Apesar de se encontrar fechada desde 2007, ano da morte do meu pai, que sobreviveu à minha mãe, a casa, com três andares, mantinha intacto o seu recheio e dizer isto não é dizer apenas que conservava o mobiliário nas várias divisões, mas, também, que esses móveis mantinham o seu conteúdo: livros, molduras com fotografias, roupas, caixas de costura com linhas, dedais e tesouras; pratos e talheres; peças ornamentais de madeira, cerâmica e bronze... Havia também espelhos e quadros pendurados pelas paredes; a lenha que sobrou da que era usada na lareira; pneus velhos na garagem, e até alfaias de jardim e mangueiras enroladas no quintal. Tudo, praticamente tudo, do que ali sempre existiu quando lá morávamos todos: os meus pais, as duas minhas irmãs, uma empregada que ali viveu com o marido; vestígios dos anos de universidade em que o meu filho procurou o Porto e a casa do avô para residência.
"Deus abençoe este lar", constava num prato, redondo, de faiança azul, pendurado sobre a ombreira que separava a cozinha do hall.
Mas, ao fim de um longo estágio no mercado imobiliário, a casa fora finalmente vendida e o articulado do contrato de compra e venda, já assinado, fixava que deveria ser entregue, ao novo proprietário, devoluta (ou seja: vazia, desocupada) no dia da escritura, formalidade prevista para meados de Janeiro.
Assim, antevendo que seria empresa árdua e demorada, pus-me a caminho ainda antes do Natal e, juntamente com a minha irmã mais velha e o marido de uma das empregadas da minha sobrinha, cavalheiro que revelara óptimas qualidades na manutenção do quintal da casa quando este se transformou na selva costumeira dos locais desabitados, juntamente com essa ajuda, dizia, demos começo à imensa, interminável e, à posteriori, dolorosa, tarefa de a esvaziar e decidir sobre o que fazer ao muito que ali restava.
Às cinco da tarde do primeiro dia dedicado a esse empreendimento, o anoitecer de inverno expulsou-nos dali. Em muitas das divisões, as lâmpadas dos candeeiros tinham fundido e, noutras, estouravam mal se dava ao interruptor: a humidade acumulada numa casa fechada é omnipresente e nada lhe resiste, a água é o primeiro corruptor, o ferro que o diga. De modo que, não se podendo contar com a luz artificial, as sombras cresciam como cogumelos e eu sentia-me já arrasado de tanto subir e descer escadas, de tomar consciência sobre o quase nada que fizéramos nessas primeiras oito horas de trabalho.
"Isto vai ter de ficar para outra vez", desabafei, desanimado, ao Sr. Serafim, que regressava dos contentores do lixo com o carrinho de mão vazio e um cigarro pendurado sobre a máscara descaída. Nada que não soubesse desde sempre que iria suceder, mas, nesse dia, pouco mais iniciáramos do que o esvaziamento de arrumos sob escadas e o empurrar para o lixo da papelada sem préstimo evidente, dos objectos avariados ou destruídos pelo tempo há que estavam enclausurados.
As visitas seguintes encadearam-se a um ritmo progressivamente mais intenso, com menores intervalos entre as minhas viagens de meio milhar de quilómetros, pois Janeiro rompera o calendário com o seu primeiro dente e a escritura fora finalmente agendada para o fim do mês.
Cada um vindo do seu sítio, encontrávamo-nos habitualmente na casa por volta das nove da manhã e eu, que ia dormir ao Porto de véspera, era o primeiro a chegar, a abrir cadeados e portões, a subir estores e escancarar janelas; a tentar expulsar a tristeza, a humidade e o intenso odor a mofo e, sobretudo, a tentar fomentar uma corrente de ar que atenuasse, apesar de todos usarmos máscaras, o risco de contágio por Covid19, caso algum de nós estivesse infectado sem o saber. É que, planeadamente, muita gente se cruzava entreparedes em cada uma daquelas sessões: o tipo que vinha ver os livros; o antiquário; a rapariga das velharias; os primos que gostariam de ficar com alguns dos móveis, os operários que vinham substituir um vidro partido; e, amiúde, de surpresa e surpreso com a actividade frenética, o futuro dono, um homem ainda jovem, de atitude e sorriso benevolamente contidos, que surgia para conferir a altura dos degraus da escada para o primeiro andar - a que pensava substituir a alcatifa por piso em madeira - ou, acompanhado de um carpinteiro, para estudar as característica das tábuas de madeira exótica escondidas sob o verniz das portas dos quartos.
