23 fevereiro 2013

UM SORRISO ASCENSIONAL (Mr. Shyam Sharma)


Tecnicamente falando é um auto-rikshaw, mas em toda a Índia este meio de transporte sobre três rodas é popularmente conhecido por tuk-tuk. Basicamente, um tuk-tuk é uma motorizada sobre a qual foi montado um estrado com um banco corrido e uma cobertura de oleado. Ostentam um dizer com lotação máxima: 3 passageiros, mas vi, um fim de manhã à saída de uma escola, seis ou sete chilreantes meninos em traje de colégio acumularem-se alegremente no interior de um único.
Também os há na versão bicicleta e, desta vez, quem serve de motor não é um motor de 50 centímetros cúbicos mas as pernas do condutor. A nós, brancos, faz um pouco de impressão pensar no desgraçado magricela que puxa os dois alentados e vermelhuscos ocidentais que passam por nós, mas se todos olhássemos para o assunto desta perspectiva, tolhidos de má consciência, esse tipo de trabalhadores morreria à fome o que, talvez, seja pior destino. De qualquer modo, e voltando à vaca fria, os tuk-tuk motorizados são, de longe, bastante mais frequentes na Índia do que os de tração animal bípede.
Em Jaipur, na primeira manhã que resolvemos sair até ao centro histórico da cidade, perguntámos à gerente do hotel se dava para ir a pé. Sendo mulher de tipo assertivo, o “não” dela foi rotundo como se a própria pergunta fosse um disparate, e informou-nos que por 500 rupias (uns 6,5 euros) poderíamos ser transportados em quinze minutos até ao centro e dar as voltas que quiséssemos, mantendo sempre à nossa espera o mesmo tuk-tuk que, estando saciados, nos devolveria ao hotel. Ainda perguntei quanto custaria uma simples viagem de ida, pois podia apetecer-nos dispensar o pendura e ficar por nossa conta.
“Só ida?”, confirmou ela, abanando a cabeça numa negativa, “custa-vos 250 rupias... É igual e não vale o trabalho de chamar outro!”
O hotel (de que já falei por aqui) ficava numa rua residencial, de arredores, tranquila, e três vacas sagradas estavam sempre estacionadas por perto. À saída topámos com um tuk-tuk e de dentro dele espreitavam os pés do condutor, o qual jazia reclinado no banco dos passageiros, porventura aguardando clientes frescos. Isso foi o que supusemos, mas quando o abordei com um “free?” ele negou e informou que estava tomado, aguardava já o seu passageiro. Foi então que mister Shyam fez a sua entrada em cena, aparecendo do nada e oferecendo os seus serviços.
O tuk-tuk de mister Shyam estava adornado com um arranjo daquelas fitas ornamentais prateadas que parecem um arame-farpado natalício, talvez desenhado em delírio por algum industrial de echarpes. Pela observação do para-choques fronteiro, onde, entre autocolantes com rosas, várias etiquetas da marca estavam coladas, compreendia-se que o condutor desejava as qualidades de um Ferrari ao seu veículo, apesar de um tuk-tuk, no seu mais frenético excesso de velocidade, não conseguir ultrapassar os 40 km/hora.  
Gostei logo de mister Shyam, foi algo que se me revelou mal nos ofereceu os seus serviços e reparei no seu olhar transparente e pose serena, intuição que se foi confirmando pelo raciocínio que se vertia em inglês fluente e de vocabulário rico; no modo tranquilo e algo indiferente com que atravessava o trânsito louco de Jaipur (e que diminui o movimento de uma hora de ponta lisboeta à agitação de um domingo à tarde no Sabugal). Talvez por isso, contrariando aquilo que sempre se deve praticar na Índia quando se contrata um meio de transporte, não lhe perguntei no início da viagem quanto nos ia custar a empreitada.
