31 outubro 2010

VOU-TE CONTAR: 28. Entrada Norte

Banqueiros do Porto (o meu avô é o primeiro sentado à esquerda).
O pai da minha mãe era director de um Banco, mas não é por esse lado que o recordo, nem acho que fosse assim que ele gostava, maioritariamente, de se ver ou de vir a ser recordado. 
Morreu num fim de tarde em que eu saía para ia marcar uma operação às amígdalas; tinha oito anos e não me deixaram assistir a nada relacionado com a sua morte. Lembro melhor a sua sala de jantar do que a ele, recordo com mais nitidez o seu escritório do que os seus gestos ou a sua voz.
O meu avô escrevia que se fartava, escreveu sobretudo comédias, mas também poesia e ainda arranjou espaço para traduzir para português o Stephen Zweig. Gostava particularmente de escrever para teatro e as suas peças tanto foram estreadas, para plateias cheias e rendidas, no Teatro Sá da Bandeira como no salão do bilhar da sua casa, as filhas, as noras e as sobrinhas a fazerem de actores, a mulher no guarda-roupa, naquele género de utilização da família que, muitos anos depois, se tornaram pedra de toque de tipos como Francis Ford Coppola ou Martin Scorsese... Europa do Sul, nativa ou exportada.
Uma das suas peças (A Costureirinha da Sé), escrita a meias com um amigo, uma opereta passada no Porto, fez tal sucesso que se transformou em filme, o primeiro filme português a cores (Manuel Guimarães, 1959).
Mas, como dizia, recordo mal o meu avô e o que tenho a riscar-me a memória são cenas fortuitas, como encontrá-lo no terreiro da sua enorme moradia a preparar-se para entrar num Peugeot 403 bicolor, castanho e preto e, ao ver-nos chegar pelos portões escancarados, tirar do bolso do sobretudo um par de sapatilhas, com que tinha a mania de nos presentear. Todo o acto a desenrolar-se sob o olhar atento da minha avó, que na sua estatura mignone, vestida de negro e com golas de pele, fazia lembrar o perfil da Giulietta Massina, a grande dama do cinema italiano e companheira amantíssima de Federico Fellini.
De raspão, antes de ser puxado para fora por poder estar a incomodar, tive também um vislumbre dos bastidores da feitura do Almanaque do Porto, um produto que ele imaginou e concebeu por mais de uma década, presença costumeira nos lares do Porto e minha companhia fiel nos tempos em que, sentado na retrete, mal chegava com os pés ao chão. Anedotas, charadas, palavras cruzadas, provérbios, fotos da nossa terra (que nesse tempo ia de Famalicão a Diu e de Monsaraz a Lourenço Marques), conselhos agrícolas, fases da lua, curiosidades científicas e do mundo do celulóide, um protótipo de banda desenhada, enfim – tudo quanto pode ambicionar uma leitura transgeracional light e variada.
Entrada Norte (anos 50 e, já aqui por cima, ano 2004) .



Eis o meu avô, de pé, por trás da sua escrivaninha de madeira cor de tabaco, empunhando um frasco de cola com uma embocadura que parecia um tetina de biberão, a colar, em folhas de papel almaço, recortes de notícias, quadriculados de palavras-cruzadas, fotos preto-e-branco. Foi o meu primeiro contacto com a edição e a surpresa de perceber que qualquer obra definitiva tivera os seus dias de andaimes. Nunca soube (aliás, nem ele nem eu), que nesses momentos fugazes me estava a passar as bases do entendimento da obra a vir e do valor da perseverança.
Lugares sagrados da minha infância, essa parte da casa dos meus avós onde ficava, entre vidros e dourados, a luxuosa sala do piano, o escritório do meu avô e, até, o lavabo contíguo à entrada Norte da casa, uma entrada que, embora fosse a principal da casa, raramente era usada por tão formal e pouco prática e em que o lavabo, por razões gémeas de diminuta utilização, mantinha um ténue, levíssimo, aéreo, aroma a esgoto. Mas, sabe-se da sensibilidade de olfactos praticamente virgens e como são arquivadas nas gavetas mágicas e definitivas dos sentidos os potentes produtos do gatilho da imaginação. Recordámos, eu e os meus primos, esse perfume sanitário com tal precisão que, agora que a casa foi vendida a terceiros e esse mundo se impediu de ser pisado, o conseguiremos reconhecer de imediato se, porventura, pelo facto de o mundo ser redondo, toparmos com ele noutra latitude.    