E sempre, sempre, nós os três, os crónicos: a minha irmã Clara, o Sr. Serafim e eu próprio; cabendo-me, o dia inteiro, o ter de responder aos milhentos "o que se faz a isto?". "Lixo", respondia, cerrando os dentes, arfando atrás da máscara. E ao fim da jornada — as tais cinco da tarde em que o crepúsculo e o cansaço nos expulsavam —, ao ligar o alarme e fechar as portas, tentávamos animar-nos reafirmando que já "se notava qualquer coisa". Um qualquer coisa que era o inverso do que fora o encher — alegre, premeditado ou espontâneo — daquela casa, feito a pouco e pouco, ao longo de quarenta anos, ruminava, já metido dentro do carro, enfiando-me no trânsito em direcção à saída da cidade e à noite.
A última sessão, a que esvaziou mesmo a casa e a deixou só paredes e sombras, arrastou-se por dois dias: no primeiro, a associação benemérita que iria levar consigo os móveis e objectos sobrantes, escolheria e carregaria o que lhe poderia render ou servir para alguma coisa, e o dia posterior seria gasto a recolher o que consideravam inútil, os monos imprestáveis, e esse tempo e transporte restantes seriam pagos por nós. Tinha lógica. Havia um frigorífico quase podre, uma arca congeladora roída pela ferrugem que pesava toneladas e jazia na cave; camas e armários que só conseguiriam atravessar portas desmontados. Mas, para além desses, havia escolhos:
"Estes três vão ter de sair daqui à machadada", apontava, empedernido, um dos tipos da tal associação benemérita.
"À machadada, como?"; eu não compreendia como seria possível referir desse modo os dois enormes móveis-estante da sala-de-estar, o louceiro da sala-de-jantar. Um desses armários, onde estivera a TV, concentrara, concorrendo com a lareira, todos os olhares presentes na sala durante décadas; o outro, os livros mais nobres da casa. Quanto ao louceiro, atrás da suas portas de vidro, expusera porcelanas, cristais, tudo quanto havia de mais comemorativo, frágil, colorido e tilintante.
"À machadada, feitos em tábuas! Quem é que você acha que vai querer isto?", perguntava ele, irado de imaginar o trabalho futuro, apontando o imenso móvel da TV, que fora concebido e construído para ocupar precisamente todos aqueles metros entre o chão e o tecto, a lareira e a porta-janela que dava para o terraço.
"O que é que você acha que se pode fazer com uma coisa deste tamanho? Quem é que hoje tem uma casa para isto? Nem dado, alguém o quer! Vai directo para o ecoponto e, antes disso, vamo-nos ver gregos para o arrancar dali!"
Nenhum daqueles três era grego: o que me falava assim - o mentor, o líder da equipa - era português e afeiçoado à entoação de uma rixa de rua; um dos outros ucraniano e o terceiro brasileiro. Unia-os o serem todos ex-toxicodependentes e trabalharem como cães, sem parar nem pestanejar.
"Você é que sabe...", ouvi-me dizer.
"O Pedro, amanhã, não deveria assistir a isso", sugeria a Elisa, que ouvia a conversa e, após regatear um pouco (já tratara de assuntos semelhantes), desistira também de elencar soluções alternativas. O seu aparte piedoso era o que se poderia considerar, pensei, um conselho de merda: atento, bem-intencionado, irrealizável. Como dizer a um morto que não deve assistir à sua autópsia!