Conhecemos mister Shyam por volta do meio-dia e já era noite quando nos deixou no Vimal Heritage Hotel. Pelo meio tinha-nos conduzido a um restaurante, onde ficou à nossa espera enquanto comíamos. Depois levou-nos às compras e a seguir, por lhe termos comunicado que bastava de lojas, levou-nos a um templo hindu todo em mármore, um destino que, como percebemos pelo tipo de multidão que o visitava, não integrava circuitos turísticos. No banco de trás do tuk-tuk acumulava-se já um livro, que comprara à saída do restaurante, um envelope com postais e uma bonita jarra de porcelana azul. Quando retornámos do templo, os embrulhos estavam cuidadosamente arrumados na prateleira que existia por trás do nosso assento e mister Shyam informou que os pusera ali por ser lugar mais seguro. Cansados das visitas pedimos ao nosso guia que nos levasse a um café, um sítio onde pudéssemos beber qualquer coisa fresca. Mister Shyam reflectiu um pouco e guiou-nos a um local onde de um lado da rua esperava o nosso café e do outro um colorido templo hindu.
“Depois do café, se quiserem, podem também ir visitar o templo. Eu espero ali por vocês”, informou apontando o local onde ficaria de guarida.
Em Jaipur, por esses dias, acabara de terminar um muito famoso festival anual de lançamento de papagaios e no céu azul, nos vultos que nos terraços das casas erguiam os braços no ar, orientando um cordel, restavam ainda indícios: dezenas de papagaios enchiam o firmamento de sombras coloridas.
Cá fora, no final da visita ao templo, a tarde arrefecera e pedimos ao nosso chauffeur que nos reconduzisse ao hotel. Tranquilamente, guiou por um dédalo de ruas e de mercados em fim de jornada e, numa avenida de trânsito excitado, travou serenamente o tuk-tuk para se inclinar e apanhar um papagaio de papel vermelho que quedava aprisionado no separador central. Sem se incomodar com os apitos irados atrás de si, virou-se para trás, oferecendo-nos a ave de papel:
“It’s for you...”
Deixávamos o centro da cidade, vi surgir um lago à esquerda e apontei à minha companhia a manada de vacas que, em recolhida tranquilidade, parecia observar o sol poente a pintar um afogueado nas águas. Num retrovisor atento, mister Shyam percebeu o movimento e estacionou na berma do caminho:
“You can take picture, I’ll wait...”
Foi por esses instantes que tirei a fotografia de mister Shyam que abre este texto e que ele tirou uma nossa com o seu telemóvel, para sua recordação futura. Foi também por aí, quando os três regressávamos ao tuk-tuk, que perguntámos o significado daquela composição que tinha pendurada sobre a matrícula na frente do veículo e que consistia num limão ensanduichado numa entremeada de malaguetas; talismã que se encontra por todo o lado na Índia, até nos sofisticados hotéis de cinco estrelas.
“Ah, é para trazer sorte ao nosso negócio...”
Agora estávamos parados à porta do Vimal Heritage Hotel. Perguntei a mister Shyam quanto lhe devia por aquelas horas todas.
“Quanto é que lhe apetece dar-me?”, perguntou.
“Não faço ideia, diga o senhor...”
“Na vida nem tudo é dinheiro”, respondeu. “O que é que o seu Deus lhe aconselha como pagamento?”
Inclinei-me para a frente, pousei a mão no ombro dele:
“O meu Deus não percebe nada de rupias, lida com outro tipo de divisas...”
Mister Shyam riu-se, estabeleceu o seu preço em 500 rupias; quis saber se eu achava justo.
Depois indagou sobre como seria o nosso dia seguinte, se poderíamos precisar dele. No dia seguinte deixaríamos Jaipur, íamos fazer, em carro alugado com motorista, os quase setecentos km que nos separavam de Udaipur, a Veneza do Oriente.
“Amanhã vamos embora, mister Shyam, vem aí um carro buscar-nos de manhã...”
“De qualquer modo vou estar por aqui às nove horas, caso possam vir a precisar de mim...”
Na manhã seguinte, tínhamos acabado de fechar as malas, o telefone do quarto tocou a avisar que o nosso transporte para Udaipur chegara e estava estacionado no acesso do hotel. Descemos, pagámos e metemos as malas no carro. Entrámos, o carro arrancou, cruzou os portões do hotel e virou à direita em direcção ao acesso à autoestrada.
