nos expomos a terceiros e aumentamos assim o risco de ser infectados, pois na actual fase de transmissão comunitária da epidemia, qualquer pessoa pode ser fonte de contágio, mesmo que ela própria se julgue sã.

PS: Quanto à imagem, é uma fotomontagem que encontrei, como tal, no YoutTube; onde abundam clips com as conferência de imprensa diariamente servidas pelo Ministério da Saúde.

02 abril 2020

COVID19: OS SINTOMAS EXPLICADOS AO POVO



Seja bem aparecida, Dona Sofia
Como vai hoje a sua disgueusia?
Ai, nem me fale nisso, vizinha
Que estou aqui toda tolhidinha,
Passei a santa noite a delirar, na verdade  
Sonhei que nos tinham cercado a cidade!
Alevantei-me, pus o xaile, enfiei as chinelas
A ver se me ventilava ao peitoril da janela
Mas não se aliviavam, os bofes malditos
Tive de ir à credência entornar um copito.
Maduro branco, uma pomada de categoria
Mas soube-me como se fosse só água fria
Acho que poderá ser essa tal disenteria
E, vosmecê, já arrebitou da sua anosmia?

Credo mulher, lá vem você com os exageros
É preciso fazer como dizem as autoridades
Ver a coisa pelo lado das proporcionalidades!
Derivado à asnomia, já nem sei o que pensar
Ontem, o meu homem, assentado à sala-de-jantar
Contrariou-se no turno do teletrabalho
Queria-me mandar os colegas pró ca*****
Tive de recapitular: Antunes, olha-me a tua cólica
Que, entre nós, quando o aperto o assedia
Pulveriza-me o ar que nem uma central eólica 
Para descontaminar, tenho de meter a casa a arejar.
Depois fui espreitar a minha Elizabete, ralada
Beta, estás isolada?, gritei sem cruzar a entrada.
Ai, mãezinha, que foi agora, quis ela apurar
Soprando nos sabugos  que estavam a caiar. 
Nada, é o teu pai que está a dar rateres à toa
Mas ainda não é critério para uma zaragatoa.
Oh, senhora, não me venha com esse retrato
Que não vou pôr-me a ligar para a Saúde24
E ficar o estupor do dia todo a martelar,
Tenho as unhas a estrear! 
Mas a mãezinha, voltou ela, como espantada
Não está com a fachada da marquesa encrespada
Que aspirou uma fragrância avinagrada
Ou farejou tampa de esgoto destapado
Será que não terá o olfacto avariado?
Olhe que vi ontem no Watsàpe do David
Que isso pode ser derivado ao Covid.

Nota razoavelmente técnica: Disgueusia consiste na perda ou modificação da percepção do sabor dos alimentos (podem saber a uma coisa diferente do habitual e isso pode acontecer apenas com certo tipo de alimentos, e não com todos, podendo também variar de pessoa para pessoa. Quanto à anosmia consiste na perda do cheiro, sem a pessoa estar com o nariz entupido.

© Fotografia: Portografia.


01 abril 2020

ANTIGAMENTE


    © Fotografia: pedro serrano, Porto (Ordem dos Médicos), 2019.

18 julho 2019

DOMINGOS À TARDE

Há vezes, por vezes... Não:
Às vezes, ponho-me a achar
     Que, no seu dia a dia por Lisboa
Fernando Pessoa, o poeta 
Deveria ter sido parecido
Ao meu tio Domingos, 
O meu tio-avô Domingos,
Tio por afinidade.
O meu tio Domingos, casado
Com a minha tia Fernanda,
Tia-avó Fernanda, irmã do
Meu avô ou seria da minha avó?
Por quem a minha tia chamava, sempre
A dobrar: "Ó Domingos, ó Domingos"
Às vezes... Não:
Por vezes, apetecia uma coisa doce
Ao tio Domingos e como somente sabia
Lidar com a papelada quadriculada
Da Caixa-Geral de Depósitos, em cujo quadro contabilizava,
O meu tio pedia por esse mimo à mulher, dona de casa.
E ela, que era um pouco frívola e péssima cozinheira
Aconselhava que tomasse uma colher de xarope da tosse,
Não muito, apenas uma, de chá, que não esquecesse
A obstipação e o irrigador esmaltado atrás da porta.
E ele, o meu tio-avô por afinidade, 
Tomava uma, a prescrita, e engolia outra à pressa,
A proscrita, antes que a minha tia levantasse os olhos
Do tricot que entretecia, espreitando ao canto da cortina
Quem passava, de regresso ou a caminho da Arca d'Água.
Viviam sós, os dois, numa casa silenciosa que deitava para a rua
Embora nas traseiras, do tabuado escarolado da varanda corrida 
E das telhas de xisto preto em forma de quinas que a revestiam
Descesse uma escada de pedra para um quintal murado, com 
Canteiros de parede, flores de uma só face e uma ameixoeira ao centro.
Mas ninguém apanhava os frutos: às que pendiam na árvore
Quem poderia chegar? E, às caídas no chão, seria demasiado arriscado
Tocar, ousar, sequer, pensar em consumir... Ameixas ao sol!
Dizia a minha tia-avó Fernanda, peremptória como um banqueiro
Enquanto, sentado à borda da sua poltrona como uma visita
O tio Domingos juntava em prece as mãos brancas e nodosas
E percutia levemente as polpas dos dedos uns nos outros, sem ruído
Como que a desenferrujar as impressões digitais e
Projectava os beiços além da linha de água do rosto, sonhando
Talvez com a papa encarniçada e doce de ameixas ao sol
Ou, prático como um caixa-geral, com o frasco de xarope
No armário do quarto de banho, aquele cuja porta rangia
Cada vez que se lhe mexia, sendo aconselhável tossir em uníssono ao abri-la
Para, em sendo caçado, não lhe fosse sarrazinada a colherada extra. 



