06 fevereiro 2020

O 21.º PASSAGEIRO (imprevisto virulento)

O taxista olhou com espanto aquele comboio de ambulâncias que, vindo do acesso da Rotunda do Relógio, piscava ordeiramente à esquerda para assinalar a entrada na Segunda-circular. Agora, que se tinha adiantado uns metros e os controlava pelo retrovisor, concluiu nunca ter visto tal aparato anteriormente: uma meia-dúzia de ambulâncias do INEM, entremeadas por carrinhas e jipes, todos com os pirilampos do tejadilho desligados, seguindo lentamente pela faixa da direita e fazendo presentemente sinal à direita na aproximação da saída para o Campo Grande e para Loures. O que seria aquilo e para onde iriam?
O condutor da segunda carrinha não estava à espera daquele tipo de intercorrência e, ao sentir as pancadas no vidro que o separavam do habitáculo, o seu olhar procurou o do médico que seguia sentado ao seu lado, lendo umas orientações da DGS que acabara de descarregar no telemóvel. Este encolheu os ombros, puxou a máscara para cima do nariz e correu o vidro da divisória. Um dos passageiros que seguia na primeira fila de bancos da carrinha inclinou-se para a frente e, com a voz algo abafada pela máscara facial que lhe cobria boca e narinas, disse:
"Quero sair aqui."
Como se tivesse sido espicaçado por um chuço eléctrico, o condutor exclamou:
"Aqui? Sair aqui?!"
"Sim, quero sair aqui - pare a carrinha e encoste no passeio."
"Dr....", implorou o condutor travando o carro e encostando na berma.
O médico, ajustando os elásticos da máscara, torceu-se no banco para melhor encarar o passageiro.
"Ouça... estamos quase a chegar ao Hospital, viramos aqui à direita e estamos lá em menos de cinco minutos..."
"Eu sei onde estamos... Mas quero sair aqui, ou quer obrigar-me a ir onde eu não quero?"
Perplexo, o médico introduziu um dedo indicador no interior da máscara para coçar o nariz, um gesto que sempre fazia quando queria ganhar tempo.
"Mas o que lhe deu para querer ficar aqui? Tínhamos combinado que todos vocês iam ficar em isolamento voluntário, foram vocês que o propuseram, aliás, pois a lei portuguesa não permite internamentos compulsivos a não ser..."
"Já sei isso", interrompeu o passageiro, "mas, entretanto, mudei de ideias..."
O condutor da carrinha - cuja dicção se entendia com maior clareza, pois seguia sem máscara - virou-se para trás e juntou-se à conversa:
"Ó amigo, você não está a ser razoável: quer ficar aqui, no meio do Campo Grande, a fazer o quê? Olhe que ainda no outro dia - talvez você não saiba, pois estava lá para a China, deram aqui uma facada num inocente que ia a passar! Foi desta para melhor!"
"Por acaso, vocês até nem têm nada que saber o que eu vou ou não fazer - estamos num país livre e democrático, certo? Mas até vos vou dizer, para que possam informar as chefias e não serem chateados. A minha intenção é ir ali à Churrasqueira comer um franguinho à Guia e depois apanhar o metro e ir ao cinema. Estou cheio de estar fechado: há quinze dias que estou confinado e passei as últimas 24 horas a correr para aviões, enfiado em aviões!"
"Ó amigo, repetia o condutor olhando o médico de lado e esperando que este tomasse alguma iniciativa, "você não está a ser razoável... Isto não é propriamente um táxi! Não acha, Dr.?"
O médico achava, tentara até que os restantes passageiros se pronunciassem sobre o desejo súbito do colega, mas estes pareciam alheados a mirar a noite, os carros que iam passando; alguns deles tinham adormecido de cansaço nos seus assentos, as malas encaixadas entre as pernas.
"Você podia, ao menos, ir até ao Hospital, fazer a zaragatoa e depois logo se via...", propôs o médico tentando conduzir o repatriado até ao redil.
"Zaragatoa? O Dr. faz alguma ideia das zaragatoas que eu fiz nos últimos dias? Só hoje já vai em duas, tenho o nariz praticamente em ferida! Já posso sair?", insistiu o 21.º passageiro fazendo um arremedo de se levantar do banco.
"Espere só um bocadinho", lembrou-se o médico, "deixe-me expor o assunto à Linha de Saúde 24; é o protocolo... É um instante e fica tudo mais nos conformes". E, virando-se para o condutor:
"Você sabe o número de cor?"
"808242424", papagueou o outro.