Ao sair dos portões vi Mister Shyam do lado de lá da rua, de pé, encostado a um muro, à nossa espera como prometera. Só tive tempo de levantar a mão, acenar numa vincada despedida, enquanto ele permanecia ali, afastando-se na distância do vidro de trás do automóvel, o seu sorriso hospitaleiro ascendendo sem fio na manhã perfeita.
  
© Fotografias de Pedro Serrano, Jaipur (Índia), 2013.


19 fevereiro 2013

OBRA DE FACHADA


Fachada do Hawa Mahal. 
He just stood there starring
At that big house as bright as any sun
With four and twenty windows
And a woman's face in ev'ry one.
                            Bob Dylan (The Ballad of Frankie Lee and Judas Priest)

Chegou agora o momento de falar de mister Shyam, mister Shyam Sharma, ainda que para isso seja obrigado a tomar um desvio.
Provavelmente os meus ouvintes nunca ouviram falar de Jaipur, pois o mais comum termos ouvido de cidades indianas não passa geralmente muito de Deli (a capital), Bombaim (a de Bollywood e do filme Quem Quer Ser Milionário) e Calcutá (a da madre Teresa)...
No entanto, Jaipur é a capital do Rajastão e conta com mais de cinco milhões de almas. É também conhecida na Índia pela cidade rosa, nome que lhe vem de uma série de monumentos com aquela tonalidade. E, quando falo em tonalidade, é mesmo isso que pretendo significar. A fachada da fotografia acima, que eu vira em imagem antes de a ver ao vivo, desilude um pouco quando nos encontramos frente a frente. É que aquela fachada (já irão ver porque não uso o termo edifício ou prédio) tem um ar gasto, sem brilho... No entanto, tira-se uma fotografia e quando se vai ver ela brilha, surge-nos num rosa lustroso e puro, como se a obra tivesse sido acabada ontem e não em 1799. É extremamente fotogénica, é o mínimo que se pode dizer, que era esse o seu destino e o do seu recheio habitual.
Esta fachada chama-se Hawa Mahal o que quer dizer Palácio do Vento e, suponho, a ventania deve provir de aquelas paredes não terem mais de 20 cm de espessura e de tudo quanto se vê não ter mais do que a profundidade de uma sala! Ou seja: não há por trás daquilo, como se poderia imaginar, um edifício; aquilo pouco mais é do um cenário de cinema, de Hollywood ou de Bollywood, suportado por estacas. Este Hawa Mahal dá, e já assim era no passado, para uma das ruas mais movimentadas de Jaipur e é um dos topos do complexo em que se situa o Palácio da Cidade. Esse palácio, com construções e decorações de uma beleza fulminante era habitado, como é tradicional nestas coisas, por um poderoso marajá que, como sabemos das histórias, tinha o seu harém... Muitas mulheres, imensas, das obrigatórias às favoritas – hoje nem é bom especular se seria (para o marajá, que é o meu ponto de vista preferido) um maravilhamento ou um suplício. Bem, de qualquer modo, apesar de as ter de burka, presas em casa e ao dispor, havia algo que, apesar do seu poder, o homem não conseguia evitar e, se reprimida ou não satisfeita, poderia ter efeitos secundários muito nefastos: a curiosidade daquele mulherio todo. E, então, mandou construir para elas aquela fachada cheia de janelinhas, cinco andares de janelas, ondes elas, sem serem vistas da rua, podiam coscuvilhar o que se passava com o comum dos mortais. Ninguém precisava de saber que elas ali estavam, nem ninguém precisava de saber que tudo era apenas uma obra de fachada!
Traseiras do Hawa Mahal.
E com isto, perdi-me em tanta janela, acabei por escrever tantas palavras que mister Shyam se ficou pelas entrelinhas. Mas ele tinha a ver com isto, garanto-vos, pois foi quem nos conduziu ali no seu tuk-tuk. O que é um tuk-tuk? Amanhã, ou pouco mais, volto a isto, ok?
