25 novembro 2022

A FILOSOFIA DA CANÇÃO MODERNA: em jeito de Prelúdio ao novo livro de Bob Dylan

Da esquerda para a direita: Little Richard, 
Alis Lesley e Eddie Cochran.
The Philosophy of Modern Song [A Filosofia da Canção Moderna] - Bob Dylan

Edição original: Simon & Schuster, Nova Iorque, Novembro 2022, 339 páginas.

Edição em português: tradução de Angelina Barbosa & Pedro Serrano, Relógio d'Água, Lisboa, Dezembro 2022.


Com Dylan, nunca se sabe. 

Se já teve oportunidade de passear os olhos pela lista das 66 canções comentadas no livro (pode consultar a lista no final deste texto), é plausível que se esteja a interrogar sobre a razão pela qual o autor optou por escolher estas e não outras. Mas Bob Dylan não nos informa nunca sobre as motivações da escolha, pelo menos de forma perceptível a curta distância. 

Ou, em alternativa, talvez possamos perguntar-nos se, sem margem para dúvida, estaremos perante 66 das melhores canções populares dos tempos modernos. Seria ousado afirmá-lo, mesmo recorrendo a alguns dos métodos possíveis para pesar a qualidade a uma canção, um dos quais, por grosseiro, consiste em olhar a amplitude e duração do seu sucesso público. Embora algumas das canções elegidas tenham alcançado sucesso planetário duradouro (como "Blue Moon," "Black Magic Woman," "Mack the Knife," "Strangers in the Night," "Volare," "Blue Suede Shoes" ou "My Prayer"), outras não passaram de êxitos já esquecidos ou exclusivamente circunscritos aos Estados Unidos da América.

Igualmente estão ausentes da selecção joias universalmente reconhecidas como tal, o que inclui aquelas de que o próprio Bob Dylan foi autor. Uma dessas ("Like a Rolling Stone," 1965) foi considerada, ao longo de décadas e em sucessivas votações especializadas, como a melhor canção pop de todos os tempos, e a última vez que tal sucedeu foi já em pleno século XXI (2004). Vamos supor que Dylan foi modesto ou quis evitar julgar em causa própria.

Quanto a um mérito que possa ser associado ao valor dos compositores das canções, não se encontra na lista canção alguma de autores/intérpretes que tenham deixado marca indelével na música popular—e na relacionada cultura global—e, mais naturalmente, a que corresponde à geração de Dylan: não se depara com uma canção dos Beatles, não há uma única composição de Leonard Cohen ou de Paul Simon (Simon & Garfunkel), nenhuma canção dos Velvet Underground, dos The Doors ou de Van Morrison, de Joni Mitchell, de Brian Wilson (The Beach Boys) ou de Chuck Berry. Tudo gente com quem Dylan privou de perto e admira, tendo mesmo referido Berry como o "Shakespeare do rock'n'roll".   

A páginas tantas, em observação marginal a uma canção que comenta, Bob Dylan deixa escorregar que um dos modos de avaliar a qualidade de uma música é pela quantidade de versões que outros fizeram dela. Mas mesmo seguindo essa sugestão não se chega a conclusão alguma, pois várias das canções dos ausentes que acabámos de citar geraram milhares de versões: "Yesterday," de Lennon e McCartney deu origem a cerca de três mil e "Hallelujah," de Leonard Cohen, acima das trezentas. Isto deixando, de novo, Dylan fora do concurso, uma vez que as suas canções engendraram, até à data, mais de cinco mil versões.   

Em que ficamos, então? Dylan, como é seu costume, faz o que lhe apetece e não se explica, tem até o gosto antigo de frustrar as voltas a quem tenta adivinhar-lhe tendências ou interpretar-lhe motivações. Ensaiemos, na tentativa de buscar o porquê de constarem aqui estas e não outras canções, o continuar a guiarmo-nos pelo peso de alguns números.

