06 fevereiro 2020

O 21.º PASSAGEIRO (imprevisto virulento)

O taxista olhou com espanto aquele comboio de ambulâncias que, vindo do acesso da Rotunda do Relógio, piscava ordeiramente à esquerda para assinalar a entrada na Segunda-circular. Agora, que se tinha adiantado uns metros e os controlava pelo retrovisor, concluiu nunca ter visto tal aparato anteriormente: uma meia-dúzia de ambulâncias do INEM, entremeadas por carrinhas e jipes, todos com os pirilampos do tejadilho desligados, seguindo lentamente pela faixa da direita e fazendo presentemente sinal à direita na aproximação da saída para o Campo Grande e para Loures. O que seria aquilo e para onde iriam?
O condutor da segunda carrinha não estava à espera daquele tipo de intercorrência e, ao sentir as pancadas no vidro que o separavam do habitáculo, o seu olhar procurou o do médico que seguia sentado ao seu lado, lendo umas orientações da DGS que acabara de descarregar no telemóvel. Este encolheu os ombros, puxou a máscara para cima do nariz e correu o vidro da divisória. Um dos passageiros que seguia na primeira fila de bancos da carrinha inclinou-se para a frente e, com a voz algo abafada pela máscara facial que lhe cobria boca e narinas, disse:
"Quero sair aqui."
Como se tivesse sido espicaçado por um chuço eléctrico, o condutor exclamou:
"Aqui? Sair aqui?!"
"Sim, quero sair aqui - pare a carrinha e encoste no passeio."
"Dr....", implorou o condutor travando o carro e encostando na berma.
O médico, ajustando os elásticos da máscara, torceu-se no banco para melhor encarar o passageiro.
"Ouça... estamos quase a chegar ao Hospital, viramos aqui à direita e estamos lá em menos de cinco minutos..."
"Eu sei onde estamos... Mas quero sair aqui, ou quer obrigar-me a ir onde eu não quero?"
Perplexo, o médico introduziu um dedo indicador no interior da máscara para coçar o nariz, um gesto que sempre fazia quando queria ganhar tempo.
"Mas o que lhe deu para querer ficar aqui? Tínhamos combinado que todos vocês iam ficar em isolamento voluntário, foram vocês que o propuseram, aliás, pois a lei portuguesa não permite internamentos compulsivos a não ser..."
"Já sei isso", interrompeu o passageiro, "mas, entretanto, mudei de ideias..."
O condutor da carrinha - cuja dicção se entendia com maior clareza, pois seguia sem máscara - virou-se para trás e juntou-se à conversa:
"Ó amigo, você não está a ser razoável: quer ficar aqui, no meio do Campo Grande, a fazer o quê? Olhe que ainda no outro dia - talvez você não saiba, pois estava lá para a China, deram aqui uma facada num inocente que ia a passar! Foi desta para melhor!"
"Por acaso, vocês até nem têm nada que saber o que eu vou ou não fazer - estamos num país livre e democrático, certo? Mas até vos vou dizer, para que possam informar as chefias e não serem chateados. A minha intenção é ir ali à Churrasqueira comer um franguinho à Guia e depois apanhar o metro e ir ao cinema. Estou cheio de estar fechado: há quinze dias que estou confinado e passei as últimas 24 horas a correr para aviões, enfiado em aviões!"
"Ó amigo, repetia o condutor olhando o médico de lado e esperando que este tomasse alguma iniciativa, "você não está a ser razoável... Isto não é propriamente um táxi! Não acha, Dr.?"
O médico achava, tentara até que os restantes passageiros se pronunciassem sobre o desejo súbito do colega, mas estes pareciam alheados a mirar a noite, os carros que iam passando; alguns deles tinham adormecido de cansaço nos seus assentos, as malas encaixadas entre as pernas.
"Você podia, ao menos, ir até ao Hospital, fazer a zaragatoa e depois logo se via...", propôs o médico tentando conduzir o repatriado até ao redil.
"Zaragatoa? O Dr. faz alguma ideia das zaragatoas que eu fiz nos últimos dias? Só hoje já vai em duas, tenho o nariz praticamente em ferida! Já posso sair?", insistiu o 21.º passageiro fazendo um arremedo de se levantar do banco.