03 dezembro 2018

PORTO INTERPELADO


Porto, Oporto

Quem te apostrofasse

Em prosa ou em rima

Siza Vieira e Viana de Lima.

 

Porto, Oporto

Quem te exclamasse 

No júbilo ou na mágoa

Campolindo, Bonfim e Arca d’Água.

 

Porto, Oporto

Quem te afiançasse

Os muros e as redes

Furadouro, Boavista, Entreparedes.

 

Porto, Oporto

Com apenas duas avenidas para mostrar

Oh, mas ambas levam, a descer, até ao mar

Olha a pérgula, olha a rede, olh’ó castelo

Olha as praias [que lindo], as ondas a chafurdar

E revoadas d’areia para a gente se espojar

Olhos semicerrados, papo a torrar 

Sol na tanga e no sutiã

Língua-da-sogra, bola de Berlim, curassã.

 

Porto, Oporto

Dos toldos vermelhos das churrascarias

Descerrados como pálpebras capotadas

Ou como intenções mal amparadas

Batata frita oleada, febras, entremeada

Chiam os frangos a rodar, a virar, a rodar.

 

Porto, Oporto

[Cisma alguém num eléctrico para S. Mamede]

Das casas embrulhadas em azulejo

Da tanta janela para tão pouca parede

Da luz que foge, se aperta e refulge nalgum brejo

Calçada em Santa Catarina, despida na Cordoaria

Espreguiçada, ouro e mica, na baixela da foz do rio.

 

Porto, Oporto

Por onde pairas agora?

Quando o silêncio goteja

E o nevoeiro – algodão doce enregelado 

Se demora nalguma escadaria de igreja

Atravessado, encolhido, enfastiado

Como um pombo num beirado

 

Porto, Oporto

Mânfios de sapato afiambrado por engraxador

Cuspinhando no chão enquanto trepam as Virtudes

Apressados, as gabardines a pairar os ombros

Como a fumaça das castanhas em Novembro.

 

Porto, Oporto 

Dos arrumadores a mancar, a limpar, a esbracejar

Pensos rápidos e lenços de assoar

Das putas da Alegria, dos chulos na Bolsa

Dos condutores de braço em riste

Extravasando a janela, indignados,

Vociferando: “que foi, nunca viste?”

E outros que bem gostariam de se pronunciar

Mas fugiu-lhes a lábia por entredentes

Lá em Paranhos, em Agramonte

Na Lapa, a Pradorepousar

Os mais alternativos a fumegar...

Olha a lápide, olha a vela, olha a jarrinha

Endireita-me esse molho de cravinas

Adeus, mãezinha, Deus seja contigo

Pró ano trago uma renda nova pró jazigo.

E cá por fora, ainda fora, ainda à tona 

Tanta perna, tanta bochecha, tanta cona

A passejar, a rebarbatar, ao arejo

A recordar que um dia cá por cima

É um bom dia, um bom dia – Salvo seja!

 

Porto, Oporra

E se te fosses foder?

Mais o teu regionalismo tacanho 

Sempre na sopesação do teu tamanho

Resmoneando remoques contra a capital

Que encofra para ela todos os favores

Um concentrado de régulos e regedores

Olha quem fala, olha quem cala.

 

Porto, Oporto

Não cheira a rosas na Areosa, mas

Olha a Rotunda, como está agora

Um diamante deitado

Cravejado no asfalto

À entrada da avenida...

Tal e qual como lá fora.

Marafona rebrandada e lúbrica

A nossa casa da Música

É que nem o centro cultural, mas ainda mais

Mundial, toda em vidro, anodizados e cimento

Que presença, engenheiro, que argumento!

Sim, pode recuar – mais, mais – tá no ponto

Não se rale do tiquê, estou aqui até às oito. 

 

Porto, Oporto

Alho porro, manje-rico

Bacalhau empunhetado

Abrilhantado, enfarruscado 

Equinócio, soles-tício 

Vespertino, matutino

Desnorteado, orientado

Bem-nascido, malcriado

Invictório, mictório, romaria

Hoje é sempre a véspera do dia

Em que ali regressarei.

 

 


© Porto Unnamed, Fotografia de Maria João Pinto Basto.