Das 66 canções escolhidas para comentário, a maioria foi originalmente lançada no mercado discográfico em single, um modo rápido de divulgar canções que se intuía poder estar destinadas a escalar ao topo das tabelas de êxitos nos dias em que a rádio era o principal veículo de difusão e o patrocínio comercial dos programas exigia uma interrupção da música de tantos em tantos minutos para que fosse passada publicidade. O single, ao contrário do LP (Long Playing), recorrendo a um suporte físico onde cabia apenas um par de canções (uma por face da estreita rodela de vinil) e tendo cada uma dessas faces a duração aproximada de três minutos, era o veículo ideal. Das canções escolhidas por Dylan, 37 (56 %) foram lançadas em single e 27 (41 %) dizem respeito a canções inseridas em LP, o que significa ter ele privilegiado as canções que singraram através do single, formato para consumo imediato e preparado para divulgação via rádio.

Olhar a data em que foram comercializadas estas canções permite-nos, até certo ponto, estabelecer uma conexão entre canções escolhidas/modo de divulgação: mais de metade (60 %) foram lançadas nos anos 50 e 60, época em que Dylan (nascido em 1941) contava entre dez e vinte anos de idade, isto é, estamos perante canções dos primórdios da sua formação musical, quando a rádio era praticamente o único meio para escutar música, sobretudo em local tão remoto como o Minnesota. Para além deste contingente maioritário, cerca de um quarto das restantes canções (26 %) respeitam às décadas de 70 e 80. As canções comercializadas em dias mais próximos de nós (anos 1990 a 2010) são apenas em número de quatro e uma delas ("Nelly Was a Lady") é, até, a versão recente de uma composição escrita em 1849. Igualmente quatro são as canções gravadas entre os anos 20 e 40 do século XX.  

Corroborando a importância e influência que a rádio teve em Bob Dylan, relembre-se que ao longo de três anos (2006 a 2009) o homem foi locutor de um programa de rádio de grande sucesso, chamado Theme Time Radio Hour. Como o nome indica, tratava-se de um programa temático e ao longo das suas mais de cem emissões foram glosados temas como nomes de mulher, a bebida, cães, o casamento e o divórcio, o tempo atmosférico, o hábito de fumar, etc. Na sua inconfundível e charmosa voz roufenha, mostrando grande talento como locutor, competia a Dylan ir comentando as canções que fazia ouvir, tecendo considerações aos intérpretes, ao ambiente em que a canção fora composta ou produzida comercialmente; revelando pequenas histórias relacionadas; ou entrelaçando reflexões sobre o tema do dia, o que podia incluir a leitura de poesia alusiva. Algo que, sob forma bastante mais desenvolvida, estruturada, reflectida e, até, mais livre no pensamento, volta a praticar nos capítulos do presente livro. Das 66 canções aqui contadas, cerca de um quarto foi passada nas emissões desse programa e, na sua quase totalidade, nas mesmas versões que Bob Dylan agora comenta.

E, mais uma vez, das mais de mil canções emitidas em Theme Time Radio Hour nenhuma teve como autor o locutor. 

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O que principalmente se encontra ao longo das páginas de A Filosofia da Canção Moderna são descrições, constatações e reflexões (técnicas, existenciais, sociais) feitas em tom coloquial e não poucas vezes tratando-nos por tu, considerações desencadeadas pelas canções escolhidas e que se espraiam aos intérpretes e compositores ou inclusive ao ambiente em que decorreu a génese ou a gravação dessas canções, canções que abarcam todo esse caldo rico e espesso que é a música dita popular: country e folkblues e rhythm & blues, gospel ou soul; uma mão cheia de rockabilly e rock'n'roll; uma pitada de jazz e de bluegrass. Conte ainda o leitor com a presença vincada e um gosto especial do autor pelos standards que os crooners e o jazz sempre se apressaram a interpretar e a adaptar aos respectivos mundos particulares.

Em alegre convivência e sem ordem aparente (cronológica ou outra), página a página desenrolam-se sob os nossos olhos canções de Elvis Costello e Bing Crosby, Little Richard e The Platters, Elvis Presley e Ray Charles, Hank Williams e Frank Sinatra, Nina Simone e Santana, Judy Garland e os The Who, Rosemary Clooney e os The Clash, entre muitos outros intérpretes, universalmente famosos ou nem por isso. Alguns, raros, terão direito a surgir com canções em mais do que um capítulo, como é o caso de Willie Nelson, Johnny Cash, Elvis Presley, Bobby Darin ou Little Richard. E certos deles, como sucede com Presley, Dean Martin, Johnny Cash ou Sinatra, verão os seus nomes ser amiudamente citados em comentários a canções interpretadas por outros.