"Espere só um bocadinho", lembrou-se o médico, "deixe-me expor o assunto à Linha de Saúde 24; é o protocolo... É um instante e fica tudo mais nos conformes". E, virando-se para o condutor:
"Você sabe o número de cor?"
"808242424", papagueou o outro.
O médico empunhou o telemóvel e fez a ligação. 
"Não atendem...", desabafou para o condutor.
"Espere um bocadinho, Dr., é hora do jantar, demoram sempre a atender: acontece-nos o mesmo lá no INEM."
"Estou? Linha de Saúde 24? Colega, daqui o profissional médico nCO19, para relatar uma ocorrência e pedir instruções. Vou meter a chamada em alta voz, afirmativo?, para que a equipa possa acompanhar."
Do lado de lá da linha, à medida que o médico ia expondo a situação, uma voz feminina, impessoal e enjoada, ia pontuando os passos do incidente com entediados 'OK'. No final, comunicou:
"O incidente descrito não se encaixa em nenhum dos algoritmos, por isso não podemos propor nenhum dos procedimentos do fluxograma de decisão aprovados Superiormente. Sugiro que contactem o Gabinete de Crise da DGS... Há mais alguma coisa em que o possa ajudar?"
"Não...", respondeu o interlocutor desconsoladamente.
"OK. O seu contacto foi importante para nós. Por favor não desligue e responda ao breve questionário sobre satisfação com este contacto, em que 0 corresponde a 'nada satisfeito' e dez corresponde a 'totalmente satisfeito'.
"Roger", concluiu nCO19.
"Posso sair agora...?" voltou a perguntar o 21.º passageiro.
"Aguente só mais um segundo, amigo. Por precaução, deixe só ver o que dizem do Gabinete de Crise."
Do Gabinete de Crise ninguém atendia, e a chamada - após se ouvirem os mesmos compassos do primeiro andamento das Quatro Estações, de Vivaldi - voltou por três vezes ao PBX, até que a telefonista confidenciou que iam ser reencaminhados para a Sr.ª Directora Nacional.
A Directora Nacional, alvoroçada pela decisão do 21.º passageiro, insistiu que lhe passassem o telefone, e informou-o que, embora a lei portuguesa não previsse o internamento compulsivo, todos ficariam muito mais tranquilos se o dissidente se sujeitasse aos mesmos procedimentos que os restantes..."
"Mas, afinal, vocês podem ou não obrigar-me a ir ao Hospital; a fazer a zaragatoa; a permanecer isolado contra minha vontade? É que está a parecer-me que estou a ser pressionado!"
"De todo, de todo, caro compatriota", contraditava a Directora Nacional, "estamos perante uma situação, claramente definida, uma proposta - para ser mais rigorosa - de isolamento optativo, nunca compulsivo. Há outros países que praticam um isolamento compulsivo em situações similares, mas não é o caso português, poderíamos neste caso afirmar até que estamos risonhamente sós..."
"Então isso quer dizer que posso sair aqui?"
Intuía-se a angústia no silêncio da Directora Nacional. Maternalmente, adoçando a voz como uma professora primária em dia de visita do Ministro da Educação, apelou à paciência e à compreensão do 21.º passageiro, contou que ela mesmo ainda não jantara nesse dia, que, no anterior, comera apenas uma sanduiche de pasta de atum; que adorava um "franguinho à Guia", tentou, por razões puramente epidemiológicas, compreender os motivos de tal desejo alimentar, e não de outro petisco, por parte do 21.º passageiro.
"Sabe, é que, lá em Wuhan, tenho uma namorada, nativa. O pai dela é dono de uma banca de frangos no mercado e inaugurámos há meses uma startup de frango à Guia, entregue ao domicílio, uma receita que era desconhecida na cidade e tem feito sucesso, pois os chineses são loucos por frango. Acho que foi isso que me fez saudades..."
Em seguida, a Directora Nacional quis ainda saber - para registo no inquérito — qual era o filme que o 21.º passageiro tencionava ir ver, e onde. 