© Fotografias de Pedro Serrano, Jaipur (Índia), Janeiro 2013.


Nota: Texto publicado, com ligeiras alterações feitas pelo autor, e um título pouco interessante escolhido pelo jornal, no suplemento Fugas do Jornal Público de 25 de Maio de 2013.

16 fevereiro 2013

ESTIMO AS MELHORAS


Ela abandonara-o da pior da maneira, na pior altura. Sem motivo aparente e no auge da paixão, ciclone que, parecia-lhe, percorria todas as escalas da paixão correspondida. No seu aturdimento procurou razões, razões clássicas: uma traição, algo nele que lhe desagradasse e se estivesse a impor como intransponível... Não encontrou nada e dela – enquanto conseguiu que lhe atendesse as chamadas, nas raras e dolorosas vezes em que acedeu a encontrar-se com ele – nada se revelou, a não ser embaraço, uma vontade nítida de o evitar, de não se comprometer com um novo encontro.
“Era melhor desistirmos disto...”
E no olhar, tornado fugidio, nada mais apercebeu do que aflição.
Depois ela desapareceu de vez e, encolhido de dor, afundado no sofá da sala, esperando que o comprimido azul da embalagem-amostra fizesse efeito e o mergulhasse num sofrimento cristalizado, como um fruto imóvel sob a carapaça de açúcar, deixou de revolver as razões e olhava o telefone de lado, quase com horror, como se pudesse tocar e fosse ela, como se lhe fosse vedado marcar aquele número que sabia de cor e que ainda era o número dela.
Uns meses mais tarde deixou de a procurar em cada rua da cidade por onde manobrava o carro, deixou de a adivinhar em cada morena a quem pressentia o perfil do outro lado de uma avenida; já nem todas as gargalhadas lhe lembravam a dela, conseguiu ouvir o seu gracioso nome ser pronunciado sem sentir um estremecimento, sem virar a cabeça por achar que aquele nome não podia chamar por mais ninguém... Uma tarde deu mesmo consigo a passar no viaduto sem apanhar a nesga no tempo em que, olhando à direita, se conseguia, por uma fracção de segundo, entrever a marquise do andar dela, a qual se distinguia das outras em volta por ter os estores corridos em permanência. Esses estores leves, de casquinha de alumínio, que vibravam como um espanta-espíritos quando um avião cobria o prédio a caminho da Portela.
Um dia fora aos Açores, congresso médico patrocinado pela companhia e, na volta, o avião, descendo sobre uma cidade que parecia encantada, dourada no meio da noite, sobrevoou a zona onde ela morava, viu a cobertura do prédio, achou que conseguira até identificar luz na marquise. Por trás daquele estore iluminado era o quarto dela, a cama de madeira escura, o candeeiro de luz amarelada, o armário que tapava o vão que, outrora, fora uma porta de correr que dava para a sala: de um lado estante, do outro pousio de fotografias e toucador. Nessa noite não resistira ligar, queria dizer-lhe:
“Passei agora mesmo sobre o teu quarto, a voar...”
Ela não atendeu, ele sentia-a do lado de lá a olhar, maçada, para o visor, a deixar que tocasse; enrolando uma madeixa do cabelo negro entre dois dedos entediados, nervosos. E ele a detestar-se por imaginar alegria, por não permitir que a distância do tempo se instalasse entre eles; por estar a violar o silencioso apelo “não me procures mais” como se a estivesse a estuprar a ela! Mas a convalescença parecia-lhe negada, não apresentava senão piedosas melhoras passageiras.
Depois foi anunciada a restruturação na empresa, alguns colegas foram dispensados, a multinacional mudou a sede de Lisboa para Madrid e, como consequência, a sua área de influência fora alargada e um distrito foi acrescentado à sua zona de trabalho, o que se traduzia em mais um hospital, cinco centros de saúde e doze extensões, onde havia médicos a visitar, farmácias para controlar as vendas de, para ser exacto, oito medicamentos, dois deles recentes no mercado e outros dois em risco de se tornarem genéricos...
