31 agosto 2013

À PORTA DE UM ABRAÇO


Por esses dias, quando batia à porta da casa da rua Cesário Verde, a Dominique (a menininha loura da foto) devia andar pela idade e pelo tamanho do Patrick, o irmãozito sentado à esquerda. Quanto à Tati, a cadela que nos mira com o ar ternamente façanhudo, já atingira o tamanho definitivo com que aparece na foto e assim ficou na minha memória para sempre, mesmo hoje, que deve passar as tardes a rilhar uma nuvem em forma de osso lá no céu dos cães.
Mas por esses dias, quando batia à porta da rua Cesário Verde, às vezes era a Dominique que, vivendo o ano inteiro em Bruxelas, vinha atender a correr, a saudar os tios que não via às longas eternidades que são os meses na infância. Numa outra chegada, num outro Natal ou num outro Verão era a Tati que, pressentindo em ultrassons a chegada, se antecipava a quem puxava o trinco e me saltava em cima numa excitação igualmente saudosa.
E eu, brincalhão, naquela confusão similar de situações, abraçava, abanava a Dominique entre os braços, e comentava:
“Tati, como estás grande...”
E ela, na identidade ainda algo vacilante de quem tem três anos, num riso inseguro, reclamava comigo, olhando simultaneamente para a cadela que saltitava à nossa volta:
“Eu não sou a Tati, sou a Domi, a Tati é aquela ali...”
Quanto á Tati, na sabedoria de quem já tem barbas, nunca se importou nada que eu a tomasse nos braços e lhe trocasse o nome pelo da minha sobrinha.

© Fotógrafo desconhecido, anos 90.

29 agosto 2013

À SOMBRA DOS CROISSANTS




Até me caiu a alma aos pés
E por tombar tão pesada,
Ao escorregar de través
Fendeu o salto de um Prada
Esgaçou malha nos collants!
[Exilei-me na confeitaria
À sombra dos croissants]








© Fotografia de Pedro Serrano, Braga 2009.

26 agosto 2013

JANELAS ABERTAS

A mistura de música e letra, a partir do poema de Vinícius de Moraes, terá sido feita por António Carlos Jobim, no ano de 1959 e logo depois dada a ouvir ao mundo por Silvinha Telles, aquela que, escassos anos antes de adormecer ao volante, chegara a ser a encantadora namoradinha de João Gilberto, antes de este topar com Astrud que, curtos instantes após trajar o apelido Gilberto, o trocaria por Stan Getz.
Mas quem, na minha opinião, viria a tornar a canção imortal (como fez a várias outras) foi Gal Costa, que aqui podemos ouvir com o próprio Jobim a pontuá-la em acordes discretos do piano.
Uma década volvida sobre o nascimento de “Janelas Abertas”, qualquer coisa como entre 1969 e 1971, no seu exílio londrino Caetano Veloso (nos seus irreverentes 27 anos) haveria de parodiar a canção, mantendo os “Sim” da letra, mas travando as asas melancólicas da melodia com uma roupagem grave de tango e abrindo as janelas, por onde se esperava que entrasse a luz do sol, “para que entrem todos os insectos”. Esta piscadela de olho (a que Caetano deu o título “Janelas Abertas n.º 2”) estava destinada a ser cantada por Chico Buarque no também imorredouro show que ambos deram na Baía, no teatro Castro Alves, em Novembro de 1972.
O tempo passou, baralhando as cartas e dando-as de novo, como só ele sabe, e todos estes de que aqui vos fui falando se tornaram clássicos, a ironia dos que eram então os juniores  dobrando o joelho ao caminho traçado pelo mais velhos: Caetano tornando-se o intérprete que recorda o mestre que foi João Gilberto e Chico assumindo no seu jeito desinteressado a dimensão de compositor de Jobim. É bonito de se ver, ainda mais de se ouvir.
Fica aqui letra e música das janelas originais.




Sim
Eu poderia fugir, meu amor
Eu poderia partir
Sem dizer pra onde vou
Nem se devo voltar

Sim
Eu poderia morrer de dor
Eu poderia morrer
E me serenizar

Ah
Eu poderia ficar sempre assim
Como uma casa sombria
Uma casa vazia
Sem luz nem calor

Mas
Quero as janelas abrir
Para que o sol possa vir iluminar nosso amor

18 agosto 2013

ENSOPE O PÃO NO MOLHINHO


Não sei como se chegou àquilo, mas, de repente, tínhamos Isabel II, rainha de Inglaterra, tranquilamente na nossa sala de estar, esperando o almoço como o resto de nós.
Eu fora meter gasóleo a uma bomba discount e chegara algo atrasado, mas reconheci-a mal entrei na sala, apesar de, no seu casaco de malha lilás, parecer uma velhinha mais pequenina e insignificante do que nas fotografias oficiais ou nos instantâneos dos tabloides. E ali estava entre nós completamente sozinha, sem mais nenhum dos Windsors, seguranças ou mesmo alguém da porra do corpo diplomático! O ambiente era de tal maneira o de um almoço dominical em família que até tive de dar uma arregadela de olhos à minha irmã Clarinha que, distraída das convenções, cortava as unhas no sofá da sala! Imagine-se alguma das aparas, como tanto sucede quando se usa corta-unhas, a voar e a atingir o real personagem! Era motivo certo para irmos todos parar à Hola pelo mais ignóbil dos motivos.
Finalmente sentamo-nos à mesa e notei alguns sinais de expectativa no fácies da minha irmã Susana, responsável (juntamente com a Carla , a sua fiel mulher-a-dias) pela escolha da ementa e sua confecção. Mas Isabel II, sentada a uma das cabeceiras, mal viu a grande travessa de alumínio atulhada de amêijoas à Bulhão Pato ser pousada no centro da mesa, exclamou:
“Oh, I adore bivalves...”
E observando-a durante uns minutos a comer com apetite, o meu cunhado Gil, sentado à outra cabeceira, ofereceu por sobre a mesa uma fatia de pão de mistura e aconselhou-a num aparte tímido:
“Experimente só ensopar o pão no molhinho...”
Fotografia: © Blog JóJóJoli.

15 agosto 2013

CINEMA TRANSCENDENTAL


Talvez fosse o norte de África, talvez fosse até a Arábia Feliz, o certo é que, assim à partida, não conseguia identificar com precisão o país. Gente acocorada, paredes de cal faiscantes, sombras espessas onde alguém chegara sempre antes de nós.
Estava com o Zé João num território desses e numa espécie de caverna imensa que funcionava como cinema. Filas de bancos sem gente como numa igreja abandonada, os ecrãs eram dois enormes lençóis pendendo na entrada da caverna e, no momento, servindo de guarda-sol aos espectadores ociosos, o bordo inferior oscilando indolente ao sopro quente que chegava do exterior, como a barbatana a caminho da imobilidade de um peixe na lota.
Ao contrário dos nossos vizinhos, amontoados ao longo da parede irregularmente circular da caverna, eu e o Zeno estávamos impacientes de estar ali acocorados, sem fazer nada, uma infinitude de horas antes da primeira sessão da noite... Então, perante o olhar indiferente dos outros, saltámos sobre os ecrãs tal quem se agarra às velas desfraldadas de um navio. Com o impulso, as telas acordaram do torpor e balançaram-se alto no ar, revelando o verde brusco do mar e o azul fixo do céu aos dois cinéfilos arrebatados.

Nota: Cinema Transcendental é também o nome de um CD de Caetano Veloso, 1979.

© Fotografia de Pedro Serrano, Santiago, Cabo Verde, Julho 2012.