 © Imagens (de cima para baixo): (1) Porto, anos 40, fotógrafo desconhecido; (2) Convite para a peça de teatro O Filho Que Deus Me Deu, 1954; (3) Porto, anos 50, fotógrafo desconhecido; (4) Porto, Pedro Serrano, 2004. 

29 outubro 2010

A primeira parte da segunda parte

Nunca se deve deixar escapar o pequeno-almoço num hotel de cinco estrelas. Aprendi a praticar isso, profissionalmente, com a Teresa V. em Luanda, no Trópico, que só ostenta quatro estrelas mas expõe todas as manhãs um buffet de pequeno almoço que desafia a baixela de qualquer firmamento mais estrelado, incluindo o dos ovos.
Ao fim de semana, o primeiro a acordar telefonava para o quarto do outro:
“Pequeno almoço...”
“Vou ter contigo lá baixo daqui a cinco minutos”, grunhia o outro em linguagem quase gestual.
Um quarto de hora depois, parecendo uma zombie no modo como levitava entre as mesas para chegar à nossa, a Teresa aparecia, evitando abrir demasiado os olhos para não espantar o sono. Tomávamos o pequeno almoço em ruminante silêncio, cheios de pequenos gestos falhados, ditados pelo estado de entorpecimento em que nos queríamos manter, e voltávamos para cima para aquilo que ficou conhecido entre nós como sono bietápico e cujo sinal de partida para a segunda parte, que se estendia mais ou menos até ao meio-dia, era dado pelo adeusinho manual com que nos despedíamos da porta do respectivo quarto.
A máquina de fazer torradas do Tiara, no Porto, é uma daquelas que agora se encontram em todos os hotéis, dotadas de uma passadeira rolante onde se depositam as fatias de pão que são conduzidas, numa reverberação alaranjada, para o seu inferno privado até serem cuspidas, uns minutos depois, no andar de baixo. Geralmente deposito o pão no andar superior e circulo pela sala a acabar de encher o prato enquanto entretenho o bronzeado torradal. Ontem, fartei-me de esperar pelo meu pão, inclusive inclinei-me a espreitar para dentro da máquina até concluir, escandalizado, que alguém se tinha aproveitado delas! Algum predador de torradas ou, pior, alguém não habituado a frequentar hotéis de cinco estrelas!
Voltei para cima, pus a rodar, muito baixinho, o concerto para piano n.º 23 do Wolfgang A., e enfiei-me na cama, desejando ter a capacidade de reatar o sonho de que tinha despertado menos de uma hora antes...
Atravessava uma praça ampla, enquadrada num céu azul rarefeito, as casas, lá ao fundo, esguias e esticando-se no ar, suspensas de um único pilar que nascia do fundo da parede posterior.
“Podíamos fazer uma canção”, digo para um companheiro que, embora siga ao meu lado, não avisto. E começo de trautear, para o ar puro e ascensional da manhã, uma melodia que me vem de dentro, bela e inédita, e a que vou fazendo ajustes na melodia enquanto me brota lábios fora.

© Fotografia de Pedro Serrano, Tokyo (Imperial Hotel), 2005.

22 outubro 2010

ROSAS PARTINDO O AR

Corsário (João Bosco/Aldir Blanc) - interpretação de João Bosco




Meu coração tropical está coberto de neve mas
Ferve em seu cofre gelado, a voz vibra e a mão escreve: Mar
Bendita a lâmina grave que fere a parede e traz
As febres loucas e breves que mancham o silêncio e o cais
Roseirais, Nova Granada de Espanha
Por você, eu, teu corsário preso
Vou partir a geleira azul da solidão
E buscar a mão do mar, me arrastar até o mar, procurar o mar
Mesmo que eu mande em garrafas mensagens por todo o mar
Meu coração tropical partirá esse gelo e irá
Com as garrafas de náufragos e as rosas partindo o ar
Nova Granada de Espanha e as rosas partindo o ar
Mesmo que eu mande em garrafas mensagens por todo o mar
Meu coração tropical partirá esse gelo e irá