Embora dominante nesta viagem, Dylan não se fica unicamente pela música norte-americana: com frequência chama por canções de nascimento europeu, mas não somente as de proveniência britânica, como seria de esperar num músico com as suas origens e língua materna. Para além dessas, há referências persistentes à chanson francesa, mas também à (primeiramente) alemã "Mack the Knife" ou à italiana "Volare (Nel blu, dipinto di blu)." O universo musical de raiz italiana é, aliás, omnipresente: repetidamente, quem lê tropeçará em cantores de voz velada e macia, americanos de nascença mas de ascendência itálica: tal vem a ser o caso com Frank Sinatra, Dean Martin, Bobby Darin, Perry Como, Dion ou Vic Damone.

A leitura evidencia igualmente o fascínio de Bob Dylan pelos crooners e pelos cantores de standards, fascínio já perceptível na fase da carreira em que se passeou quase exclusivamente por géneros como o folk, os blues e o rock, mais compatíveis com os anos que se viviam quando se tornou famoso. Em 1968, o álbum Nashville Skyline causou surpresa no público, pois nunca o repertório ou a voz de Bob Dylan tinham soado antes tão tranquilamente macios, e os críticos prontamente se arrepiaram com o perfume a Sinatra e Dean Martin que se exalava da obra. Indiferente, no disco seguinte (Self Portrait, 1970) Dylan vestiria de versões pessoais um renque de canções populares, uma das quais "Blue Moon," o clássico de 1934 de Hart e Rodgers tornado célebre pelas vozes de Mel Tormé, Billy Eckstine e Frank Sinatra, e de que Dylan escolheria a interpretação de Dean Martin para comentar no presente livro. Prestando tributo ao seu gosto duradouro por clássicos da música de entretenimento, três dos quatro álbuns mais recentes de Bob Dylan (Shadows in the Night, 2015; Fallen Angels, 2016; e Triplicate, 2017), são totalmente preenchidos por tentativas em recriar nada mais nada menos do que cinquenta e dois standardsda música popular das décadas de 30, 40 e 50 do século XX. 

Mas na órbita do rol das principais canções escolhidas gravitam centenas de outras músicas e de outros autores e intérpretes a que Dylan se irá referindo, seja porque se entrelaçam com as canções alvo de comentário seja para ilustrar a teoria (que lhe é querida e uma constante na música folk) de que todas as canções—como todas as obras de arte—vão nascendo umas das outras, e de que tudo influencia tudo. A esta luz surgem no texto referências à influência de linhas corais da Paixão Segundo S. Mateus, de Johann Sebastian Bach, em "American Tune," de Paul Simon, ou de um andamento de uma sinfonia de Rachmaninoff sobre a melodia de "Never Gonna Fall in Love Again," de Eric Carmen, sucesso na voz do próprio compositor, mas igualmente nas de Tom Jones ou Frank Sinatra.

Para além da imitação como fonte de criação, Dylan discorre sobre uma outra questão, também frequentemente discutida a propósito da música cantada: o que é mais importante numa canção, a melodia ou as palavras? Como seria de esperar, Bob Dylan não toma partido por nenhum dos polos da questão, mas não deixa de trazer à colação, como contraponto ao alemão—idioma, segundo ele, apropriado a festivais de cerveja—a maravilhosa qualidade plástica e melódica da língua italiana, ou de ir deixando escapar como está longe de ser essencial compreender uma só palavra de português para sentir que o fado é um género musical que "pinga tristeza". Dentro deste tópico das letras, Dylan lembra ainda que as palavras usadas para servir uma canção não devem sujeição à lógica da linguagem, escrita ou falada, e que, ao invés do que se deseja a um texto ou a um diálogo, é musicalmente adequado repetir e voltar a repetir as mesmas palavras, exemplificando o paradoxo com versos das canções "Black Magic Woman," e "Keep My Skillet Good and Greasy." 

Ocasionalmente, Bob Dylan nem ao menos perde tempo a comentar a canção que escolheu comentar, desprezando-a ou ignorando-a totalmente e lançando apenas mão ao nome da canção para considerações relacionadas com esse nome, como sucede em "On the Road Again," de que usa o título unicamente para se alongar em cogitações sobre a sua experiência numa banda de música itinerante; em "Saturday Night at the Movies," em que aproveita a boleia para nos falar longamente de cinema; ou em "I Got a Woman," em que fabrica um pequeno conto cujo entrecho é o oposto do sentido da canção original e no qual o ponto de ligação entre ambos é o solo de saxofone que o protagonista principal batuca no volante do automóvel, ao mesmo tempo que vai ouvindo essa canção de Ray Charles.

