Wednesday, 29th September
1976
Rui
and Pedro
I
would like to wish you both Bon
Voyage. I hope your journey is
fulfilling.
Although
our meeting was brief, I hope a friendship can develop in the future. I truly
hope that we will meet again in Portugal or in New York.
Sincerely,
Larry
Tarzy
Thursday,
30th September
At
last, you’re off! These past few days have truly been a test of patience. I
know you have passed the test.
Once
again –
bonne chance.
Larry
1 de Outubro, Istambul
Apesar do bonito postal que o Larry nos ofertou,
cuidadosamente enfiado em envelope e este em celofane transparente, apesar das
sucessivas celebrações de despedida, numa das quais o Doug Greenberg nos cedeu
para sempre a sua versão de bolso do Siddhartha [1],
ainda aqui estamos ancorados e, pior, estou cheio de saudades desta cidade
mesmo sem ter partido.
Embora o tipo nos tenha vigarizado um pouco,
mantivemo-nos com a mesma agência de viagens na nossa procura de transporte
daqui para fora. Para quê mudar e começar tudo do zero? Acabaríamos por ir
parar a um malandro parecido… Agora que tudo está esclarecido, desde a merda do
Mercedes à aceitação da perda da entrada para os bilhetes, o gajo parece ter
ganho algum respeito por nós e apressa-se a arranjar-nos cadeiras, a mandar vir
copos de água com gelo, e chá, mal entramos a porta da agência. Mais, como, com
grande alarido, assumiu mea culpa nos
novos atrasos na partida, colocou-nos, a nós e a mais uma dezena de viajantes
como nós, por sua conta, no Hotel Ayasofia, uma espelunca de nível superior ao Güngör, no miolo antigo de
Sultanhamet. O nosso quarto, enorme, parece uma coisa saída do século XIX, com
uma enorme cama de madeira maciça no centro e um colchão mole de serralho,
mobília rangente a condizer, e uma varanda, grande como um alpendre, com uma
cobertura feita à custa de uma ramada frondosa e por onde, entre balaústres de
ferro roído, se enrosca, vinda da viela lá em baixo, uma trepadeira cheirosa.
Como nem tudo é perfeito neste mundo e no nosso quarto, em camas desdobráveis
convenientemente acrescentadas, ficaram a fazer-nos companhia um japonês
sorridente e pouco falador e um alemão baixinho, gordo e bem disposto e, como
todos os pícnicos, uma grafonola. Tem toda a pinta de quem logo à noite, depois
de umas cervejolas largas, vai ressonar como um reco.
A agência de
viagens, que diariamente visitamos em busca de informações, tornou-se uma
espécie de sala de visitas do contingente que segue de Istambul para Teerão,
alguns dos quais estão no Ayasofia, mas que não cessa de aumentar em conviventes.
Será que o patrão está a adiar a partida até ter a lotação esgotada? O Des
acharia que sim.
Todos os
dias o tipo nos dá uma novidade para nos manter animados e a de hoje é a de que
o autocarro que nos levará já está contratado, tem ar condicionado e o maior
conforto. A sala de espera da agência está cheia e uma das presentes diz que
tudo isso é muito bonito mas que o quer mesmo saber é a data da partida.
O nosso
anfitrião, um turco alto, moreno, de bigode farto, faz que se ofende:
– Man, se eu tivesse essa informação já a tinha
dado, afinal é para isso que aqui estou! É uma coisa que me ultrapassa, mas,
enquanto tudo não se resolve, estou a fazer o que posso por vocês. Acham que
vou ganhar algum dinheiro com esta viagem, com o que estou a gastar com hotel e
tudo isso? Estou já a ter prejuízo, mas é uma questão de honrar compromissos,
de amizade...
Com esta o
tipo fez sorrir todos aqueles que lhe topam o estilo e calou a cliente
inquisitiva, uma americana de cabelo curto, óculos redondos fumados, toda
vestida de negro e que nos faz constantes demonstrações de como alcandorar nas
costas, com um único movimento, uma monstruosa mochila. Muito o tipo self-made-for-the-road, sempre a barrar
enormes fatias de pão com manteiga de amendoim que vai distribuindo por todos
os presentes.
