A
última vez que estive a menos de um metro de Cavaco Silva foi há trinta e cinco
anos, era ele Ministro das Finanças e eu um jovem médico, acabado de designar
director do novíssimo centro de saúde de um dos concelhos mais atrasados do
país.
A colisão
deu-se no dia da inauguração e eu e o meu pessoal estávamos arrasados de, nos
dias anteriores, termos andado a desempacotar os caixotes que juncavam os
corredores do centro de saúde. Uma correria, pois quem mandava tinha decidido
que o centro seria inaugurado mesmo sem movimento, sem consultas, sem doentes, apenas com as paredes e o tal material, desencaixotado.
Mal
me viram ao saltar das viaturas EP que precediam a comitiva ministerial e
demonstrando grande perspicácia simbólica, os meus chefes regionais mandaram
que vestisse uma bata, a demonstrar que havia ali uma autoridade médica, alguma
organização. Neguei-me a tal, pois parecia-me absurdo uma solitária figura de
branco a pairar entre figurões de fato completo num estabelecimento de saúde
ainda fechado ao público. Amuaram muito.
Não
contando com as figuras de proa da comitiva norueguesa, a maior parte das quais
eu já conhecia, do lado português havia cinco ministros presentes, a abrilhantar
numericamente o apreço que Portugal atribuía aos quase catorze milhões de euros
que os noruegueses estavam a despejar no distrito de Vila Real, metade deles a
fundo perdido! Que viessem muitos daqueles!
Como
sempre acontece nestas coisas, num dos deambulares pelos corredores a mostrar a
obra achei-me lado a lado com o ministro das Finanças, um ser que – ao vivo tal
como na TV – me impressionava pelo ar empertigado, seco, rígido, o qual trazia
à lembrança um criado-mudo, uma daquelas estruturas em madeira com ombros e sem
cabeça onde se pendura, para que não perca a forma, a roupa ao fim do dia. Só
que este criado-mudo tinha uma desvantagem: falava! E tendo-lhe sido
apresentado, minutos atrás, como o futuro director daquela instituição, o homem
desata a fustigar-me com o seu desagrado pela despesa nacional com o transporte
em ambulância e a inquirir o que tencionava eu fazer para mitigar o assunto a
nível local. Ora acontece que eu estava por ali há meia-dúzia de dias, com as
mãos cheias de calos dos caixotes, que – até à data – tinham sido os únicos
bens da área da saúde a ser transportados e, como brevemente me iria aperceber,
sem autonomia sequer para mandar comprar uma lâmpada se as que tinham sido
pagas pelos noruegueses fundissem. Tendo tudo isso em perspectiva, respondi à
admoestação do senhor com ironia, o que o deixou ainda mais irritado do que no
seu natural. Quem acabou por me salvar do aperto foi outra eminência presente, um
homem dando pelo nome de Morais Leitão e Ministro dos Assuntos Sociais, um tipo
simpático e de piada pronta que se apercebera da situação.
Duas
horas depois tinham todos ido embora, deixando-me entregue aos bichos e às
paredes vazias. O Centro de Saúde abriria quinze dias depois, mas aí já só os
noruegueses – regressados às suas temperaturas abaixo de zero, mas sempre
atentos – se congratularam com o feito e com os progressos posteriores.
Pois
esta cascata de lembranças desencadeou-se a propósito do pouco que mudou Cavaco
Silva nestes trinta e cinco anos e também do pouco que evoluiu o meu apreço
pelo personagem que faz agora o criado-mudo em Belém. E o homem conserva o seu
acrescento antigo: fala! E fala agora em nome do país, não só em nome das
ambulâncias, para mal dos nossos pecados. Já esta semana, a propósito da
possível saída da Grécia da Comunidade Europeia, achatou o problema à evidência
de que ficaremos 18 em vez de 19, com a oculta satisfação – a bailar-lhe nos
olhos e na entoação – de até poder vir a sobrar mais qualquer coisita para nós
num grupo em que, perante o mesmo bolo, os clientes vão ser em menor número...
Toda esta sabedoria de lápis atrás da orelha, vertida naquela superioridade nauseada
de quem está absolutamente seguro do que diz.
O
homem acha mesmo que não precisa de aprender mais nada e, se tudo vier a correr
mal para nós, como é possível, não se perturbará e virá comunicar ao país a imprevisibilidade
dos mercados e do contexto internacional...
Mas
há certas pessoas de quem não se deve esperar esforço para além de um “aqui não
há fiado” ou de um “aqui não há feriado”.