"Quando vinha no avião estive a estudar o cartaz de filmes em Lisboa e vi que no Corte Inglês passam uma reposição do Outbreak: Fora de Controlo..."
"Ah, com o Dustin Hoffmann...", a Directora Nacional já tinha visto o filme que, confessou, ligava optimamente com as excelentes pipocas daquelas salas.
"Mas, se pedir das salgadas, peça com pouco sal: o sal é um dos maiores inimigos do coração." 
E, antes de dar a chamada por concluída, a Dirigente pediu do compatriota que lhe fizesse somente um último favor e que, se por causa disso, chegasse atrasado à sessão, ela teria todo o gosto em o ressarcir do preço do bilhete do próprio bolso:
"Atenda pessoalmente a chamada que esse número irá receber dentro de minutos..."
O 21.º passageiro prometeu - tanto lhe fazia, podia mudar de ideias a quando lhe conviesse.
Entretanto, alguns dos passageiros, maçados com a espera, tinham deixado a carrinha e exercitavam as pernas fazendo corridinhas curtas no passeio; um deles conversava com o condutor de uma das ambulâncias enquanto fumavam o seu cigarro e partilhavam como cinzeiro o contentor de lixo mais próximo. Alguns passantes ficavam a pasmar para aquele ajuntamento de veículos, um deles aproximou-se a perguntar o que era aquilo e se tinha alguma coisa a ver com o Sporting.
O telefone de nCO19 retiniu e, como combinado, o 21.º passageiro atendeu. Do lado de lá, uma voz aguda e metralhante invadiu-lhe os ouvidos:
"Muito boa noite, Sr. Utente, fala-lhe a Ministra da Saúde. Queria, antes do mais, informá-lo de que a lei portuguesa não permite o isolamento compulsivo, a não ser em situações de alta perigosidade do foro da saúde mental... Posto isto, e tendo chegado ao meu conhecimento que o Sr. Utente exprimiu recentemente o desejo de abandonar o afastamento optativo em ambiente protegido - ao qual tinha aderido voluntariamente e sem qualquer pressão, a não ser a atmosférica - é minha obrigação informá-lo de que a manifestação mais recente do seu legítimo direito de liberdade sem peias poderá, não obstante, colocar em causa..."
O 21.º passageiro tentou interromper o jacto torrencial que lhe inundava o ouvido médio e começava a causar-lhe tinidos no cérebro, mas sem sucesso. Como uma verruma, a voz continuava:
"De todo o modo, estaríamos em condições de lhe propor que a sua hospedagem optativa pudesse passar a ter lugar no Parque de Saúde de Lisboa, sito à avenida do Brasil, local que, indubitavelmente, proporciona um ambiente..."
"E quais são as vantagens desse lugar em relação ao anterior?", conseguiu o 21.º passageiro inserir no monólogo.
Do lado de lá da linha, a Ministra da Saúde pareceu ficar perturbada com a interrupção, e, após tossicar e aclarar o soprano, desfiou:
"Bem, para começar e como o nome indica, trata-se de um parque, de maneira que irá encontrar abundantes árvores e espaços relvados... Por outro lado, os edifícios, espalhados por espaçosa área, estão encantadoramente dispersos e, como verá, nem todos tem perfil ou vocação hospitalar. Encontrará na cerca um Infarmed, um Instituto Português do Sangue e do Transplante, uma Administração Central do Sistema de Saúde, uma cafeteria dotada de pequena esplanada..."
"Espere lá", atirou o interlocutor para o meio do discurso, "acho que estou a ver aonde isso fica: não é lá que fica o Júlio de Matos, o manicómio?"
"É minha obrigação informar o Senhor Utente de que, hoje em dia, preferimos desusar a designação que empregou, pois consideramo-la, quer conceptualmente quer equitativamente, pouco adequada e desproporcionada. Mas, não querendo iludir a dúvida que levantou, posso informá-lo que sim, é estatisticamente plausível que possa cruzar-se por lá com algum paciente sujeito a restrição temporária de poder passear nas vizinhas avenidas de Roma ou dos Estados Unidos da América. Não seria, no entanto, nunca o seu caso e, como poderá constatar — caso venha a aceitar o nosso oferecimento - verá que nenhum deles ostenta a pulseira laranja com os dizeres all inclusive que seria facultada ao Senhor Utente com quem partilho esta chamada."