O último dia foi 21 de Janeiro, uma quinta-feira, e começou à hora do costume. Nesse dia, como na véspera, estive sem a companhia ou o auxílio da minha irmã Clara e do Sr. Serafim, ambos fechados em casa com Covid19, tal como o meu cunhado e a mulher do Sr. Serafim, a tal que era empregada da minha sobrinha, vejam só a cadeia de contactos! Já vogávamos naquela fase da pandemia em que ninguém fazia a mínima ideia com quem apanhara a doença e eu próprio deixara de estar seguro do meu estado viral! Como companhia, para além dos três carrejões da associação, voltou a aparecer a Elisa, amiga que levou alguns móveis e reposteiros para si, alguns livros, alguma roupa e ajudou onde pôde, como se fizesse parte daquele filme, onde apenas entrara para o último capítulo. O que é o destino, e, é claro que o destino fez de tudo para que nesse dia chovesse a potes e a humidade fosse tão intensa fora como dentro de casa, onde até os espelhos dos interruptores brilhavam de água e estes escorregavam sob os dedos.
Pela hora do almoço a casa estava praticamente esvaziada: restavam os ferros de uma cama por desatarraxar no andar de cima; um armário na cave para desirmanar; e uns sofás pela sala-de-estar, para além de uns caixotes no hall da entrada. Mas era hora de almoço: os homens tinham de o ir fazer à cantina da Associação, e a Elisa tinha de ir preparar o almoço à mãe.
"Eu gostava de o poder convidar", dizia, prevendo o meu destino imediato. É que tudo, fora daquelas paredes, estava já fechado pelo confinamento e não havia restaurante, café ou fosse o que fosse onde se pudesse entrar, sentar, ir.
"Não se aflija, fico por aqui; trouxe umas bolachas e tenho uma garrafa de água ali na mochila."
Solidária, ela deixou-me uma pera e uma banana, antes de arrancar:
"Estou aqui por volta das três", o que era a hora a que os outros três homens tinham combinado regressar para terminar o serviço. E com a saída dela entrou o silêncio.
Depois de lavar a pera na banca vazia da cozinha, levei tudo para o peitoril da lareira e arrastei um nada a antiga poltrona do meu pai para o meio vazio da espaçosa sala de estar, para mais perto da luz frouxa do exterior. Dali a escassas horas aquela poltrona, de morno veludo vermelho, iria ser exilada para sempre, designada aos adereços de um teatro, fazendo companhia à roupa que ainda sobrara pendurada no guarda-vestidos do quarto dos meus pais. Que fim reconfortante, apesar de tudo, quando a alternativa era o lixo ou os contentores de roupa para sem-abrigo.
"Darão uns belos trajes de época", ajuizava Elisa.
Sentei-me no cadeirão, trinquei a pera, com casca e tudo: já não restava um prato, uma faca naquela casa. Lá fora, a chuva continuava a cair e, como conservava as portas-janelas da sala abertas, o som chegava-me, claro, monótono, aqui e ali travado na queda pelas folhas das plantas do jardim. Olhei o relógio: era uma e um quarto, teria mais ou menos, uma hora para estar ali, sozinho. Por volta das duas e meia iria aparecer o meu sobrinho João, filho da minha irmã Clara, para recolher uns pacotes para a mãe, emparedada em casa pela quarentena covídica.
Foi por aí, entre o cascabulho da pera e o puxar pelas abas da banana, que me chegou o zumbir da campainha. Soube, de imediato, que era proveniente de uma campainha interior, pois as das portas exteriores estavam avariadas e inactivas há séculos; já ninguém, sequer, as pressionava por erro ou esquecimento!
Acontece que em várias divisões da casa, sobretudo nos quartos de dormir do andar de cima, existia, à cabeceira da cama, gémeos dos usados para acender e apagar a luz principal do quarto, um fio longo, terminando-se por um interruptor na ponta, um manípulo oblongo a que se chamava, precisamente, "a pera". Em baixo, numa das paredes da cozinha, num pequeno quadro com números, era resumida a informação sobre quem chamava: a cada divisão correspondia um algarismo e, quando a pera respectiva era pressionada, uma pestana com esse algarismo, descaía e tornava visível a origem da chamada. Como o zumbido, vindo da cozinha, continuasse, levantei-me e fui ver. Sem grande surpresa, constatei que o algarismo cuja ficha caíra e vibrava era o correspondente ao quarto dos meus pais. Carreguei no botão, existente sob o quadro, que anulava o toque e fazia regressar os algarismos à posição de espera. Nada aconteceu, o número 6 continuou ali, vibrando levemente.
