Eu não tinha tantas certezas, mas, a ser verdade, acho que conseguia adivinhar a fonte da tentação no modo como o olhar oblíquo de Menaíto seguia certas silhuetas que, gráceis como corças, altivas como impalas ou insinuantes como panteras, se atravessavam à frente do jipe e correspondiam às suas gentis travadelas de cedência de prioridade com um polegar espetado frente ao pára-brisas ou um sorriso fugidio.
Ganhei afeição a Menaíto e foi sentido o abraço que trocámos no final dessa estadia em que contei com os seus serviços como motorista.
Depois disso voltei a Angola várias vezes, mas nunca mais o encontrei. Tentei até ligar-lhe para o telemóvel, mas nada nem ninguém atendia do lado de lá. Perguntei aos sucessivos motoristas que me couberam em sorte e que trabalhavam para a mesma firma que o contratava, o que era feito dele, mas as respostas foram sempre um tanto imprecisas e uma delas, a de que estaria “muito doente”, pareceu-me mais um aperitivo para me entreter do que algo real.
Em Novembro de 2006 regressei a Luanda e no aeroporto, nas vedações de metal da saída, por trás das quais se aglomera quem espera pelos viajantes, vi um funcionário do ministério da saúde ostentando um papel com o meu nome impresso. Ao lado dele, aguardando no seu ar compenetrado e aristocrático, reconheci Menaíto.
E assim, por entre música romântica e cânticos religiosos, retomámos os nossos trajectos por Luanda, pontuados por breves trechos de conversa, invariavelmente ateados por mim, pois era raro que tomasse a iniciativa. A rotina era sempre a mesma: eu quebrava o silêncio com um comentário ou com uma pergunta, Menaíto, como se lhe tivesse interrompido um sonho, repetia a questão com o fito de precisar a minha intenção e depois respondia com precisão, numa voz pausada e bem articulada em que os ‘rr’ eram sempre empregues aos pares mesmo nas palavras em que um seria suficiente. Do lado de fora das portas trancadas, roçavam-se por entre as filas de carros os enxames de vendedores ambulantes, empunhando, pendurando ou erguendo sobre a cabeça tudo quanto se possa imaginar: óculos, bolas de naftalina, relógios, veneno para ratos, leitores de DVD, tapetes para automóveis, bebidas, despertadores, pão, canetas, lanternas, cruzetas, pilhas, chocolates amolecendo ao sol tropical; a listagem seria infinita, mas – em suma – tudo o que é capaz de garantir a satisfação do bem-estar moderno.
O Volvo em que viajamos agora tem um leitor triplo de CD e pergunto a Menaíto quem é aquele cantor de voz potente que tão bem se move cantando Angola, enquadrado num sofisticado arranjo jazzy de piano e saxofone.
“Ah! Este cantorr? Euclides da Lomba”, respondeu de imediato, dobrando o ‘r’ e sublinhando a partícula.
“E há discos dele à venda por aí?”, quis saber
“Tem discos sim, deve ter lá na discoteca onde o doutor e eu fomos verr as cassetes”, informou, recordando aquele momento passado mais de dois anos antes.
A minha curiosidade seguinte foi interrompida pelo toque do telemóvel de Menaíto. Atendeu e num tom de voz alto e rápido desbobinou uma língua onde apenas reconheci uma ou duas palavras francesas.
“Que língua é essa que você estava a falar?”, perguntei-lhe no final da conversação.
“Ah, essa!, é Kimbundu, doutorr...”
E Menaíto estava tão visivelmente contente com a chamada que, descíamos de Alvalade em direcção ao Prenda, me resumiu o seu significado. Duas ou três semanas antes transportara uma senhora em avançado estado de gravidez e, tendo em consideração o formato e dimensão do ventre, Menaíto previra-lhe o nascimento de gémeos.
“Se assim suceder te darei uma xara”, prometera a senhora, satisfeita com a profecia.
“O que é uma xara”, quis saber, “é uma espécie de gasosa?”
Menaíto riu um pouco da pergunta e, sobretudo, da minha comparação com a gasosa, a gíria angolana usada para designar uma gorjeta ou um suborno.
“Uma xara, doutorr? Uma xara, sim, é uma gratificação…”
Rolávamos agora na Samba e em frente a nós erguia-se o obelisco em honra de Agostinho Neto, uma abstracção fálica e descomunal com a altura de um prédio de 50 andares, construída pelos soviéticos nos bons velhos tempos do marxismo ortodoxo. Rezava a lenda que aquilo era alto e pesado de mais para os alicerces e que a qualidade da construção deixava a desejar, de tal modo que o terreno aluíra com o peso e era elevado o risco do monumento ruir a qualquer instante. Lenda ou não, o certo é que, durante anos, não se vira uma única construção num sensato raio de muitas dezenas de metros! Agora andavam em obras, remendando aquilo e construindo uma série de equipamentos urbanos por ali, mas Menaíto achava que, um dia, aquilo ia cair e matar um monte de gente, provocar uma desgraça
“Bem, mas se ao fim deste tempo todo ainda não caiu, talvez que já não caia…”, alvitrei.
“Vai cair, doutorr, pode não ser hoje ou amanhã, mas um dia vai cair e provocar uma desgrraça…”
Contei a Menaíto da torre de Pisa, da circunstância similar de se ir afundando sobre as fundações e, apesar disso, se aguentar assim nesse estado periclitante há uns séculos. Menaíto interessou-se pela torre italiana, quis saber um encadeado de detalhes sobre ela. No final do meu esforço histórico, concluiu:
“Um dia essa torre vai cair e provocar uma desgraça! Pode não ser neste século, pode não ser no seguinte, mas um dia vai cair…”
Rápido, o tempo escoou-se, é noite cerrada e estamos de novo no aeroporto 4 de Fevereiro, onde vou apanhar o avião de regresso a Lisboa. Menaíto ajuda-me a tirar os meus pertences da mala do carro e, como se de repente se tivesse lembrado de algo, correu ao interior do carro. Voltou com uma cassete, que me estendeu – é música angolana, uma recordação para eu levar para casa. Despedimo-nos com um longo aperto de mão e um abraço rápido e Menaíto corresponde ao meu “tenha cuidado consigo” com a despedida elegante e natalícia que os angolanos usam para desejar boa noite a alguém:
“Feliz noite, doutorr.”