O médico empunhou o telemóvel e fez a ligação. 
"Não atendem...", desabafou para o condutor.
"Espere um bocadinho, Dr., é hora do jantar, demoram sempre a atender: acontece-nos o mesmo lá no INEM."
"Estou? Linha de Saúde 24? Colega, daqui o profissional médico nCO19, para relatar uma ocorrência e pedir instruções. Vou meter a chamada em alta voz, afirmativo?, para que a equipa possa acompanhar."
Do lado de lá da linha, à medida que o médico ia expondo a situação, uma voz feminina, impessoal e enjoada, ia pontuando os passos do incidente com entediados 'OK'. No final, comunicou:
"O incidente descrito não se encaixa em nenhum dos algoritmos, por isso não podemos propor nenhum dos procedimentos do fluxograma de decisão aprovados Superiormente. Sugiro que contactem o Gabinete de Crise da DGS... Há mais alguma coisa em que o possa ajudar?"
"Não...", respondeu o interlocutor desconsoladamente.
"OK. O seu contacto foi importante para nós. Por favor não desligue e responda ao breve questionário sobre satisfação com este contacto, em que 0 corresponde a 'nada satisfeito' e dez corresponde a 'totalmente satisfeito'.
"Roger", concluiu nCO19.
"Posso sair agora...?" voltou a perguntar o 21.º passageiro.
"Aguente só mais um segundo, amigo. Por precaução, deixe só ver o que dizem do Gabinete de Crise."
Do Gabinete de Crise ninguém atendia, e a chamada - após se ouvirem os mesmos compassos do primeiro andamento das Quatro Estações, de Vivaldi - voltou por três vezes ao PBX, até que a telefonista confidenciou que iam ser reencaminhados para a Sr.ª Directora Nacional.
A Directora Nacional, alvoroçada pela decisão do 21.º passageiro, insistiu que lhe passassem o telefone, e informou-o que, embora a lei portuguesa não previsse o internamento compulsivo, todos ficariam muito mais tranquilos se o dissidente se sujeitasse aos mesmos procedimentos que os restantes..."
"Mas, afinal, vocês podem ou não obrigar-me a ir ao Hospital; a fazer a zaragatoa; a permanecer isolado contra minha vontade? É que está a parecer-me que estou a ser pressionado!"
"De todo, de todo, caro compatriota", contraditava a Directora Nacional, "estamos perante uma situação, claramente definida, uma proposta - para ser mais rigorosa - de isolamento optativo, nunca compulsivo. Há outros países que praticam um isolamento compulsivo em situações similares, mas não é o caso português, poderíamos neste caso afirmar até que estamos risonhamente sós..."
"Então isso quer dizer que posso sair aqui?"
Intuía-se a angústia no silêncio da Directora Nacional. Maternalmente, adoçando a voz como uma professora primária em dia de visita do Ministro da Educação, apelou à paciência e à compreensão do 21.º passageiro, contou que ela mesmo ainda não jantara nesse dia, que, no anterior, comera apenas uma sanduiche de pasta de atum; que adorava um "franguinho à Guia", tentou, por razões puramente epidemiológicas, compreender os motivos de tal desejo alimentar, e não de outro petisco, por parte do 21.º passageiro.
"Sabe, é que, lá em Wuhan, tenho uma namorada, nativa. O pai dela é dono de uma banca de frangos no mercado e inaugurámos há meses uma startup de frango à Guia, entregue ao domicílio, uma receita que era desconhecida na cidade e tem feito sucesso, pois os chineses são loucos por frango. Acho que foi isso que me fez saudades..."
Em seguida, a Directora Nacional quis ainda saber - para registo no inquérito — qual era o filme que o 21.º passageiro tencionava ir ver, e onde. 
"Quando vinha no avião estive a estudar o cartaz de filmes em Lisboa e vi que no Corte Inglês passam uma reposição do Outbreak: Fora de Controlo..."
"Ah, com o Dustin Hoffmann...", a Directora Nacional já tinha visto o filme que, confessou, ligava optimamente com as excelentes pipocas daquelas salas.
"Mas, se pedir das salgadas, peça com pouco sal: o sal é um dos maiores inimigos do coração." 
E, antes de dar a chamada por concluída, a Dirigente pediu do compatriota que lhe fizesse somente um último favor e que, se por causa disso, chegasse atrasado à sessão, ela teria todo o gosto em o ressarcir do preço do bilhete do próprio bolso:
"Atenda pessoalmente a chamada que esse número irá receber dentro de minutos..."