A mudança, o aumento de responsabilidade, acabou por se revelar uma coisa boa, entreteve-o e tinha agora menos tempo para chafurdar em consciência no desgosto que, apesar disso, continuava a latejar dentro de si, feito um mal de estimação.
Um fim de tarde, quando regressava a Lisboa, o telefone tocou e, por precisar de anotar um telefone que Rita, a telefonista da sede, lhe queria passar, encostou na berma da estrada sob um grande pinheiro manso. No fim do telefonema, acendeu um cigarro e abriu a janela do carro. Estava uma tarde calma e, lá fora, o ar cheirava bem! Atirou o cigarro fora e foi quando o vidro eléctrico da janela subia que reparou na placa, uma daquelas placas quadrangulares, antiquadas, com a indicação da localidade pintada a negro no branco caiado: SOBRALINHO, 4 km.
Deu por si a guiar por uma estrada secundária, traçada entre muros de quintas, entre casas de lavoura, alguns deles a desfazer-se e por onde trepavam trepadeiras e espreitava a folhagem de árvores de fruto. De onde a onde abriam-se na paisagem campos verdes em que ovelhas pastavam e, aqui e ali, um cavalo abanava a cauda indolente às raras moscas de outono.
Parou num café a perguntar onde era o lar.
“Veio pela estrada de Alenquer? Então acabou de passar por ele!,” respondeu o homem, “é a uns trezentos metros daqui, à esquerda de quem chega ao Sobralinho...”
Fez inversão de marcha, passou devagar por um grande portão de ferro, escancarado, ao lado do qual havia uma guarita com um soldado. Ao fundo de uma álea havia um terreiro e um casarão e, como se fossem os proprietários, pela álea passeavam-se alguns pavões. O soldado, curioso com o automóvel que ronronava do lado de fora do portão, espreitou da guarita. Arrancou. 
***
A decisão veio num semáforo vermelho, uma manhã em que saía da cidade para uma visita ao seu território a norte de Lisboa. Enquanto aguardava o verde, olhou à direita e viu as empregadas de uma florista disporem os escaparates de flores de um lado e outro da porta da loja. Parou e comprou duas rosas, embora a florista insistisse para que levasse, pelo menos, meia-dúzia. Estava a tratar a encomenda como um presente romântico, imaginou a cara dela se lhe confessasse que as rosas eram para alguém que nunca vira e que tinha idade para ser sua avó.
Chegou a Sobralinho passava um pedaço das quatro da tarde. A chuva parara. À entrada, o soldado pediu-lhe um documento de identificação, podia levantá-lo quando saísse. Por dentro, o lar, uma enorme casa apalaçada, estava cuidado como se fosse um museu, impecável e silencioso. Na recepção anunciou vir visitar a Sr.ª Graça Neves, que era amigo da família, acrescentou com as rosas na mão e um calafrio no estômago. Pediram-lhe para esperar na “sala de receber as visitas”, uma espécie de átrio com cadeiras almofadadas em dourado e fotografias antigas de homens em traje militar na parede. Iam ligar para cima, pedir para ela descer. Esperou, olhando em volta com o sorriso inseguro que revela o desconhecido. Foram aparecendo e passando por ali várias senhoras idosas, mas nenhuma lhe parecia a avó de Graça. Nunca a vira, mas, pela descrição da neta (mais psicológica que física), tinha um feeling acerca do que ela poderia parecer.
Longos minutos depois viu aproximar-se pelo corredor uma velhinha pequenina, com uma manta pelas costas, conduzida por uma empregada da casa. Sim, aquela batia certo.
Ela olhava, à procura de alguém familiar, e a empregada, sorrindo, dizia, mirando-o:
“Está ali a sua visita...”
Adiantou-se, estendendo a mão:
“A senhora não me conhece, mas eu sou um amigo da Graça.”
Ela abriu um sorriso:
“Então se é amigo dela dê cá um beijinho.”
