Banqueiros do Porto (o meu avô é o primeiro sentado à esquerda). |
O pai da minha mãe era director de um Banco, mas não é por esse lado que o recordo, nem acho que fosse assim que ele gostava, maioritariamente, de se ver ou de vir a ser recordado.
Morreu num fim de tarde em que eu saía para ia marcar uma operação às amígdalas; tinha oito anos e não me deixaram assistir a nada relacionado com a sua morte. Lembro melhor a sua sala de jantar do que a ele, recordo com mais nitidez o seu escritório do que os seus gestos ou a sua voz.
O meu avô escrevia que se fartava, escreveu sobretudo comédias, mas também poesia e ainda arranjou espaço para traduzir para português o Stephen Zweig. Gostava particularmente de escrever para teatro e as suas peças tanto foram estreadas, para plateias cheias e rendidas, no Teatro Sá da Bandeira como no salão do bilhar da sua casa, as filhas, as noras e as sobrinhas a fazerem de actores, a mulher no guarda-roupa, naquele género de utilização da família que, muitos anos depois, se tornaram pedra de toque de tipos como Francis Ford Coppola ou Martin Scorsese... Europa do Sul, nativa ou exportada.
Uma das suas peças (A Costureirinha da Sé), escrita a meias com um amigo, uma opereta passada no Porto, fez tal sucesso que se transformou em filme, o primeiro filme português a cores (Manuel Guimarães, 1959).
Mas, como dizia, recordo mal o meu avô e o que tenho a riscar-me a memória são cenas fortuitas, como encontrá-lo no terreiro da sua enorme moradia a preparar-se para entrar num Peugeot 403 bicolor, castanho e preto e, ao ver-nos chegar pelos portões escancarados, tirar do bolso do sobretudo um par de sapatilhas, com que tinha a mania de nos presentear. Todo o acto a desenrolar-se sob o olhar atento da minha avó, que na sua estatura mignone, vestida de negro e com golas de pele, fazia lembrar o perfil da Giulietta Massina, a grande dama do cinema italiano e companheira amantíssima de Federico Fellini.
De raspão, antes de ser puxado para fora por poder estar a incomodar, tive também um vislumbre dos bastidores da feitura do Almanaque do Porto, um produto que ele imaginou e concebeu por mais de uma década, presença costumeira nos lares do Porto e minha companhia fiel nos tempos em que, sentado na retrete, mal chegava com os pés ao chão. Anedotas, charadas, palavras cruzadas, provérbios, fotos da nossa terra (que nesse tempo ia de Famalicão a Diu e de Monsaraz a Lourenço Marques), conselhos agrícolas, fases da lua, curiosidades científicas e do mundo do celulóide, um protótipo de banda desenhada, enfim – tudo quanto pode ambicionar uma leitura transgeracional light e variada.
Entrada Norte (anos 50 e, já aqui por cima, ano 2004) . |
Eis o meu avô, de pé, por trás da sua escrivaninha de madeira cor de tabaco, empunhando um frasco de cola com uma embocadura que parecia um tetina de biberão, a colar, em folhas de papel almaço, recortes de notícias, quadriculados de palavras-cruzadas, fotos preto-e-branco. Foi o meu primeiro contacto com a edição e a surpresa de perceber que qualquer obra definitiva tivera os seus dias de andaimes. Nunca soube (aliás, nem ele nem eu), que nesses momentos fugazes me estava a passar as bases do entendimento da obra a vir e do valor da perseverança.
Lugares sagrados da minha infância, essa parte da casa dos meus avós onde ficava, entre vidros e dourados, a luxuosa sala do piano, o escritório do meu avô e, até, o lavabo contíguo à entrada Norte da casa, uma entrada que, embora fosse a principal da casa, raramente era usada por tão formal e pouco prática e em que o lavabo, por razões gémeas de diminuta utilização, mantinha um ténue, levíssimo, aéreo, aroma a esgoto. Mas, sabe-se da sensibilidade de olfactos praticamente virgens e como são arquivadas nas gavetas mágicas e definitivas dos sentidos os potentes produtos do gatilho da imaginação. Recordámos, eu e os meus primos, esse perfume sanitário com tal precisão que, agora que a casa foi vendida a terceiros e esse mundo se impediu de ser pisado, o conseguiremos reconhecer de imediato se, porventura, pelo facto de o mundo ser redondo, toparmos com ele noutra latitude.
© Imagens (de cima para baixo): (1) Porto, anos 40, fotógrafo desconhecido; (2) Convite para a peça de teatro O Filho Que Deus Me Deu, 1954; (3) Porto, anos 50, fotógrafo desconhecido; (4) Porto, Pedro Serrano, 2004.
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