O 21.º passageiro prometeu - tanto lhe fazia, podia mudar de ideias a quando lhe conviesse.
Entretanto, alguns dos passageiros, maçados com a espera, tinham deixado a carrinha e exercitavam as pernas fazendo corridinhas curtas no passeio; um deles conversava com o condutor de uma das ambulâncias enquanto fumavam o seu cigarro e partilhavam como cinzeiro o contentor de lixo mais próximo. Alguns passantes ficavam a pasmar para aquele ajuntamento de veículos, um deles aproximou-se a perguntar o que era aquilo e se tinha alguma coisa a ver com o Sporting.
O telefone de nCO19 retiniu e, como combinado, o 21.º passageiro atendeu. Do lado de lá, uma voz aguda e metralhante invadiu-lhe os ouvidos:
"Muito boa noite, Sr. Utente, fala-lhe a Ministra da Saúde. Queria, antes do mais, informá-lo de que a lei portuguesa não permite o isolamento compulsivo, a não ser em situações de alta perigosidade do foro da saúde mental... Posto isto, e tendo chegado ao meu conhecimento que o Sr. Utente exprimiu recentemente o desejo de abandonar o afastamento optativo em ambiente protegido - ao qual tinha aderido voluntariamente e sem qualquer pressão, a não ser a atmosférica - é minha obrigação informá-lo de que a manifestação mais recente do seu legítimo direito de liberdade sem peias poderá, não obstante, colocar em causa..."
O 21.º passageiro tentou interromper o jacto torrencial que lhe inundava o ouvido médio e começava a causar-lhe tinidos no cérebro, mas sem sucesso. Como uma verruma, a voz continuava:
"De todo o modo, estaríamos em condições de lhe propor que a sua hospedagem optativa pudesse passar a ter lugar no Parque de Saúde de Lisboa, sito à avenida do Brasil, local que, indubitavelmente, proporciona um ambiente..."
"E quais são as vantagens desse lugar em relação ao anterior?", conseguiu o 21.º passageiro inserir no monólogo.
Do lado de lá da linha, a Ministra da Saúde pareceu ficar perturbada com a interrupção, e, após tossicar e aclarar o soprano, desfiou:
"Bem, para começar e como o nome indica, trata-se de um parque, de maneira que irá encontrar abundantes árvores e espaços relvados... Por outro lado, os edifícios, espalhados por espaçosa área, estão encantadoramente dispersos e, como verá, nem todos tem perfil ou vocação hospitalar. Encontrará na cerca um Infarmed, um Instituto Português do Sangue e do Transplante, uma Administração Central do Sistema de Saúde, uma cafeteria dotada de pequena esplanada..."
"Espere lá", atirou o interlocutor para o meio do discurso, "acho que estou a ver aonde isso fica: não é lá que fica o Júlio de Matos, o manicómio?"
"É minha obrigação informar o Senhor Utente de que, hoje em dia, preferimos desusar a designação que empregou, pois consideramo-la, quer conceptualmente quer equitativamente, pouco adequada e desproporcionada. Mas, não querendo iludir a dúvida que levantou, posso informá-lo que sim, é estatisticamente plausível que possa cruzar-se por lá com algum paciente sujeito a restrição temporária de poder passear nas vizinhas avenidas de Roma ou dos Estados Unidos da América. Não seria, no entanto, nunca o seu caso e, como poderá constatar — caso venha a aceitar o nosso oferecimento - verá que nenhum deles ostenta a pulseira laranja com os dizeres all inclusive que seria facultada ao Senhor Utente com quem partilho esta chamada."
E o patuá continuou-se, mas o 21.º passageiro, estafado, já o deixara escorregar para um plano secundário da sua consciência, a qual se entretinha agora a espiar pelo vidro as manobras do tipo de bata curta e barrete de cozinheiro que escancarava as janelas de uma roulotte recentemente estacionada.
"Você acha que eles poderão ter frango assado?", perguntou ao condutor da carrinha enquanto tapava o bocal do telemóvel.
"Não faço ideia... Costumam ter salchichas, bifanas, torresmos; frango não sei... Pode ser que vendam asas fritas, isso talvez. Quer que lhe vá ver?", ofereceu-se o condutor, lobrigando ali uma possibilidade de o dissidente vir a desistir do frango da churrascaria do Campo Grande.
Um pouco mais animado, o 21.º passageiro levou, de novo, o telefone ao ouvido.