Sentaram-se na “sala de visitas”, ele muito perto dela, pois lembrava-se que ouvia mal e, por outro lado, tinha dificuldade em falar alto às pessoas, no seu mundo, gritar não permitia estabelecer uma relação. Foi-lhe tentando explicar quem era: amigo da Graça, colega da Graça na universidade. Mas ela não pareceu muito preocupada ou ansiosa por justificações, estava, simplesmente, satisfeita com a visita. Justificou-a com uma mentira piedosa:
“Soube que a senhora estava aqui hospedada e, como vim para estes lados, resolvi fazer-lhe uma visita...”
Depois deu-lhe os dois botões de rosa, pediu desculpa por não conhecer os gostos dela. Mas ela ficou agradada, pousou a flor no colo e assim a manteve o tempo todo.
Falou mais que ele, que a ouvia olhando-lhe o belo cabelo branco, as rugas da testa, os olhos vivos, as mãos. Sim, era a avó da Graça. A conversa saltou suavemente de assunto para assunto: a Gracinha, a Margarida (“conhece a Margarida?”), os meninos da Margarida. Sim, os meninos ele conhecia. Outra vez a Graça, o filho já morto, a nora; o nascimento em Tavira, a infância, a juventude, o casamento; os tempos em Évora, em Sobralinho, em Lisboa. Os netos, o pai:
“O meu pai era muito meigo para mim (“a minha mãe morreu tinha eu três anos”), ainda hoje me lembro dele com muito afecto. Tentei educar o meu filho – o pai delas, não sei se o conheceu quando era vivo – da mesma maneira.”
Depois entoou a canção de embalar que, em Tavira, o pai lhe cantava para a ajudar a adormecer e uma outra sobre um botão de rosa que cai ao chão e se desfolha, também aprendida na meninice, com uma tia.
“Quando chegar ao quarto vou tratar das suas rosas. Vou-lhes cortar o pé e metê-las em água, para que durem.”
Ele ia ouvindo, dando um toque aqui e ali, pois raramente era obrigado a falar.
Explicou-lhe a ida para o lar, objectivamente, sem o mínimo sinal de amargura ou tristeza. Ali estava bem. Lamentou um pouco a idade, sobretudo pela inutilidade que traz.
“Mas não é preciso estar a fazer coisas para se ser útil, respondeu ele. “A presença da senhora é muito importante na vida dos seus: basta ouvir a Graça falar de si, para se ter a certeza disso.”
“Ah, a Gracinha”, disse ela, encantada, “deram-lhe o mesmo nome que o meu e fizeram bem..., é mais parecida comigo no feitio do que a Margarida...”
Entretanto passara uma hora, o tempo que lhe tinham recomendado como duração da visita; foi à recepção perguntar o que deveria fazer, ofereceu-se para a acompanhar ao quarto, se fosse preciso. Disseram-lhe que chamariam uma empregada.
Regressou à sala de visitas, sentou-se. Da sua serenidade, ela olhou-o com os olhos vivos, disse:
“Assim se conta uma vida, não é?”
E, após uma pausa:
“É engraçado como as coisas sucedem... O senhor, que andou aqui e ali (falara-lhe de Braga, dos Açores, de Trás-os-Montes), acaba por cruzar a vida da Gracinha e estar agora aqui.”
“É verdade”, respondera, “assim se vão fazendo as vidas: começam separadas e depois encontram-se, é engraçado...”
“É verdade”, disse ela, dando a conversa por terminada, “alegrias e tristezas, encontros e desencontros...”
A empregada chegou. Ele levantou-se, ofereceu um braço para a ajudar.
“Gostei muito que me tivesse vindo visitar e, se voltar a passar por aqui, venha ver-me de novo. Se estiver com a Gracinha por favor mande-lhe um grande beijo meu. Sei que ela gostaria de vir aqui mais vezes, mas Lisboa ainda é longe e com aquela vida dela...”
Sorriu-lhe, disse, numa voz que fez com que soasse banal:
“Penso que não a vou ver tão cedo, sabe? Mas às vezes falo com ela ao telefone e não deixarei de lhe transmitir o seu beijo.”