Assim, num fraseado inteligente, divertido ou provocatório, pleno de duplos sentidos (não poucos deles musicais e dizendo respeito tanto à melodia como à rima), vai Dylan delineando e desenrolando a narrativa, servindo-se de canções alheias para discorrer sobre temas que, desde sempre, lhe são queridos: a estrada, o ir-se embora e a nostalgia da terra natal; os fora-da-lei e os seres solitários e à margem da sociedade; a hipocrisia; o valor da frugalidade na existência; as mulheres e o amor impossível; o cinema, a literatura e, claro, a música e os temperamentos de quem a pratica. E, igualmente, o tempo e o efémero da fama e do sucesso, a invencível derrota sempre associada ao desfolhar dos dias. 

Embora raramente se revele pessoalmente e directamente, ao seguir a leitura torna-se perceptível de onde veio, no que se lhe prende o olhar e a atenção, o que gosta e o que menospreza este homem, descendente de judeus de Odessa e nascido em 1941 em Duluth, pequena cidade mineira do Minnesota, como Robert Zimmerman. 

Quanto às canções que decidiu comentar, sem o incómodo de explicar porque o faz, uma coisa é certa: após a leitura—e sendo-nos ou não familiares anteriormente—dificilmente as voltaremos a escutar com os mesmos olhos. 

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 Todas as 66 canções podem ser encontradas no Spotify ou no  YouTube nas versões que Dylan optou por comentar. A excepção é "Nelly Was a Lady," em que Bob Dylan recorreu a uma versão interpretada por Alvin Yongblood Hart (2004) e da qual, à data, não se consegue acesso nesse site. Mas, desta canção, composta por Stephen Foster em 1849, podem ser ali ouvidas várias outras interpretações. 

No que diz respeito às letras das canções, é fácil encontrá-las na Internet, mas recomenda-se que, sempre que possível, se prefiram sites oficiais na consulta, uma vez que não é raro depararmo-nos com versões apressadamente transcritas e não correspondendo ao original, não só na transcrição das palavras, mas particularmente na disposição métrica dos versos das estrofes.

 

 

   Listagem das canções comentadas e intérpretes 


1. Detroit City (Bobby Bare) / 2. Pump It Up (Elvis Costello) / 3. Without a Song (Perry Como) / 4. Take Me from This Garden of Evil (Jimmy Wages) / 5. There Stands the Glass (Webb Pierce) / 6. Willy the Wandering Gypsy and Me (Billy Joe Shaver) / 7. Tutti Frutti (Little Richard) / 8. Money Honey (Elvis Presley) / 9. My Generation (The Who) / 10. Jesse James (Harry McClintock) / 11. Poor Little Fool (Ricky Nelson) / 12. Pancho and Lefty (Willie Nelson and Merle Haggard) / 13. The Pretender (Jackson Browne) / 14. Mack the Knife (Bobby Darin) / 15. Whiffenpoof Song (Bing Crosby) / 16. You Don’t Know Me (Eddy Arnold) / 17. Ball of Confusion (The Temptations) / 18. Poison Love (Johnnie and Jack) / 19. Beyond the Sea (Bobby Darin) / 20. On the Road Again (Willie Nelson) / 21. If You Don’t Know Me by Now (Harold Melvin and the Blue Notes) / 22. The Little White Cloud That Cried (Johnnie Ray) / 23. El Paso (Marty Robbins) / 24. Nelly Was a Lady (Stephen Foster) / 25. Cheaper to Keep Her (Johnnie Taylor) / 26. I Got a Woman (Ray Charles) / 27. CIA Man (The Fugs) / 28. On the Street Where You Live (Vic Damone) / 29. Truckin’ (Grateful Dead) / 30. Ruby, Are You Mad? (Osborne Brothers) / 31. Old Violin (Johnny Paycheck) / 32. Volare (Domenico Modugno) / 33. London Calling (The Clash) / 34. Your Cheatin’ Heart (Hank Williams) / 35. Blue Bayou (Roy Orbison) / 36. Midnight Rider (The Allman Brothers) / 37. Blue Suede Shoes (Carl Perkins) / 38. My Prayer (The Platters) / 39. Dirty Life and Times (Warren Zoe) / 40. Doesn’t Hurt Anymore (John Trudell) / 41. Key to the Highway (Little Walter) / 42. Everybody Cryin’ Mercy (Mose Allison) / 43. War (Edwin Starr) / 44. Big River (Johnny Cash and the Tenessee Two) / 45. Feel So Good (Sonny Burgess) / 46. Blue Moon (Dean Martin) / 47. Gypsies, Tramps & Thieves (Cher) / 48. Keep My Skillet Good and Greasy (Uncle Dave Macon) / 49. It’s All in the Game (Tommy Edwards) / 50. A Certain Girl (Ernie K-Doe) / 51. I’ve Always Been Crazy (Waylon Jennings) / 52. Witchy Woman (The Eagles) / 53. Big Boss Man Jimmy Reed) / 54. Long Tall Sally (Little Richard) / 55. Old and Only in the Way (Charlie Poole) / 56. Black Magic Woman (Santana) / 57. By the Time I Get to Phoenix (Jimmy Webb) / 58. Come On-a My House (Rosemary Clooney) / 59. Don’t Take Your Guns to Town (Johnny Cash) / 60. Come Rain or Come Shine (Judy Garland) / 61. Don’t Let Me Be Misunderstood (Nina Simone) / 62. Strangers in the Night (Frank Sinatra) / 63. Viva Las Vegas (Elvis Presley) / 64. Saturday Night at the Movies (The Drifters) / 65. Waist Deep in the Big Muddy (Pete Seeger) / 66. Where or When (Dion).          