"De todo o modo, há algumas medidas simples que talvez algum senhor profissional médico o tenha já posto a par, mas que nunca é demais repetir. O Senhor Utente deverá sempre lavar as mãos após contacto com pessoas ou objectos possivelmente contaminados, e tossir para o tornozelo de cada vez que lhe surgir a vontade irreprimível de o fazer. E, a terminar, solicitava-lhe que, antes de darmos por esgotado este contacto, respondesse a um brevíssimo inquérito epidemiológico - [o quê...?]; perdão, estão a dizer-me que, afinal, o inquérito que referi é de satisfação] — em que o valor 0 da escala significa 'nada satisfeito' e o valor 10 'totalmente satisfeito com o Governo do actual primeiro-ministro'."
O 21.º passageiro pousou o telemóvel no assento e olhou com vivo interesse a roulotte, em torno da qual se tinha juntado uma pequena multidão, na qual reconheceu alguns colegas de viagem e profissionais do INEM. Nesse preciso momento, o condutor da sua carrinha percorria o caminho entre a roulotte e a viatura, e informou:
"Não tem frango, nem sequer asas..., relacionado com frango tem apenas sandes de pasta de frango. Se quiser, posso encomendar-lhe um cachorro, vou pedir um para mim."
"Cachorro?! Você deve estar a brincar comigo!"
Enquanto combinava com o condutor o que pedir, o profissional médico nCO19 aproximara-se com o telemóvel estendido.
"É o Marcelo...".
"Marcelo?! Não conheço nenhum Marcelo..."
"Você deve estar a gozar... Há quanto tempo está na China?"
"Vai para três anos...", esclareceu o 21º passageiro aceitando o telemóvel.
"Caro sem-abrigo do Campo Grande...", ouviu dizer uma voz um pouco rouca, "estive para passar por aí, mas a Casa Civil diz-me que há trapalhada por perto, suponho que relacionada com uma evacua... [o quê? ele é um dos da quarentena?]... Queira desculpar, estimado evacuado, houve aqui uma confusão qualquer com a informação que nos chegou de S. Bento e das Necessidades. Para resumir, acontece que não me deixam ir aí: parece que, sendo o Presidente, não me posso expor, mesmo teoricamente, a que o país fique sem mim...; uma trapalhada! De todo o modo, podia mandar aí uns batedores e vinha você até Belém, tirávamos uma selfie, com máscara, claro: tenho até uma que me ofereceu - quando lá estive em visita de Estado — o Presidente Ping, uma bela máscara bico-de-pato, lacada... O que me diz, o estimadíssimo amigo?"
"Belém...? É pá, é um bocado fora de mão, mas é bué de tentador, com os pasteis e assim... O senhor nem sonha a porcaria que eles são lá na China - que os há, de franchising, por todo o lado - sabem mais a omelete do que a outra coisa!"
"Pois se quiser vir, é só dizer. Não sei se, a esta hora, há pasteis aqui no palácio, mas sempre lhe arranjo uma medalha, que ainda há menos de uma hora estive entretido a polir algumas, gosto do cheiro do Duraglit e é uma rotina que me distrai a seguir a jantar, relaxa-me para aquela maçada das promulgações de leis e decretos. A qualidade da produção legislativa de hoje em dia! Olhe, agradeça aos céus o estar na China!"
E, evolando um eco de risada no ar, a chamada desligou-se, deixando o 21.º passageiro a olhar para o telemóvel suspenso.
"Acho que não vou..." acabou por dizer para o médico, que o olhava com ansiedade; "é longe, se calhar não há pasteis, e palácios e medalhas é uma cena que não me assiste...".
Dizendo isto, levantou-se do assento, pegou na mochila, contornou a roulotte e desapareceu no meio da noite. Nunca mais ninguém lhe pôs a vista em cima, embora o Correio da Manhã tenha, alguns dias mais tarde, divulgado uma fotografia, muito pixelizada, em que uma seta vermelha apontava uma cabeça de perfil, alegadamente pertencente ao desaparecido 21.º e tirada numa Assembleia Geral do Sporting. 
Em Abril, no dia Mundial da Saúde, ao serem distribuídas as medalhas de mérito do Ministério da Saúde que distinguiram os intervenientes na evacuação e no isolamento optativo (20 evacuados; 35 funcionários do Ministério da Saúde e das forças de Segurança; o porteiro do Hospital - a recibo verde; 6 empregados do McDonald do Campo Grande; 3 motociclistas do Uber Eats), nesse fim de manhã, o ouro da medalha destinada ao 21.º viajante ficou a brilhar, solitário e não reclamado, na horizontalidade da seda azul-celeste que forrava a respectiva caixa.




















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