28 julho 2021

UMA OUTRA PRAIA

 


        Custou-te assim tanto?

          quis ele saber, sentados à mesa de um café.

          Invoquei o somatório de anos, uma vez que

          é sempre mais singelo o raciocínio do merceeiro

          E fiquei-me a olhar lá fora, onde

          na meia-distância, um bando de crianças

          se entretinha ordeiramente na areia

          Crianças de orfanato, crianças amestradas

          ou porventura tornadas solenes pelo areal e a vista de água.

          Mas a resposta dada não era moeda precisa do que me sucedera e

          o assunto restou suspenso em mim como uma bruma balnear.

          Talvez o maior custo, talvez,

          fosse o ter de me mover até um destino ainda informe

          os anos de errância...

          Um dia, mas como distingui-lo na distância?, fui capaz de olhar para trás,

          e distinguir o longe de onde viera, as ameias ruídas, o caminho

          que fora pisado em passos incertos e olhos no horizonte, reverentes

          como os das crianças que agora seguem em fila a caminho do mar


© Fotografia: pedro serrano, junho 2021.

26 julho 2021

NEM UMA PRÁ CAIXA!

Acabei de ler um artigo do Dr. Valter Fonseca, Coordenador da Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid19, um organismo da DGS. E, apesar do esforço em progredir pela vacuidade do À Ciência o Que É da Ciência (Público de hoje), li-o de ponta a ponta, pois que no espaço que lhe foi concedido (página inteira), bem que o homem podia ter explicado um aspecto de várias e importantes implicações: por quais razões a Comissão que ele dirige decidiu não incluir os jovens (12-17 anos) e crianças naqueles que devem ser vacinados contra o Covid. Embora nestes grupos a doença seja habitualmente leve, eles constituem, como sucede para outras doenças infecciosas, um muito importante elo (e elo invisível, pois que maioritariamente assintomático) na disseminação da infecção pela comunidade a que pertencem. 

Mas, como se costuma dizer, o nosso Dr. Coordenador não dá uma para essa caixa, preferindo espraiar-se pelas vertentes teóricas das vacinas, dos antigénios, dos antibióticos, dos TAC, dos anticorpos, do raciocínio médico, da verdade e da supremacia da Ciência, o todo debitado no tom do sacerdote condescendente que tenta fazer chegar a suave Luz do Saber ao rebanho... Sobre a vacinação de crianças e jovens é que nada, nem aflorado é o assunto mais importante do dia, na véspera de uma reunião no INFARMED em que isso terá de ser equacionado! Às escuras, continuamos pois a perguntar-nos: a) Será que as vacinas existentes são menos eficazes em jovens e crianças? Não, sabe-se que são igualmente eficazes, há quem já tenha estudado isso; b) Será que essas vacinas são menos seguras e têm mais efeitos indesejáveis nestes grupos etários? Não, demonstrou-se que esses efeitos são raros e maioritariamente leves, tal como nas outras idades; c) Será que é exigir muito do sistema imunitário dos jovens e crianças acrescentar uma nova vacina às que estes grupos já tomaram? Não, aliás, a conselho dos seus pediatras particulares, as crianças passam a vida a ser inoculadas com vacinas que protegem de males cuja gravidade é nula ou quase nula num país como Portugal e que bem deveriam ser deixadas para outros países mais aflitos com elas (como África, por exemplo).

Então, o que nos fica, como relevante razão para que o Dr. Valter desaconselhe a vacinação dos jovens? Ao que parece, fica-lhe somente uma ética sentimental e uns bons princípios alambicados a sobrar nas mangas, isto é: não nos fica nada de consistente segundo a ciência que o senhor tanto gosta de invocar como coutada. Nada de nada.

No entanto, esta posição da Comissão Técnica de Vacinação pode deitar a perder a tal imunidade de grupo por quem todos suspiram, desde o primeiro-ministro, a quem nunca antes tinha ouvido falar dela. Sucede que, para que possa acontecer, a imunidade de grupo (que, como um guarda-sol, protege toda a população, mesmo uma pequena franja de não-vacinados) necessita que uma proporção muito alta da população esteja vacinada. Nas doenças para as quais existe vacinação (sarampo ou poliomielite, entre outras) esse valor atinge os 95 % ou mais de população vacinada*. O que quer dizer que os valores que temos ouvido citar ao longo da pandemia como meta para a alcançar (50 ou 60 %; houve até uma matemática desvairada que augurou que a atingiríamos com 22 % de vacinados) não foram mais do que meias-ignorâncias esperançosas e piedosas. Como o tempo mostrará, e não deslizando para o terreno do milagre, teremos de atingir coberturas vacinais de 95 %, ou talvez mais, para que os que estão vacinados possam inibir o vírus de circular livremente e, nessa circunstância, mesmo os 3 a 5 % de não vacinados beneficiarão de protecção, dado que o vírus não lhes conseguirá chegar com facilidade. 

Ora é aqui que entram o Dr. Valter e a sua rapaziada tão compenetrada nos engomados da ética: ao deixar de fora da estratégia de vacinação uma fatia da população que ronda os 15 %, podem estar a comprometer objectivamente a possibilidade de se atingir a tal imunidade de grupo dos portugueses. Nada mal, vindo de uma DGS!

Valter Fonseca, Coordenador Comissão Técnica Vacinação Covid19.