18 outubro 2010

VOU-TE CONTAR: 27. Nada ficou como dantes

Estacionei num lugar impossível em frente à entrada, estendi uma moeda ao arrumador e fui vasculhar uma daquelas lojas de flores que há sempre em frente aos cemitérios, na vizinhança de oficinas onde se aparelham lápides e se gravam baixos-relevos fúnebres.
Ia à procura de rosas, mas só as havia de papel encerado. Comprei umas flores semelhando rosas pequeninas, tinham-nas brancas, vermelho-pálido e violeta; quis destas últimas. À saída da loja, um homem tomou-me o bouquet das mãos, empunhou uma tesoura de poda:
“É para jarra?”
“Sei lá”, respondi, “não faço ideia...”
“Então é melhor cortar pouco...”, contemporizou ele a bissectriz, dando um pequeno golpe ao pé.
Não ia ali desde o dia do funeral, faz três anos no mês que vem. Não vira sequer ainda a pedra que tínhamos mandado fazer para cobrir o quadrilátero de terra que encima a campa.
“Estou aqui numa daquelas lojas em frente ao cemitério, que fazem lápides, sabes?”, disse a minha irmã mais nova quando atendi o telefone, “vamos tratar da pedra?”
Havia que decidir o tipo de pedra, o que inscrever nela, que tipo de entalhes preferir para as letras.
“Granito, não achas?”
Sim, sem dúvida, entre o rigor do granito e o adoçado do mármore, o meu pai preferiria, com toda a certeza, a simplicidade austera do primeiro. E depois o granito é a cor da aldeia dele, da paisagem que lhe envolveu a infância. 
“O homem quer saber o que se vai escrever e a cor das letras: podem ser sem cor – a cor da pedra –, dourado ou em preto.”
Foi fácil acordarmos o registo do primeiro e do último nome, o primeiro e o último ano, depois ficámos em silêncio: era tudo? Ela disse:
“Podíamos pôr uma frase qualquer, não achas?, que dissesse alguma coisa sobre ele...”
Lembrei que talvez uma frase sobre nós, o que ficava em nós depois dele partir, dissesse ainda mais sobre ele. 
São três da tarde e está um dia benévolo de Outono, um gato preto dorme, enroscado ao sol, no topo de um jazigo. O cemitério é enorme, mas optei por tentar encontrar o local sem perguntar nada. Depois, se me perdesse, perguntaria; não me apetecia dizer a quem ia. Segui a intuição dos pombos.
Fui lá dar quase directamente; de repente reconheci a curva no caminho, o canto, encostado às traseiras de um jazigo, onde a campa está. Zigzagueei entre campas e ei-la, que é aquela de certeza; reconheci a pedra de uma foto de telemóvel que a Susana me mandou para mostrar como tinha ficado a lápide. Então, a dois metros de ter de parar por ter chegado ao meu destino, ao lado da hortênsia e do pé de roseira enfezados que brotam de uma sepultura abandonada, os olhos enchem-se-me de lágrimas sem aviso, sem aperto do peito, sem evocação nenhuma, apenas, suponho, porque o reencontrei ao fim deste tempo todo. Naquele estado de silêncio reflexivo, receptivo. E ele que tem estado sempre ali.
Peço mentalmente licença e sento-me sobre a lápide de mármore da campa da senhora que está ao lado dele. Fico um pouco, a olhar a pedra, sem pensar em nada de concreto, como se tivesse mergulhado no buraco de tempo e de intenção que há entre o fim de uma expiração e a próxima inspiração. 
Sobrevivem-nos as pedras e a luz do sol.


















© Fotografias de Pedro Serrano, Porto, 2010.

13 outubro 2010

THE DAYS OF WINE AND ROSES

Um dia (oh, daqui a muitos anos), juntos ou separados, vão olhar para esta foto e recordar:
“Foi no apartamento em Santos Pousada, lembras-te?”
“O teu pai ia a sair, até lhe perguntaste se queria ajuda com a mala...”
“Que novos que nós éramos, olha só!”
“Estou com um ar horrível, não achas?”
“Não...”
“Não achas?! Olha só a minha cara espantada...”
"Não estás nada, estás bonita."
Era um dia de princípio de Outono, a manhã chegara dourada, com uma promessa de mornura. Desci as escadas e fui pôr a minha mala na mala do carro. Depois subi a rua da Constituição como se tudo fosse dado como garantido.