E ficou a vê-la ir-se, de braço dado com a empregada, a quem, pelo corredor fora, informava:
“É muito amigo da minha neta Graça...”
Saiu. Cá fora o tempo estava tépido e húmido. Sim, a pessoa correspondia ao retrato que a neta lhe pintara, aos poucos, com intensa ternura por aquela avó que, mais do que a mãe, era a figura central da sua vida interior.
“Sabe, sempre fui muito afectiva, desde pequenina; foi bom ter nascido com esta qualidade...”
Meteu-se no carro, foi buscar a identificação à portaria. Pelo caminho veio recordando aquela visita tão estranhamente estranha. Não usara prudência nenhuma na conversa: conhecia as pessoas, sabia nomes, demonstrou saber alguns pormenores... Não podia ser de outro modo. A única coisa que não lhe disse foi que, de certo modo, estava ali também a mitigar as horríveis saudades que tinha da neta, neta de quem gostava demais. Mas arriscar tanto tinha compensado: em que outro sítio do mundo poderia ter pronunciado tantas vezes o nome dela com alguém que a conhecesse?
***
Vinte e três de Novembro, 8 da manhã, tocou o telefone. Onde estava? Ah.., sim, era o despertar que pedira ontem. Ligou o rádio, enquanto fazia a barba. Estava frio. Notícias: em Lisboa a chuva atravessara telhados e infiltrara tectos.
Apesar de ser apenas o segundo encontro, fora, na véspera, mais vezes beijado pela avó do que pela neta, a última vez que a vira! Assim, de repente, conseguia identificar oito beijos: dois à chegada, dois quando lhe dera o tubo com pastilhas de chocolate, dois à primeira tentativa de despedida e, finalmente, mais dois no despedir definitivo. Mas talvez tivesse havido alguns outros, não contando com as meiguices que ela lhe fizera na face e nas mãos... Um encanto.
Desta vez mandaram-no subir e encontrou-a sentada à porta do quarto, ao fundo do Corredor Linhas de Torres. À chegada, achou-a pior que na primeira visita: um pouco agitada, tensa (notava-se nos olhos – exactamente como na neta), queixando-se dos brônquios, do tempo húmido, da inutilidade de ser velho.
“Isto não é viver, é vegetar...”
“A senhora não pode falar assim, olhe que para a Graça...”
O costume, mas que variações podia ele introduzir? Os bisnetos ainda não contavam para estas demonstrações, à nora só a vira uma vez (não a podia invocar) e a Margarida não conhecia, coisa que ela parecia sentir, pois entreteve-se a caracterizá-la:
“A Margarida é muito explosiva, ao contrário da Graça. A Gracinha é mais parecida comigo no feitio.”
A tosse preocupava-a, gostaria até de fazer um raio-X, tinha medo por causa dos pequenos, durante as visitas. Deu consigo numa de médico, invocou todas as bulas que fora obrigado a ler, indagou mesmo outros sintomas e sinais. Tudo ao serviço de um já planeado:
“Não, não precisa de se preocupar. É apenas uma tossezita de inverno; anda tudo assim...”
No fundo havia razões físicas para que ela se sentisse mal, pois evidenciava uma aflitiva falta de ar: fez-lhe companhia enquanto lanchava e só o acto de comer fê-la ficar a arfar.
“Não tenho apetite nenhum, comer é uma obrigação.”
Por outro lado, embora não se queixasse explicitamente, apetecia-lhe regressar a Lisboa, a casa.
“Não foi a melhor época para vir para aqui. Tinha sido melhor na Primavera... Mas elas não podiam tomar conta de mim o tempo todo durante a pneumonia...”
“Mas olhe que em Lisboa, venho de lá agora, o tempo também está péssimo. E o ar aqui é muito mais puro.”
Foi melhorando ao longo da conversa e, às tantas, já não se distinguia da D. Graça Neves da primeira visita. Pessoas iam parando, para a cumprimentar, para saber quem ele era.