E o patuá continuou-se, mas o 21.º passageiro, estafado, já o deixara escorregar para um plano secundário da sua consciência, a qual se entretinha agora a espiar pelo vidro as manobras do tipo de bata curta e barrete de cozinheiro que escancarava as janelas de uma roulotte recentemente estacionada.
"Você acha que eles poderão ter frango assado?", perguntou ao condutor da carrinha enquanto tapava o bocal do telemóvel.
"Não faço ideia... Costumam ter salchichas, bifanas, torresmos; frango não sei... Pode ser que vendam asas fritas, isso talvez. Quer que lhe vá ver?", ofereceu-se o condutor, lobrigando ali uma possibilidade de o dissidente vir a desistir do frango da churrascaria do Campo Grande.
Um pouco mais animado, o 21.º passageiro levou, de novo, o telefone ao ouvido.
"De todo o modo, há algumas medidas simples que talvez algum senhor profissional médico o tenha já posto a par, mas que nunca é demais repetir. O Senhor Utente deverá sempre lavar as mãos após contacto com pessoas ou objectos possivelmente contaminados, e tossir para o tornozelo de cada vez que lhe surgir a vontade irreprimível de o fazer. E, a terminar, solicitava-lhe que, antes de darmos por esgotado este contacto, respondesse a um brevíssimo inquérito epidemiológico - [o quê...?]; perdão, estão a dizer-me que, afinal, o inquérito que referi é de satisfação] — em que o valor 0 da escala significa 'nada satisfeito' e o valor 10 'totalmente satisfeito com o Governo do actual primeiro-ministro'."
O 21.º passageiro pousou o telemóvel no assento e olhou com vivo interesse a roulotte, em torno da qual se tinha juntado uma pequena multidão, na qual reconheceu alguns colegas de viagem e profissionais do INEM. Nesse preciso momento, o condutor da sua carrinha percorria o caminho entre a roulotte e a viatura, e informou:
"Não tem frango, nem sequer asas..., relacionado com frango tem apenas sandes de pasta de frango. Se quiser, posso encomendar-lhe um cachorro, vou pedir um para mim."
"Cachorro?! Você deve estar a brincar comigo!"
Enquanto combinava com o condutor o que pedir, o profissional médico nCO19 aproximara-se com o telemóvel estendido.
"É o Marcelo...".
"Marcelo?! Não conheço nenhum Marcelo..."
"Você deve estar a gozar... Há quanto tempo está na China?"
"Vai para três anos...", esclareceu o 21º passageiro aceitando o telemóvel.
"Caro sem-abrigo do Campo Grande...", ouviu dizer uma voz um pouco rouca, "estive para passar por aí, mas a Casa Civil diz-me que há trapalhada por perto, suponho que relacionada com uma evacua... [o quê? ele é um dos da quarentena?]... Queira desculpar, estimado evacuado, houve aqui uma confusão qualquer com a informação que nos chegou de S. Bento e das Necessidades. Para resumir, acontece que não me deixam ir aí: parece que, sendo o Presidente, não me posso expor, mesmo teoricamente, a que o país fique sem mim...; uma trapalhada! De todo o modo, podia mandar aí uns batedores e vinha você até Belém, tirávamos uma selfie, com máscara, claro: tenho até uma que me ofereceu - quando lá estive em visita de Estado — o Presidente Ping, uma bela máscara bico-de-pato, lacada... O que me diz, o estimadíssimo amigo?"
"Belém...? É pá, é um bocado fora de mão, mas é bué de tentador, com os pasteis e assim... O senhor nem sonha a porcaria que eles são lá na China - que os há, de franchising, por todo o lado - sabem mais a omelete do que a outra coisa!"
"Pois se quiser vir, é só dizer. Não sei se, a esta hora, há pasteis aqui no palácio, mas sempre lhe arranjo uma medalha, que ainda há menos de uma hora estive entretido a polir algumas, gosto do cheiro do Duraglit e é uma rotina que me distrai a seguir a jantar, relaxa-me para aquela maçada das promulgações de leis e decretos. A qualidade da produção legislativa de hoje em dia! Olhe, agradeça aos céus o estar na China!"