 pedro serrano, 22 outubro 2022.

11 novembro 2022

O ELOGIO DO ARGUIDO

Na sequência da demissão do seu secretário de estado mais querido (Miguel Alves, um paleante de Caminha), António Costa saltou de imediato ao terreiro para dizer o quê? Que ser arguido, estatuto com que Miguel Alves foi premiado, é até uma coisa boa e que os portugueses, ao pensar o contrário, só mostram uma grande iliteracia em matéria de Justiça. Sim, que o primeiro-ministro sabe do que fala e até relembrou aos jornalistas já ter sido ministro da Justiça. 

Mas recordemos o que se passou: este tal de Miguel Alves, até há poucos meses presidente da câmara de Caminha, usou 300.000 euros dos contribuintes para pagar, sem garantia alguma, a entrada para um pavilhão que iria ser construído numas bouças de Caminha, pavilhão que não existe, nunca existiu, nem vai existir: ou seja, 300 mil euros para o tecto. Segundo Alves, o negócio era sólido, assim como o seu parceiro no negócio, firmado com um outro rapaz que se intitula doutorado (phD, como o próprio teve o cuidado de esclarecer) embora não o seja! Este senhor, com quem Miguel Alves andava a cozinhar o arranjinho, é dono de umas 50 firmas mais ou menos fantasmagóricas, sem negócios em curso, algumas falidas, firmas que, tal como o tal pavilhão, não passam do papel. Pelos vistos, com a excepção dos 300.000, tudo se passa no domínio dos unicórnios e da realidade virtual.

Pois sobre tudo isto veio o primeiro ministro dizer-nos que não senhor, que ser arguido pode até ser uma coisa boa, distintiva, pois, entre outras vantagens, permite a uma pessoa não responder quando questionado pelas autoridades, ainda mais fácil do que a chatice de ter de alegar Alzheimer, arranjar atestado médico, etc. Ele sabe-o bem, pois, segundo disse, também já foi arguido.  

Perante esta distinção, é de propor que as pessoas passem a incluir nas habilitações do seu currículo o já ter sido, ser ou estar para ser arguido aos olhos da Justiça. Passaria a ser considerado um parâmetro de valorização positiva e faria com que os candidatos a qualquer emprego ou posição política ombreassem com outras grandes figuras da cena portuguesa que, por vezes com grande esforço pessoal, alcançaram esse honroso estado: José Sócrates, Ricardo Salgado, Manuel Pinho, Joe Berardo, Duarte Lima, Joaquim Couto, Isaltino Morais, Vale e Azevedo, Luís Filipe Vieira, a lista é longa e peço desculpa aos que me esqueci de referir.