“Amigo da família”, dizia-lhes. “Veio de Lisboa aqui só para me visitar.”
No fim do lanche, mostrara-lhe o quarto, as coisas dela.
“A minha colega de quarto tem a cómoda cheia de fotografias, vê? Eu só trouxe uma, o resto tenho tudo aqui”, dizia apontando a testa.
Ele concordava que ainda era o melhor sítio para guardar “o resto”.
“Está a ver? Esta era a carta que lhes ia mandar, a dizer para não virem no Domingo: não gosto de festejar os meus anos. Mas se eles fazem gosto em vir, que venham...”
“Que engraçado, comentou ele, o seu aniversário é mesmo na véspera do da Gracinha...”
“Olhe que nem sei quantos faço: noventa e um, noventa e dois...”
Despediu-se com um “até qualquer dia”, afastando-se na direcção do elevador.
“Até sempre”, preferiu ela da porta do quarto.
“Até sempre”, anuiu já próximo da porta do elevador, virando-se para a saudar, as mãos de ambos levantadas num aceno final.
Com o passar dos séculos, Graça foi definhando nele, os verdes momentos cobrindo-se de cinza. A vida retomou o seu curso monótono e dela apenas ficou a incapacidade de gostar de outra que não fosse por breve teimosia, como quem toma um remédio. Nesse afastamento desleixou também as visitas ao Sobralinho, quando se deu conta tinham passado oito meses sobre a última. Uma tarde de início de Outono voltou lá, o mesmo pacote de pastilhas de chocolate no assento do carro ao seu lado.
“Gosto muito de flores”, confessara-lhe com olhos interesseiros durante a primeira visita, “mas não gosto menos de chocolate...”
A senhora da recepção sorriu em reconhecimento quando o viu, mas desceu o véu da compaixão quando, poucos minutos depois, veio acompanhar à porta a desilusão dele.
A avó Graça morrera três meses antes, ali no lar. As netas vieram a correr, sobressaltadas por um telefonema a meio da noite, mas chegaram depois do último suspiro.  
“Ficaram desolados, sobretudo a menina Graça, que era muito chegada a ela. Mas olhe que a pobre foi-se em paz, sem sofrimento...,” acrescentou, como se isso pudesse aliviar o acanhamento dele, os seus remorsos.
Cá fora, os pavões exibiam os azuis e os verdes da plumagem na tarde.
***
Passaram, talvez, cinco anos. Um dia, ao sair apressado de uma agência bancária, quase a atropelara em pleno passeio. Nunca mais a vira e continuava bonita, apesar dos fios prateados que se mesclavam no cabelo, agora mais curto.
A avó Graça acabou por deter quase o exclusivo da conversa e, com os olhos tão fugidios como no passado, ela agradeceu o carinho que ele lhe dedicara.
“Fiquei muito surpreendida quando me contaram que ias lá visitá-la e, ao mesmo tempo, muito contente... Pobre avó, ali tão sozinha...”
De mãos enfiadas nos bolsos do sobretudo ele detestava-se por não saber o que dizer, por sentir que a simples presença dela ainda o perturbava daquele modo. Então nada conseguira de afastamento, a nada servira a disciplina desses anos todos?
Ela já se despedia, com muita urgência de chegar não sei onde. Depois, para amenizar, para fingir que haveria um qualquer prolongamento daquele encontro, trocaram telemóveis. O número dela ainda era o mesmo, o dele mudara, mas que importava que ela, num emaranhado de tentativas e enganos, o tivesse registado? Nunca seria para utilizar e passar-se-iam mais dez anos até que o acaso os fizesse chocar de novo.... Foi por aqui que se enganou redondamente e, no preciso momento em que mastigava estas suposições, menos de vinte minutos após se terem separado no encontro na avenida, o telefone vibrou com o aviso de mensagem a chegar:
“Desculpa se um dia te magoei.”
Não respondeu. Já tudo dobrara o cabo das explicações e das palavras.

© Fotografias de Pedro Serrano. (1), Jaipur, 2013; Praia Areia Branca, 2010; (3) Leipzig, 2011.