E, evolando um eco de risada no ar, a chamada desligou-se, deixando o 21.º passageiro a olhar para o telemóvel suspenso.
"Acho que não vou..." acabou por dizer para o médico, que o olhava com ansiedade; "é longe, se calhar não há pasteis, e palácios e medalhas é uma cena que não me assiste...".
Dizendo isto, levantou-se do assento, pegou na mochila, contornou a roulotte e desapareceu no meio da noite. Nunca mais ninguém lhe pôs a vista em cima, embora o Correio da Manhã tenha, alguns dias mais tarde, divulgado uma fotografia, muito pixelizada, em que uma seta vermelha apontava uma cabeça de perfil, alegadamente pertencente ao desaparecido 21.º e tirada numa Assembleia Geral do Sporting. 
Em Abril, no dia Mundial da Saúde, ao serem distribuídas as medalhas de mérito do Ministério da Saúde que distinguiram os intervenientes na evacuação e no isolamento optativo (20 evacuados; 35 funcionários do Ministério da Saúde e das forças de Segurança; o porteiro do Hospital - a recibo verde; 6 empregados do McDonald do Campo Grande; 3 motociclistas do Uber Eats), nesse fim de manhã, o ouro da medalha destinada ao 21.º viajante ficou a brilhar, solitário e não reclamado, na horizontalidade da seda azul-celeste que forrava a respectiva caixa.




















02 fevereiro 2020

UM ATCHIM CHINÊS

Saúdo os 17 portugueses que daqui a umas horas pousarão em território nacional, desejando-lhes o discernimento e o bom-senso (já manifestado, aliás, por um deles) de, pela saúde dos seus e do resto da população, exigirem um isolamento temporário das suas pessoas até que o risco de poderem ser transmissores de infecção por coronavírus possa ser completamente posto de lado. É o que nos resta, pois este discernimento não tem iluminado quem, tecnicamente, tem essa responsabilidade a nível nacional e se vai refugiando, para o adiar, atrás de esfarrapadas considerações cujo mofo original é o Diário da República da primeira metade da década de 70.
Nos últimos dias — ao contrário do acontecido inicialmente - cada imagem televisiva de um avião que roda numa pista chinesa é acompanhado de uma voz off, ou de uma nota de rodapé no ecrã, informando que a lei portuguesa não permite o isolamento ou o internamento compulsivo de pessoas. Fraco consolo, anémica justificação perante uma doença para a qual a população mundial não parece ter imunidade alguma. 
Convirá dizer, em primeiro lugar, que as tais leis que os nossos altos responsáveis gostam de citar afirmam, simultaneamente, ser um dever e uma competência do Estado o garantir a saúde da população, e a esta Saúde, vista como um requisito e um bem colectivo, chama-se Saúde Pública. Esta obrigação deve nortear e presidir as decisões de quem foi nomeado para cargos de chefia nacionais na área, particularmente tratando-se de licenciados em Medicina, pois, neste caso, à finalidade última da defesa da Saúde adicionam-se as linhas de conduta do chamado Juramento de Hipócrates, que cada médico deve cumprir e o aconselha (seguindo circunvoluções técnicas e não políticas) a pensar pela sua cabeça. Todos os outros aspectos deverão ser então remetidos para plano secundário - o primado, o foco, é o da defesa da saúde das pessoas, prevenindo a doença e tratando e cuidando dos que adoecem.
Posto isto - que será sempre a bússola interior do profissional com responsabilidade na defesa da Saúde Pública - e descendo ao concreto, vários modos de enquadrar o manejo do regresso dos portugueses retidos em Wuhan poderiam e deveriam ter sido postos em marcha para obviar à situação ridícula a que se chegou: a de não se poder isolar temporariamente alguém, que pode constituir um risco para a saúde de terceiros, por isso poder recordar os tempos e os métodos da PIDE!