Nota: "The Days of Wine and Roses", canção (Johnny Mercer/Henri Mancini) da banda sonora do filme do mesmo nome, realizado por Blake Edwards em 1962.

© Fotografia de Pedro Serrano, Porto (Outubro 2010).

10 outubro 2010

Alma & Anexos

"E tu longe de o sonhares!"
Arregalou-se, siderada, Helena
Resvalando à sua pose comum
Tão maioritariamente serena.


"É, vê-me tu só a ironia:
Tão maioritariamente serena...
Foi a última, quem o diria?
Aquela tarde que amanheceu amena."


"E a vida que assim corria
Tão maioritariamente serena!"
"Pois, mas a vida é uma pequena
Em que nem sempre se pode confiar."











© Fotografias de Pedro Serrano: (1) 2009; (2) 2010.

03 outubro 2010

Beleza premeditada em estado puro

Le Parc. Coreografia: Angelin Preljocaj. Bailarinos: Aurélie Dupont, Manuel Legris. Música: W.A. Mozart (Adagio do Concerto para Piano n.º 23, 1786)

02 outubro 2010

VOU-TE CONTAR: 26. Corpo presente

Ao contrário da minha mãe, que era toda romance e poesia, o meu pai abominava obras de ficção, abarcando neste seu desinteresse o cinema que não fosse estritamente documental. Lia muito, mas os seus interesses restringiam-se a disciplinas como a História, a Astronomia e as Ciências Naturais, dentro destas a sua predilecção orientando-se para as neurociências e a busca da Consciência. As descobertas de Hanna e António Damásio na exploração das conexões entre o biológico, o fisiológico e o filosófico entusiasmaram-no, pois o mistério que, acima de todos, o fascinava e intrigava era a emergência, como um sol, da consciência sobre o aparente caos das redes neuronais.  
Nos últimos anos vi-o também interessar-se pelo estudo das religiões e a sua queda pela música, manifestação emocional a que não atribuía grande importância, aumentou. Era frequente chegar a sua casa, pousar as malas no hall para o ir saudar, entrar na sala e reconhecer os sons do adagio molto e cantabile da IX Sinfonia de Beethoven.
“Estou aqui a ler aquele livro que tu e a João me deram no Natal”, referia, mostrando a capa do Alcorão.
Não era crente, o meu pai, e acreditava tão pouco nos romantismos da vida eterna que nem sequer pôs a possibilidade de vir a ser sepultado no mesmo cemitério onde ficaram as cinzas da minha mãe, preferindo os palmos de terra a que tinha direito (“de borla”) no cemitério de Agramonte, por ser irmão da Ordem de S. Francisco. E sete anos de seminário vacinaram-no contra as seduções do Cristianismo e os códigos de barras da Igreja Católica. Mas de modo algum era um ateu e o Padre Avelino, superior dos Frades Capuchinhos, nossos vizinhos de rua e visita frequente, respondia-lhe, se ele o picava com a sua ausência de fé:
“O senhor não precisa de religião nenhuma, Dr. Serrano, já tem religião que chegue: o senhor é um místico por natureza!”
E então, nos seus últimos anos, nas tardes melancólicas de lareira, o meu pai ouvia Beethoven e canto gregoriano como pano de fundo das suas leituras do Bhagavad-Gita.
“Sabes, olha que ainda é com estes gajos que eu me identifico mais...”, dizia-me batendo com o indicador nos Ensinamentos de Buda, o livro assinalado com as tirinhas, feitas à custa de papel do Público, que usava como marcas para as passagens que tencionava rever ou reter.
Cheguei. Passa das dez da noite quando viro o focinho do Peugeot contra o portão da casa, os faróis iluminam as grades negras. Saio do carro para abrir o portão e olho a casa, como que à procura de algum detalhe que a diferencie pelo que se passou lá dentro. Nada, jaz em absoluta imobilidade, uma luz transparece nas janelas do hall que deitam para a Circunvalação.