Como da
adrenalina para a água, ao lado deste frenesi está sentada uma outra americana,
esta muito tímida, olhos azul-porcelana resguardados por uns óculos sem
armação. Mantém-se muito quieta na ponta do sofá, numa pose receosa e não
aceitando nada do que vai sendo oferecido para comer ou beber. Para entreter a
timidez vai fazendo festas a um gato de Istambul que se lhe aninha no colo, mal
acreditando que alguém lhe coça os lombos... Bem que a avisei daquilo a que se
estava a candidatar, mas ela limitou-se a abanar as farripas do cabelo liso
como quem não se importa.
No género
contido, mas este do sexo oposto, empoleira-se num maple como se estivesse já
no isolamento da sombra de uma figueira-sagrada um inglês dos seus quarenta
anos, magro como um cão e de cabelo apanhado num rabo-de-cavalo. Mantém os
olhos permanentemente cerrados, só os abrindo para esclarecer, quando
inquirido, a clássica questão:
– E você, para onde vai?
–
India… I’m goin’ there to get lost…
Finalmente, dois
tipos da Malásia, nossos vizinhos de quarto no Ayasofia, de tez bem brunida,
cabelos negros pelos ombros, ambos muito do subgénero vigarista-simpático.
Saímos da
agência acompanhados de três novos hóspedes para o Hotel Ayasofia: um afegão,
uma presença muito disputada na agência, pois toda a gente quer saber novidades
e informações sobre o misterioso país. O tipo, enquanto distribuía sementes de
melão e cigarros pelos presentes, lá ia dizendo que era um país lindo e muito
barato, mas estava mais interessado em saber o preço de tudo e em comprar tudo
em que a vista lhe pousa. Nessa noite, quando o levámos ao nosso café, quis
comprar os copos por ondes bebíamos chá. Para o calarem, acabou por levar um
copo de presente, mas não conseguiu comprar a meia-dúzia que pretendia pois
havia um desafio de futebol na TV, o café estava cheio e os copos faziam falta.
Os outros
dois novos hóspedes do Ayasofia por conta da agência e que seguem connosco no
autocarro para Teerão, na improvável data em que este partirá, são duas
francesas dos arredores de Paris. Louras, cabelos longos, olhos azuis, do
subgénero altamente comestível não fosse a regra de ouro n.º 2. Dizem ir para a
Índia durante três meses e uma delas trouxe até uma viola com ela, objecto que
me ofereci para carregar durante o trajecto para o hotel:
– Pardon, madame, peux je
transporter votre guitare?
–
Oh, merci, monsieur…
Na confusão
da chegada e das mochilas acabei por levar a guitarra para o meu quarto e,
através da varanda, emprestei-a a um dos malaios do quarto pegado ao nosso.
Passados uns minutos ele bateu-nos à porta para nos convidar a ir ouvir música
ao quarto deles. Quando lá chegámos, um deles perguntou mal nos sentámos:
– Nenhum de vocês tem erva?
Abanámos a
cabeça com simplicidade, achando que não valia o investimento estar a
explicar-lhe a génese da regra de ouro n.º 3. Impermeável a tudo isto, o
japonês mantém-se sentado sobre a sua cama desdobrável, de pernas cruzadas, a
coser o saco-cama com gestos lentos e amplos de linha e agulha.
[1] Siddhartha – Livro de Hermann
Hess, publicado em 1922, é uma poética versão da vida de um jovem indiano,
contemporâneo de Buda, em busca da plenitude interior. Juntamente com O Fio da Navalha, de Somerset Maugham
(veja Nota n.º 5), era um dos clássicos inspiradores dos viajantes para Oriente.
Em português, entre outros editores, Siddhartha
foi editado pela Minerva em 1974.
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