1. Partindo do princípio que os membros do Governo terão acesso aos telemóveis uns dos outros, poderia facilmente ter sido fundamentado e articulado com o Ministério dos Negócios Estrangeiros um recado a fazer chegar aos portugueses de Hwan que manifestaram o desejo de regressar: "caros compatriotas, o país está na disposição de vos livrar do aperto em que estão e de vos fazer regressar à pátria, para o que irá desenvolver consideráveis esforços — incluindo financeiros - para o concretizar. Como contrapartida, cada um de vocês comprometer-se-á formalmente a aceitar um período de isolamento de duas semanas, como modo de proteger a saúde dos vossos e do resto do país, já para não falar da dos países que nos rodeiam." É óbvio que, no isolamento e angústia em que já viviam, todo e qualquer um dos nossos compatriotas aceitaria uma condição tão justa e leve como essa e, certamente, não passaria pela cabeça a nenhum deles - logo que se apanhasse a salvo no país - meter o Estado em tribunal por o ter isolado quinze dias numas termas da Beira Alta ou numa herdade Alentejana. Estou certo de que mesmo algum dos mais radicais, daquele subgénero em que a actividade preferida é ler o Diário da República, à noite, na cama, a meias com a companheira/o, dificilmente o faria. 
2. Outro aspecto que vale a pena esmiuçar é o modo precipitado e promíscuo como o nosso Ministério da Saúde se apressou a vestir a toga dos obstáculos que a Constituição e a Lei atravessam à hipótese de um isolamento preventivo. Será que alguém, nessas torres de marfim de Lisboa, se deu ao incómodo de pedir um parecer sobre o assunto ao Tribunal Constitucional a algum constitucionalista? Em caso afirmativo, gostaria muito de conhecer hoje mesmo o seu teor e a resposta recebida. Será que alguém, desses organismos a quem compete decidir sobre a saúde colectiva, apresentou o assunto segundo uma orientação e uma linha condutora que permitisse salvaguardar as melhores decisões TÉCNICAS para a defesa da saúde de terceiros e para a minimização do risco? Existiu esse tipo de taskforce ou de thinktank ou de comité de sábios? Em caso afirmativo, gostaria muito de poder consultar as actas dessas reuniões. Ou será que estarão em segredo, de justiça, de regulador ou de outra qualquer coisa afim? 
As presentes leis portuguesas (pelos vistos firmes como estalactites jurássicas) interditam o "internamento compulsivo para prestação de cuidados" e a excepção actual é a saúde mental, vulgo o tolinho que disparata e provoca desacatos na praça pública, contenção compulsiva que é levada a cabo através dos esforços conjugados das autoridades de saúde, dos tribunais e dos serviços psiquiátrico. Esta excepção à liberdade total prometida pela Constituição é, já de si, esquisita - tendo em conta o referido receio de se poder estar a privar pessoas da liberdade com base em motivos espúrios e politicamente contaminados -, pois que melhor forma haverá de afastar um indesejável do que invocar que está "fora de si" e mandá-lo arrefecer com algum cocktail químico? Isto, sim, pode ser perigoso, dado que a alma não se vê à transparência! Convém dizer, a este ponto e em seu abono, que alguns magistrados portugueses (assisti a um ou dois casos), impressionados por situações concretas que lhe foram pormenorizadamente expostas por médicos e autoridades de saúde desesperadas, mandaram conduzir à prestação de cuidados de saúde compulsivos doentes com tuberculose multirresistente (doença transmissível que, como o nome sugere, não cede, ou fá-lo muito dificilmente, às drogas conhecidas) que recusavam tratamento e passeavam pelas ruas das nossas vilas e cidades a contaminar terceiros. É um precedente importante, não?
3. No caso dos portugueses que regressam da China, não se trata sequer de um internamento compulsivo clássico, pois vários dos critérios para a definição deste tipo de situação não estão presente à partida: nenhum deles estará doente; nenhum deles irá ser obrigado a tomar medicamentos; não necessitam ser internados sequer em nenhuma instituição de saúde: poderiam (como vários países fizeram) ser simplesmente hospedados em estabelecimentos hoteleiros ou similares. Seria, desde que alguém responsável tomasse a iniciativa, bastante simples reservar durante duas semanas um estabelecimento termal ou hoteleiro num local tranquilo do país e, numa gentil articulação com as forças de segurança (continuo a supor que os ministros têm acesso ao telefone uns dos outros), manter o todo sob discreta vigilância: travando a saída de quem, eventualmente, desejasse sair e garantindo a entrada somente a pessoal credenciado.