Subi as escadas e entrei no quarto. Como nos outros, os fios da luz e das campainhas jaziam agora ao longo do soalho, como tripas abandonadas e inúteis. Acocorei-me e premi o interruptor da pera: o zumbido cessou. Olhei o quarto vazio e silencioso e voltei à sala e à minha banana. Lá fora, a chuva acalmara um pouco, a luz aproveitava para tentar atravessar os vidros embaciados, mas o interior da sala continuava sombrio, a lareira parecia agora um enorme estaleiro abandonado e ao lado, na parede, havia uma imensa cicatriz rectangular no local onde o móvel da TV fora arrancado. Sentei-me no cadeirão vermelho. Seria a última vez que ali estaria e esse ali, onde estava, já não era bem nada, embora ainda fosse alguma coisa...
O zunido fez-se ouvir de novo na cozinha. Levantei-me e fui verificar. Era a mesma coisa de há pouco e o botão de desligar sob o quadro voltou a não funcionar. Voltei a subir as escadas, voltei a agachar-me no interior do quadrado onde outrora estivera a cama dos meus pais. Carreguei no interruptor da pera, mas, desta vez, não resultou: o zunido continuou a chegar-me lá de baixo. Desatarraxei as duas metades da pera, reconstruí-a, voltei a tentar o interruptor. Nada. Desisti e, depois de ficar um pouco na cozinha, a olhar a pequena placa onde o 6 vibrava, regressei à sala. O som ficou, em fundo, a balir, um balido eléctrico, enrouquecido, até que se terá cansado e parou. Não voltou a tocar.
Às três chegaram todos, primeiro os homens da Associação. Achei-os agora mais cordatos, o mentor já não latia resmungos com a mesma intensidade, o ucraniano dizia piadas tímidas sobre os parafusos que restavam pelo chão e o brasileiro, um tipo dos seus quarenta anos, considerava que era uma bela casa, apreciava a extensão das janelas, aquela parede quase coberta de vidros que dava continuidade à sala de estar e à de jantar.
"Você passou aqui a sua infância?"
"A infância, não; a juventude, saí para ir trabalhar..."
"Deve ter sido bom morar aqui...", alvitrou.
"Sim, sim; imagine isto num dia de sol..."
"Até hoje...", contentava-se ele.
Depois chegou a Elisa, com o ar apressado com que chega sempre a qualquer lugar, um ar decidido, preparado para resolver, dar instruções. Agora os homens da Associação iam ficar por sua conta, tinha-os contratado para irem levar as coisas, das que agora eram dela, a outro destino.
"Mas para que quer ela tantas cadeiras?", perguntava o carrejão mentor, apontando a fiada empilhada na sala.
"É que ela tem um teatro", expliquei, "e num teatro gastam muitas cadeiras..."
Ele encolheu os ombros, suspirou.
"Já mal temos espaço no camião e ainda vamos ter de meter esta merda toda! E o sofá vermelho, também é para ir?"
No final, despediram-se de mim com cotoveladas amistosas, um deles de punho contrapunho e desejámo-nos tudo de bom, que a vida podia ser agreste! Eles saltaram para a cabina do camião, fui ajudá-los na manobra de entrar na estrada.
"Não precisa mais de mim?", perguntou a Elisa, "é que fiquei de ir à frente deles, apontar-lhes o caminho."
"Não, vá, vá; obrigado por tudo. Vou só ligar o alarme, fechar as portas e também me vou pôr a andar..."
"Hoje ainda vai chegar a casa a horas de jantar."
Antes de fechar a porta, olhei para dentro. Da posição onde estava, e com a casa vazia, conseguia ver de uma parede à outra, uma perspectiva que não recordava nunca ter tido. Havia a porta em cuja soleira eu estava, a seguir a porta aberta do vestíbulo, depois o hall, depois a porta corrida que dava acesso à sala de estar e, mais ao fundo, os estores descidos das porta-janelas, por onde se insinuava um fio ténue de luminosidade exterior. Meti a chave na fechadura, olhei outra vez o interior e puxei a porta sobre mim. O alarme iniciou os pios intermitentes de que fora activado.
Fotos, de cima para baixo: 1. pedro serrano, 2010; 2-3-4. pedro serrano 2021; 5-6. Ana Almeida, 2021; 7-8. pedro serrano, janeiro 2021.