Resta-nos ir andando e vendo no que isto dá, como, desgraçadamente tantas vezes tem acontecido ao longo da pandemia. Para já, os casos de doença aumentam, os internamentos também (inclusive nos cuidados intensivos), os mortos por Covid e a mortalidade em geral aumenta, isto é: a maré sobe e pode vir a suceder que, de um dia para o outro, o vento mude e, afinal, venha a ser necessário e bom vacinar os jovens... Só que, com este tipo de atitude titubeante, isso será já tarde e far-se-á à pressa, porventura em cima ou após o recomeço das aulas. E então, para complicar tudo, chegará também o Outono e somar-se-ão as outras doenças habituais da rentrée. O que dirá nessa altura o Dr. Valter? Dirá aquelas frases feitas do costume: que tendo em conta a evidência científica de que dispunha à época, e não sei mais o quê, e tudo ficará na mesma para ele: sem sombra de pecado. Tem sido o costume.

 

* Há doenças em que, pelas suas características, a imunidade de grupo nunca é alcançada (tétano, tuberculose, gripe, por exemplo) e para o Covid19 não se sabe ainda com segurança se tal tipo de protecção global poderá, em definitivo, ser atingida ou não.

15 julho 2021

JANTAR COM O NARIZ DE FORA

Não cabe na luzidia cabeça de um prego esta ideia do Governo obrigar os restaurantes a executar testes Covid aos clientes, ou seja: o transformar em agentes de saúde pobres desgraçados que já não têm mãos a medir com a ementa, a pandemia, os prejuízos e as múltiplas regras que lhe estão associadas. A transbordar de compaixão, vi uma senhora, ao lado de uma mesinha onde se acumulavam caixas de testes rápidos e papéis (consentimentos) para os candidatos a comensais assinarem no final da escarafunchadela, senhora que, simultaneamente, estendia menus a clientes que se encaminhavam para a esplanada, esses livres da submissão a tais medidas invasivas. 

"Que porcaria", pensei também ao imaginar-me numa esplanada onde, além de ter de assistir a uma fila de gente a enfiar zaragatoas no nariz, as veria em seguida a ser despejadas dentro de um qualquer balde de pedal, mesmo ao lado do expositor dos lagostins e dos bifes da vazia! 

Para já não falar no risco implícito de contacto ou proximidade com eventuais pessoas infectadas com Covid (que deixariam os seus produtos biológicos no restaurante), tudo isto viola gritantemente as regras básicas de higiene que, há muitos anos, são exigidas aos restaurantes pela Saúde e pela ASAE. 

Queixam-se os donos dos restaurantes que, desde que estas ideias peregrinas foram impostas, as esplanadas estão cheias e as salas interiores vazias. Pudera! Quem se sujeitará, apenas para comer fora, a ter um amador a enfiar-lhe um pau no nariz, na frente de uma esplanada de gente que, enquanto espera pelos calamares à Sevilhana ou pelas bochechas de porco com molho Provençal, se vai entretendo com aquele pratinho visual! E então se o testado for algum vizinho que a gente detesta, como aquela presumida do 4.º Frente que, cotonete enfiada na penca, tremelica a Luís Vuitão, pendurada no braço, como se fosse levantar voo?! Que sobremesa!

A velhinha e saudosa matriz Heróis do mar, nobre povo, etc.
É claro que estão às moscas: passa a constituir um risco acrescido (imposto de fora) ir a um restaurante, para além do incómodo, da devassa dos nossos dados pessoais, e da eventual humilhação social - exactamente o oposto do que se deseja quando se sai de casa para ir comer fora...

Convém acrescentar que a responsabilidade pela aleivosia não deve, desta vez, ser imputada à Saúde (Ministério da Saúde), a qual teve o bom senso técnico de se opor a ela ou de ensaiar contrapor argumentos. O problema, para quem ainda não se tinha dado conta, é que a pandemia e a sua gestão caíram nas mãos da Economia e desse grande cérebro que é Siza Vieira. É essa gente que, agora que os chefes consideram a pandemia dominada, está aos comandos, e é ver jovens engravatados (pelas legendas descobrimos serem secretários de estado) já muito assumidos e autoritários na sua tarefa televisiva de transmitir instruções, genuinamente convencidos do seu manto de poder, pelo menos enquanto não tropeçam no tapete ou o chefe não achar melhor prescindir deles, despedindo-os e fazendo-os regressar às tocas de origem, onde continuarão a sonhar com paraísos fiscais e moradias com jacuzzi virado para a auto-estrada...

Para este desvario resolveu agora contribuir a Ordem dos Médicos que, até ao momento, tem tido, aliás, uma conduta sensata e apropriada na crise Covid19. Pois Miguel Guimarães, o bastonário, apresentou ontem ao país uma nova matriz para avaliar o estado da pandemia, segundo ele melhor do que aquela que tem sido usada.  O novo artefacto, assim à primeira vista, parece patrocinado pela Depuralina, e visualmente consiste numa espécie de cinto com fivela, para ser lido na escala de 0 a 100, em que 0 representa o finguelinhas, o risco baixinho, e 100 o extremamente obeso, o riscalhão. Na pompa e circunstância da cerimónia, ficámos a saber que na nova artilharia pesou grandemente o contributo de ilustres matemáticos e que o contexto da doença passará a ser encarado - por uma organização da Saúde! - como se fosse a órbita de um cometa. 

O cinto com fivela da Ordem dos Médicos.

Mas, finalmente, que nos diz de brilhante, novo, avançado, útil em termos de intervenção ou previsão, esta nova cascata de fórmulas, face à velhinha matriz do Ministério da Saúde, que lembra, na sua simplicidade, a bandeira portuguesa, e permitia, num olhar, que qualquer um percebesse onde estávamos? A Ordem dos Médicos, e os seus matemáticos, diz-nos que, neste mês da graça de Julho de 2021, Portugal está a atingir um estado crítico em termos de pandemia. Porra, confesso que fiquei banzado com a notícia inesperada: eu, e mais dez milhões de portugueses, estávamos longe de sonhar com tal panorama e previsão! A sério?!