Este seria, face às tais leis que não permitem que a gente se defenda, a primeira camada do esqueleto do chapéu de chuva que ajudaria a enquadrar a realidade que a pandemia do coronavírus nos atirou para os braços e far-se-ia o que sempre se faz quando se deseja atingir um objectivo: apresentar o assunto à luz que interessa e convêm, neste caso em nome do interesse público.
4. Para além do chapéu de chuva (impermeável a raids de tribunais e legalistas radicais) sugerido no ponto anterior, resta-nos ainda a vasta panóplia dos enquadramentos e normas internacionais a que a inércia dos responsáveis nacionais parece não ter tido folego para soprar o pó: a própria Lei de Bases da Saúde em vigor, na sua base 35, ao falar sobre Vigilância Sanitária das Fronteiras, diz que "cabe, em especial, aos organismos competentes... as medidas necessárias para prevenir a importação ou exportação das doenças..., enfrentar a ameaça de expansão das doenças transmissíveis e promover todas as operações sanitárias exigidas pela defesa da saúde da comunidade internacional". Algumas varetas suplementares poderiam ser acrescentadas a este já robusto guarda-chuva, nomeadamente as orientações constantes no Regulamento Sanitário Internacional (a que Portugal está obrigado), e não seria assim tão difícil obter da Organização Mundial de Saúde — entidade que já deu claros sinais de estar  apoquentada e embaraçada com a mais recente pandemia - um emplastro escrito que resguardasse as costas aos hesitantes responsáveis portugueses da área da Saúde. Mas, mesmo sem ter de navegar além-fronteiras, conseguir-se-ia uma confortável e caseira fundamentação em algumas das páginas do documento que, corria o ano de 2007, a Direcção-Geral da Saúde produziu e intitulou Pandemia de Gripe: plano de contingência nacional do sector da saúde, subscrito por alguns dos altos responsáveis actuais do sector e onde são apresentadas, para situações excepcionais como a que se vive actualmente, medidas que incluem o isolamento e a quarentena (página 156 e 160) e, a páginas 165, se antecipa, doze anos atrás, uma "revisão e adequação da legislação que suporta a intervenção da autoridade de saúde", apresentando como responsável pela implementação desta medida a própria Direcção-Geral da Saúde.
A finalizar, tal o botão que, com um bonito plof, abre automaticamente o guarda-chuva protector das investidas dos puristas, os nossos responsáveis pela Saúde poderiam ainda lançar mão do documento, tornado público em 2018 pela OMS (A checklist for pandemic influenza risk and impact management), o qual recomenda que os países devem identificar bases legais, éticas e práticas para quarentena e também os locais onde pode ser feita.
Está tudo previsto, tudo salvaguardado, parece faltar apenas uma cadeia de comando efectiva e bem oleada que, para além do que aqui se ventilou, faça o possível por evitar situações como a ocorrida no país (a do cidadão italiano em Felgueiras, com uma estadia recente na China e contacto com um caso naquele país) durante o qual um suspeito de infecção com o coronavírus: a) foi transportando a um serviço de urgência lotado de gente; b) foi examinado por um médico do trabalho na sua clínica privada, e que o referenciou a um hospital central; c) esteve mais de 4 horas à espera dentro de uma ambulância não adequada para o efeito, antes de ser conduzido ao serviço de saúde adequado, pois a entidade que deveria validar e desencadear os procedimentos (DGS) terá demorado duas horas a fazê-lo e o serviço do Ministério da Saúde (INEM) que o deveria transportar terá demorado outras duas a concretizá-lo. 
Nesta situação de Felgueiras (primeiro teste à capacidade instalada para conduzir um caso suspeito de relevo ao local apropriado) e na do repatriamento da China, os únicos que parecem ter actuado com senso e correcção foram os leigos na matéria (o industrial de sapatos de Felgueiras; o português que exige ser isolado à chegada ao seu país), numa clara inversão de papéis. Parece o mundo ao contrário.