Estaciono ao fundo da rampa, tiro a mala feita à pressa do porta bagagens (ainda bem que já tinha trazido o fato e a gravata preta, de outro modo acho que me tinha esquecido), bato a tampa com cuidado como se não quisesse acordar alguém. Ao cimo das escadas encontro o meu cunhado Gil, que me deve ter sentido chegar, me espera.
“Então?”, diz. 
Dou-lhe um abraço rápido, informa-me que os tipos da agência funerária estão lá em cima, no quarto.
“É o Lessa?”
“Sim”, responde, “a tua amiga médica esteve cá até eles chegarem, passou a certidão de óbito, combinou tudo com eles...”
A Casa Lessa é uma agência funerária de S. Mamede Infesta, enterra toda a nossa família há gerações, o pai do armador que está lá em cima já enterrou o meu avô, a minha avó. A ideia de profissionalismo discreto e completa abstenção de encenação-lacrimosa-para-uso-de-cliente que tinha deles seria outra vez confirmada nas cerimónias fúnebres do meu pai.
Na sala, todos agrupados no sofá, como se tivessem horror a estar distantes uns dos outros, as minhas irmãs, o meu cunhado Manel, uma grande amiga da minha irmã Susana que apareceu sem perguntar e está por ali para o que der e vier.
Venho cá para fora, para a noite fria de Novembro, em frente a igreja dos Frades Capuchinhos espera, as salas da cripta destinadas aos velórios são a menos de trinta metros da porta da cozinha da casa do meu pai! Junto a essa porta, roçando-se nela, mas sem intenção de entrar, está a gata branca e acastanhada que o meu pai foi tolerando no último ano, apesar da aversão essencial a gatos.
“Que impressão que ela gaja me faz!”, desabafa o Gil, a cara arrepiada como se fossem mãos a torcer-se de impotência, “tem estado toda a noite nisto, maluca, a miar, parece que adivinhou o que se passou lá dentro...”
E faz um gesto de a enxotar. Espavorida, a gata desaparece para trás do murete que há ao lado da porta da cozinha, que dá para a esplanada de tijoleira onde, dois anos antes, o meu pai caiu e partir o fémur. 
Ouvimos um barulho, vindo da cozinha; virámos a cabeça em simultâneo. Surgem os homens da funerária, fazendo gincana para conseguirem transpor a porta com o caixão. Estão a transportar o meu pai para a cripta e por ali é o caminho mais directo, não precisam sequer de usar carro nenhum, não há trajecto mais breve. Quando estão a passar por nós, a gata surge do nada, miando um uivo plangente, atravessa-se na frente dos homens que carregam o caixão, desaparece no escuro do quintal. Sinto um arrepio, vejo a cara atormentada do Gil, sentindo o mesmo que eu. O Gil acompanha os homens até ao portão de trás, sentado nas escadas que dão para o terracinho onde fica a lavandaria, olho, vejo, ouço, o portão fechar-se lá ao fundo – o meu pai não voltará mais aqui, à casa que mandou construir para ser o lar de todos nós. O Gil chegou à minha beira, diz:
“Olha que era muito amigo do teu pai, sabias? Mesmo amigo...”
Levanto-me, abraço-o; sente-se tão desamparado como eu.
“Sabia...”
O meu cunhado Gil encontrou outra família na minha mãe e no meu pai, naquela casa uma casa como sua. Ambos os sogros o apreciavam, o meu pai referia-se, entre o divertido e o conquistado, ao seu modo de ser explosivamente afectivo, ao ar atormentado:
“É boa gente, o Gil. Tem aquele jeito meio exaltado, mas é um rapaz de valor, e amigo...” 
Penso nisso tudo quando me vou deitar, umas horas depois, a cabeça pesada e as emoções fechadas. Lá em baixo, no quarto da cave, o Zé João já dorme; olho-o em silêncio enquanto me dispo e me deito com cuidado ao seu lado. Apago a luz, está escuro. Do lado de lá da rua, também numa cave, o meu pai está sozinho, fechado, às escuras. Tenho de dormir, o mais rápido possível, amanhã vai ser um longo dia, oxalá já tivesse passado.
© Fotografias de Pedro Serrano: (1) Porto, 2010; (2) Porto, 2007.